O Desejo em Freud
Um componente essencial dessa vivência é a aparição de determinada percepção (a nutrição, em nosso exemplo), cuja imagem mnêmica fica, daí em diante, associada à marca que a excitação produzida pela necessidade deixou na memória. A próxima vez que esta sobrevir, à mercê do enlace assim estabelecido, suscitará uma moção psíquica, que procurará investir de novo a imagem mnêmica daquela percepção e produzir outra vez a própria percepção, vale dizer, restabelecer a situação da satisfação primeira. Uma moção dessa índole é o que chamamos de desejo; a reaparição da percepção, a realização do desejo, e o caminho mais curto para este, o que leva da excitação produzida pela necessidade ao investimento pleno da percepção. Nada nos impede de supor um estado primitivo do aparelho psíquico em que esse caminho se fazia exatamente assim e em que, portanto, o desejar desembocava num alucinar […] que conduzam ao estabelecimento da identidade desejada no mundo exterior. […] Pois bem, toda a complexa atividade do pensamento que se desenvolve desde a marca mnêmica até a criação da identidade de percepção pelo mundo exterior representa apenas um subterfúgio que a experiência tem demonstrado necessário para que se chegue à realização de desejos. O ato de pensar não é outra coisa que a substituição do desejo alucinatório. (FREUD, 1923/2011)
Nossa cultura se edifica sobre a sufocação das pulsões. Cada indivíduo cedeu um fragmento de seu patrimônio, da plenitude de seus poderes, das inclinações agressivas e vingativas de sua personalidade, e dessas contribuições nasceu o patrimônio cultural comum de bens materiais e ideais. Além da coerção da vida, foram, sem dúvida, os sentimentos familiares, derivados do erotismo, que moveram o indivíduo a tal renúncia. E esta foi progressiva no curso do desenvolvimento da cultura. A religião sancionou cada um de seus progressos, oferecendo, em sacrifício à divindade, cada fragmento de satisfação pulsional a que se renunciava e declarando “sagrado” o novo patrimônio coletivo assim adquirido. Quem em consequência de sua indomável constituição não possa acompanhar essa sufocação do pulsional enfrentará a sociedade como “delinquente”, como outlaw (fora da lei), a menos que sua posição social ou as suas aptidões sobressalentes permitam impor-se na qualidade de “grande homem” ou de “herói”. (FREUD, 1927/2018)
Para muitos de nós talvez seja difícil prescindir da crença de que no homem reside uma pulsão de aperfeiçoamento que o tem levado até seu atual nível de rendimento espiritual e sublimação ética, e da qual deve esperar-se que velará pela transformação do homem em super-homem. Eu, todavia, não creio numa pulsão interior dessa índole e não vejo nenhum caminho que permitiria preservar essa ilusão consoladora. (FREUD, 1930/2010).
A pulsão recalcada não cessa nunca de aspirar a sua total satisfação, que consistiria na repetição de uma vivência primária de satisfação; todas as formações substitutivas e reativas, e as sublimações são insuficientes para cancelar sua tensão permanente, e a diferença entre o prazer da satisfação encontrado e o pretendido desencadeia o fator impulsor, que não admite a detenção em nenhuma das situações estabelecidas, mas que, nas palavras do poeta, “tende, indomado, sempre para frente”. O caminho para trás, para a satisfação plena, em geral é obstruído pelas resistências em virtude das quais o recalque se mantém de pé, e desse modo só resta o remédio de avançar pela direção do desenvolvimento que permanece livre, ainda que sem esperança de dar fim ao processo ou de alcançar a meta. (FREUD, 1920/2020)
Ambos os vínculos marcham paralelamente durante algum tempo, até que, pela intensificação dos desejos sexuais orientados para a mãe, e pela percepção de que o pai é um obstáculo oposto à realização de tais desejos, nasce o complexo de Édipo. A identificação com o pai toma então um matiz hostil e se transforma em um desejo de suprimir o pai para substituí-lo em face da mãe. (FREUD, 1900/2019)