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Cristiane Barreto[1]- EBP/ AMP
A psicanálise sistematiza que é através do fantasma, ou da fantasia, constituída como uma frase que nos dá acesso ao objeto de desejo através de uma moldura, espécie de janela, nos protegendo, ao mesmo tempo, de não ter acesso direto ao objeto que perturbaria a existência. O desejo no ser falante é um paradoxo, fundamentado através de um impasse, Impasse este, que lhe dá impulso. É impossível estruturalmente o ser falante dizer qual é o objeto do desejo, e é justo por isso que o objeto a de Lacan se torna “causa de desejo”. A força desse desejo não “renuncia de ser descoberto” (MILLER, D. 2011, p. 109), e, assim, impele o sujeito na direção ao Outro, a fazer laços e remendos dos retratos guardados.
Por mais que façamos apelo a um Outro, é sozinho, cada qual com seu drama, que permanecemos às voltas com a insistência inabalável do desejo. O inconsciente é uma espécie de “porta voz mudo” (MILLER, D. 2011, p. 109) desse drama, do qual resulta a solução que cada falasser engendra para se satisfazer. Portas se abrem aos modos de gozo e ao desejo.
A articulação do desejo e da pulsão se dá pelo objeto a – que é causa de desejo e objeto mais de gozar. Miller (2005) esclarece que essa articulação não apaga a diferença essencial entre desejo e pulsão. O desejo é envolto em nostalgia do objeto desde sempre perdido, do suspiro que logo se depara com um “não é bem isso”. E, por isso, isso insiste, filma-se e filma-se de novo. Enquanto a pulsão é puro oposto da nostalgia, é satisfação, é o objeto encontrado, o despertar vivaz do “é isso”. A articulação? O trio elétrico que move a Bahia mesmo depois do carnaval.
Kleber Mendonça, ele faz cinema. O objeto olhar é tratado em fina flor de poesia de imagens belas e irônicas. “Um cinema pode ser espaço de gentilezas”, diz a voz do narrador em Retratos Fantasmas. O documentário é isso também: espaço de gentileza urbana com nossas memórias dos cinemas de rua que desapareceram, mas vivem nos filmes que assistimos como vultos do desejo que não são ruínas em nós.
Na verdade, assim como Kleber ensina mostrando que a iluminação de cinema transforma a rua e a escuridão em cena de rua e escuridão de filme, o olhar do diretor transforma um documentário em filme de ficção do amor pelo cinema. A história do cinema na pele de um jovem que será desde sempre o que já era, cineasta. O olhar da mãe historiadora dirige um pouco o filme também.
Na sala do cinema, o projetista relata o episódio em que desapareceu em um dos dias de exibição de O Poderoso Chefão, e desaparece da tela no fio mesmo da sua narrativa. É possível contar uma história mostrando o que, sem o cinema, só é possível imaginar. O cinema pode compartilhar as imagens que surgem nos sonhos e não podemos compartilhar, a não ser através da narrativa. Assim, parafraseando Freud e sua teoria sobre os sonhos: todo filme é a realização de um desejo!
As salas vazias são espectadores. A relação do Kleber com o Sr Alexandre, projetista da sala do Art Um, é mais bonita que a do Alfredo e Salvatore, do Cinema Paradiso. A cena do homem numa escada retirando letras das palavras frases das placas (out doors) que anunciavam os filmes, compõe e desmontam cenas urbanas. Lapsos, estilhaços de frases, pura letra que cai como resto. O objeto a – causa de desejo – é o que resta, cai, de uma equação entre o Outro dividido pela interrogação do sujeito.
No final do filme, a cena onde o condutor (do Uber) fica invisível, conduzindo o diretor, que logo procura se ajeitar com mais segurança frente àquilo que aparece e desaparece tênue. Confiar e desconfiar dos invisíveis que nos olha. É lindo, um filme sem um milímetro de excesso sequer. É com a precisão de quem, como diretor, como dizemos em psicanálise, já atravessou seu fantasma em O som ao redor, Aquarius e Bacurau. Nesse Retratos Fantasmas Kleber filma o olhar, ou seja, faz visível o invisível. Ele mostra Recife do futuro atravessado no passado. O centro de Recife, uma cidade mais perto do sol, mas de sombrinha. Exibe na tela roda de capoeira que é frevo.
No passado, uma igreja foi demolida para virar um cinema. Que dirá, no futuro nos espera, virá um retorno do recalcado do que nos assola de igrejas pentecostais agora?
As duas cenas (que é a mesma cena) do início da segunda e da terceira parte, em que aparecem perfis das bordas dos prédios antigos com o céu, em telhados, recortes das cores desbotadas em luz nítidas: é simplesmente uma maravilhosa cena de amor. Fotografia linda da cidade. Aprender com o filme a não recuar do desejo. “É preciso dizer quando se gosta de alguém”, frase repetida no filme.
Todo espectador certamente lembra de um cinema e as marcas deixadas por ele, mas, em Retratos Fantasmas é mais do que isso, é uma cidade inteira que é habitada por esses fantasmas. Um fantasma que mais de uma vez corre sob a ponte com sua capa preta. É Matheus Nachtergaele de bicicleta em seu amor de lambida explicita. E Ariano Suassuna que entra sozinho de relance e depois na elegância genuína, longa e magra, acompanhado da sua esposa na sala de cinema. É Recife que se lembra que é uma cidade de cinema.
P.S. 1: Sai do cinema pensando que o motorista do Uber do dia seguinte bem podia ficar invisível, como o do filme. P.S. 2.: duvido que seja possível assistir esse filme num domingo à noite e não sonhar com a voz do Kleber Mendonça Filho.