Notabilizada como uma grande escritora da introspecção, Clarice Lispector é veiculada no mundo intelectual como uma espécie de pensadora social, que aqui chamarei de “sentidora social” por concordar com Audre Lorde que a dimensão do sentimento abarca a do pensamento, que seria outra forma de aprender e apreender e não a definidora de todo tipo de expressão do conhecimento. Sentir o mundo da vida é maior ou mais complexo que pensá-lo. A literatura clariciana nos empurra para o dilema do “quem sou eu?” e “ao que pertenço?”, associando-se numa perspectiva existencial humana à pergunta poética de Caetano Veloso: “Existirmos, a que será que se destina?”. Perguntas hercúleas, mas fundamentais para o prosseguir de uma existência humana, indagando-se sobre o que lhe dá sentido de vida, o que lhe impele a seguir a favor desse contínuo desconhecido a que chamamos desejo.
Clarice escreve: “Enquanto tiver perguntas e não houver respostas continuarei a escrever”. Talvez aqui resida o desejo de escrita da autora mergulhada em seus sintomas, buscando uma espécie de “satisfação” perdida desde o início de sua existência, se tomarmos a noção de desejo trazida por Sigmund Freud. Em Jacques Lacan, esta máxima clariciana pode nos levar ao entendimento do desejo que nos faz buscar, continuar buscando, buscar novamente, sem nunca encontrar, e nesses ímpetos do desejo, entreatos, uma obra se realiza através da literatura. Em Clarice, as entrelinhas são o mais importante. O que a impele não é o que aparece de imediato em sua escrita, mas o que está “atrás do pensamento”, ainda que inconsciente, movendo-a numa trama literária que, na maioria das vezes, fala dela mesma.
“Minha voz é o modo como vou buscar a realidade; a realidade, antes de minha linguagem, existe como um pensamento que não se pensa”, aqui, através da sua personagem a senhora G.H., a escritora prenuncia algo que lhe é impossível de alcançar, que seria o real lacaniano, o que está fora da linguagem, no submundo de um não pensamento, mas que a afeta ainda que não saiba explicar, não saiba lhe dar prova de existência. Clarice levou para a sua literatura uma forma de grito ancestral. Sua fala/escrita revolve quereres recalcados em seu inconsciente e ao se desequilibrar no texto, se desvelar para outrem, ela nos desequilibra como leitores, levando-nos às repetições dos nossos sintomas ou nos colocando frente a epifanias que foram bem escondidas no “escaninho da alma”, como chamaria o inconsciente o poeta Fernando Pessoa.
Clarice Lispector é uma escritora do desejo: escreveu desejando salvar vidas. A sua fundamentalmente. Ao escrever, autoconferiu-se o direito de pertencimento à sua condição humana, ao sentido de ter utilidade para a vida sem a sintomática culpa de ter vindo ao mundo sem cumprir a missão ancestral de que, com seu nascimento, curasse sua mãe da sífilis, como acreditava sua etnia ucraniana, o que não aconteceu e a atormentou até o fim da sua existência. Falar em textos, fabular existências, inventar personagens, deram a esta grande artista a possibilidade de se reinventar em novas buscas que a levassem ao seu desejo e, assim, obtivesse algum sabor existencial.