Uma volta a mais sobre o tema do desejo… agora mais perto de ele mostrar sua cara nas Jornadas da Seção Bahia da EBP e do IPB.
“Lay lady lay” era o título do texto anterior que escrevi para o Desidério. Ao fim do texto, lançava uma pergunta que sempre me intrigou quando vinha a lembrança da famosa frase de Lacan: “o desejo é o desejo do Outro”.
Se o desejo é um ato em suspenso, um ato que o narcisismo não dá consentimento, justamente por ser a parte de libido não avalizada pelo Outro e, portanto, não recoberta pela demanda, como pensar então a famosa prerrogativa lacaniana do desejo como desejo do Outro? Não haveria aí uma contradição?
Para buscar uma possível resposta, vale a pena dar uma volta a mais sobre essa distinção tão importante entre demanda e desejo.
A demanda é, antes de sua imediata associação com o pedido, uma mensagem codificada pelo campo do Outro diante da necessidade como pura exigência de vida. A demanda imputa a exigência de vida com os significantes que vêm do Outro e supostamente colocam essa exigência amorfa em uma gramática passível de ser codificada pelas determinações do Outro. É com as palavras do Outro que se pode dizer algo sobre o que satisfaz… mas isso é curto. Há sempre um resto nessa operação de tradução da necessidade em demanda e desse intervalo se constitui o desejo como um efeito, como uma fronteira onde a necessidade e a demanda não fazem par. Um campo, portanto, opaco aos significantes, mas não por isso alheio aos efeitos de resto que a própria operação da linguagem produz no corpo vivo.
A alienação do falasser ao código do Outro, portanto à demanda como suposta tradução, implica um efeito que não escapou a Freud no início da psicanálise: um dos seus nomes é hipnose, outro importante é sugestão. O sonho de responder sem falha à demanda do Outro, como quem traduz a língua estrangeira sem nenhuma perda, é um sonho fadado ao fracasso e perigoso, pois aspira a um adormecer sem pausa, sem intervalo, sem despertar.
O que Freud pôde colher da experiência com a sugestão e a hipnose é o quão pouco analítico pode ser o efeito terapêutico de supor saber o que alguém espera de você. A psicanálise se distinguiu do ramo terapêutico da sugestão quando Freud passou a perceber o quão importante é a resistência a esse circuito de adormecimento. A resistência à demanda de obedecer à demanda alheia passou a ser um dos índices para a concepção de transferência.
A resistência à demanda de corresponder passou a ser um índice clínico da presença do desejo inconsciente. Isso desde sempre foi visto por Freud não como desejo de algo, afinal esse “algo” teria que levar o nome do Outro, mas desejo como ato psíquico que implica uma resistência ao campo narcísico, ao campo do Eu. Perceber a incidência dessa resistência como condição para o desejo nas formações do inconsciente foi decisivo para pensar o manejo da transferência, a interpretação e nos termos de Lacan o próprio desejo do analista.
Lacan elucida com o grafo do desejo como o desejo tomado como resistência nesse sentido proposto mantém a direção de uma análise longe dos efeitos de sugestão. Ele mostra o efeito que há quando o analista busca dar nome para aquilo que é resistente à significação: uma redução da transferência à sugestão e o consequente favorecimento à atuação, como modo de o analisante buscar manter preservado o seu desejo frente ao empuxo à interpretação semântica, sobretudo.
O analista busca sustentar as condições de emergência do desejo não para o nomear, mas antes para favorecer o seu recorte em relação ao modo como na neurose a demanda está atrelada à pulsão. Ou seja, sua direção é a separação entre a demanda e o desejo.
Um dos modos de compreender essa operação é levar em consideração que o matema da pulsão para Lacan é $<>D, isto é, tomar a demanda do Outro como objeto pulsional, um objeto por excelência fantasmático. Pensar que o desejo só pode operar através da fantasia $<>a não quer dizer que essa fantasia tem que ter o mesmo capricho a cada vez. É a conjunção da demanda como objeto da pulsão que escande o desejo a um circuito de demanda que ao fim, o inibe como ato.
Essa operação faz uma confusão entre o objeto a liberado de uma fantasia e, por isso mesmo, objeto causa do desejo, função do desejar; por outro lado, o objeto da fantasia como demanda, que por mais que inquiete pulsionalmente o sujeito, está preso nas malhas do enredo fantasmático repetitivo e, devido a isso, impedido de poder funcionar como resistência a esse próprio circuito de demanda, circuito de fixação de gozo.
A separação da pulsão com o circuito de demanda incide sobre o desejo que, ao invés de estar introvertido em fantasia (para usar uma velha expressão freudiana), pode estar mais liberado para o ato. Ao fim, essa separação é uma espécie de luto em relação à posição alienada quanto à demanda do Outro e, em função disso, uma perda de consistência do Outro.
Para terminar, volto à pergunta inicial: e o desejo como desejo do Outro? Aqui não podemos tomar que esse “do Outro” é localizável; se assim fosse, seria demanda. Tomá-lo assim é o que a neurose faz ao confundir o desejo com a demanda.
O desejo como desejo do Outro é, ao fim, o desejo de desejar, isto é, não reificar seu objeto vazio em qualquer miragem e com isso fazer operar essa função na vida vivida com a cara na rua e sem fantasia. Como Lacan diz em uma lição do Seminário 7, e com isso concluo: “Quando lhes digo que o desejo do homem é o desejo do Outro, algo me vem à mente que soa em Paul Eluard como o duro desejo de durar. Isso nada mais é do que o desejo de desejar.” (Lacan, 1991, p. 370).
Referências
LACAN, J. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. (1959-1960) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991.