No argumento para o Eixo 3 da XXVII Jornada da EBP-Bahia, Iordan e Sônia nos dizem o seguinte: “Lacan, por reconhecer o desejo como desejo de ser reconhecido pelo Outro, o articula ao campo da linguagem, ancorando-se no significante e, por isso mesmo, abre asas para a interpretação”[1].
Essa é uma afirmação preciosa, mas que precisa ser lida a partir de certo enquadre. Afinal, ela se refere, mais particularmente, a um tempo no qual a elaboração lacaniana desenhava uma noção de sujeito, sem substância, uma falta-a-ser. E, nesse caso, o desejo de reconhecimento fazia-se como um desejo de ser. Algo que “se poderia resolver” através da validação ou endosso daquele a quem alguém se endereça para que o interprete. É nesse sentido que em “O ser, é o desejo” Miller falará da interpretação como criacionista[2], interpretar seria fazer ser.
Aqui, nós nos aproximamos da posição de Sócrates em diálogo com Alcebíades, comentado também por Miller, dessa vez em O desejo de Lacan. Nesse texto, diante da máxima “conhece a ti mesmo” (diria, hoje: “interpreta-te”), a saída do filósofo é criar, fazer existir um ser unívoco através da assunção de uma relação de mestria.
Ele resolve a divisão corpo e alma a partir dessa relação. Instala a alma, como amo do corpo, atribuindo a ela o valor último do si mesmo. Nesse modelo, o corpo figura tal qual um instrumento como tantos outros dispostos no mundo. Lacan escreverá essa relação como: S1 -> S2 ou “a relação do significante-amo ao significante-escravo”[3].
Falar do desejo enquanto desejo de reconhecimento e da interpretação tomando o significante-amo do discurso do amo é, então, falar de certa “[…] obrigação que temos de relacionarmos nossa pessoa a uma identidade. […] obrigação de ser um, com a identidade bem destacada”[4].
Ora, mas sabe-se, desde Freud, que esse ideal de unicidade ontológica através de uma mestria é da ordem do impossível. Algo sempre resta. Algo sempre escapa do reconhecimento e do ato criacionista da interpretação. Algo que não se faz ser, porque antes, existe.
“Lacan deslocou o si mesmo do eu [para isso que resta,] para esse resto.”[5] Nesse movimento, deslocou também “o reconhecimento do desejo à sua causa”[6], reposicionando assim a mirada da práxis analítica do desejo para o gozo.
“A tese de Lacan é que o discurso do analista introduz uma subversão do si mesmo. É outro si mesmo que, a partir de uma análise, alguém encontra. É seu próprio si mesmo que encontra, mas não no significante-amo.”[7]
Assistimos, então, à abertura para um outro modo de pensar o desejo e sua interpretação, o qual, todavia, não anula o primeiro. Sim, a elaboração e a interpretação de reconhecimento restam preservadas. Permanecem em nossa prática cotidiana quando interpretamos um sonho, por exemplo. Nesses casos em que o trabalho, por vezes, consiste em reconhecer o desejo e marcá-lo.
Porém, para além desse modo interpretativo, hoje já nos é possível articular algo que se faz a partir de “uma opacidade irredutível na relação do sujeito com alíngua”[8]. Algo que se faz não pela via da elaboração, mas sim da perplexidade.
[…] um outro regime da interpretação que incide não sobre o desejo, mas sobre a causa do desejo. É uma interpretação que trata o desejo como defesa, trata a falta-a-ser como uma defesa contra o que existe [aquilo] que Freud abordou por meio das pulsões e que Lacan nomeou de gozo.[9]
Quem sabe então possamos voltar a discutir os efeitos dessa virada na Jornada que se aproxima, e o Eixo 3 parece realmente um bom convite a esta tarefa.