Sim! Recife tem cheiro. Cheiro de mar, de lama, de flores, de frutas e de mijo.
Retratos fantasmas é uma elegia ao Recife, uma obra sensível, inteligente, bem-humorada e… melodramática? Assim como Kleber Mendonça deixou para o público responder, sigo sua indicação.
O “Melô”, como assim fala o diretor, é dito com temor, mas ele se retifica dizendo que não tem problema com o estilo. (Kleber Mendonça. Metrópolis – YouTube. 2 de setembro)
Eu amo o centro do Recife
Eu amo o centro do Recife…
[…]
Em um momento da edição, apaguei a segunda frase, mas depois pensei: quando amamos alguém nós não ficamos repetindo várias vezes que amamos? Recoloquei a frase. (Kleber Mendonça. Retratos fantasmas)
Essa parte em que ele narra sobre a edição do filme é um dos momentos mais lindos, delicados, um dos momentos que contribui para sairmos invadidos de amor, de desejo que nos orienta como uma bússola. Ela nos faz pensar o que nos move, nos causa, embalados por Sidney Magal: “Ah, eu te amo / ah, eu te amo, meu amor / ah, eu te amo / E o meu sangue ferve por você!”.
Por outro lado, Retratos fantasmas nos faz ir afundando de tristeza e horror na cadeira pelos objetos que pululam em antigas salas de cinema, pelo abandono da história escrita em seus antigos prédios. De repente, o humor fino, metafórico, em tom de ficção, nos puxa e nos convida a sair do filme com a esperança de que o grito desse diretor possa alertar e, assim, contribuir para a diminuição da selvageria capitalista, para que nossas próximas gerações possam ter cidades com suas histórias, seus patrimônios preservados.
Retratos fantasmas é um ato político, delicado e consistente que fala de uma luta pela história, contra o desejo de ignorância, fala de talentos. É uma luta para que as salas de cinema não morram, não desapareçam. Não se trata de uma recusa ao novo, mas do entendimento de que a história é também para o cinema, que os filmes possam ser exibidos nas salas, que passem pelos streamings e que cheguem à telona. Retratos fantasmas é um filme que o Desejo mostra a sua cara.
Recolho nesta escrita o impacto desse filme em mim. Enquanto praticante da psicanálise, não posso deixar de lembrar do ensino de Lacan, que, ao estabelecer o discurso capitalista, nos mostra que ele não cria laços sociais, ele incita ao gozo indo além do prazer, ignorando qualquer tipo de limite.[1] Ou seja, como diz Joaquín Caretti em seu texto “Por que o discurso capitalista diz respeito à psicanálise?”, esse discurso encarna o supereu que cai sobre a população aderindo ao seu mandato, aplacando os sujeitos, escravizando-os.[2]
Por último, não posso deixar de falar que Bernardino Horne, em uma entrevista disponível no número especial do Boletim Desidério de agosto de 2023, de maneira singular fala do que mantém viva a Escola de Lacan.[3] Ele nos diz que a psicanálise, para se manter viva, necessita do trabalho incessante dos analistas contra o maior desejo humano que é de ignorância. Os analistas se interessam pelo saber e trabalham em torno dele. Na Escola, não estamos tranquilos, porque sabemos dos furos que existem e exigem trabalho para evitar o desaparecimento da psicanálise.
Com suas distintas posições, podemos ver pontos de aproximação entre o discurso da psicanálise e o filme Retratos fantasmas na medida em que me parecem evocar o fazer barreira ao gozo.