O que vemos quando olhamos para um quadro? Como olhamos pra isso? A essa pergunta, feita por Marlène Dumas ao longo de sua vida de artista, Lacan responde de forma esclarecedora: o mais-de-gozar que nos arrebata diante de uma pintura não deixa de ter um toque de angústia, e isso se revela particularmente verdadeiro pela obra de Marlène Dumas.[1]
Em sua exposição do ano passado no Palácio Grazzi, Dumas mostrava, de fato, em suas obras o que não se vê nas fotos e imagens através das quais ela parte. “Para ela, trata-se de captar, de extrair, de colocar em evidência o que escapa à visão, aquilo que não foi visto.”[2] A pintura visa, nos diz ela, fazer surgir a verdade para além da verdade vista. Ela resume o seu trabalho em uma frase: trata-se de histórias de amor. Uma história de amor, ou melhor, uma ligação entre o espectador e o sujeito da obra. Ela esclarece sua relação com a arte que é, para ela, uma história contada por sapos. Você tem que aceitar isso para que eles revelem sua verdadeira natureza. Ela se compara também a uma pá que apanha tudo o que brilha ou ainda a um besouro que apanha tudo o que fede.
Dumas sabe desde sempre – não sem relação ao seu nascimento no país do apartheid – que o mundo é habitado pelo mal. Ela também sabe que a maldade é primária no homem e que nós somos dignos de desconfiança. Devemos, diz ela, reconhecê-lo. Diante da contingência do real, ela vê em seu trabalho a função de nos tornar menos temerosos frente ao desconhecido. A pintura talvez seja apenas uma forma de aprender a morrer.
Na distinção produzida entre o ponto de angústia e o ponto de desejo[3], Lacan refere o ponto de desejo ao objeto fantasmático, e este ponto é, portanto, agalmático. Ele se opõe ao ponto de angústia onde o sujeito se relaciona com a sua falta. E ele escreve que a relação com a falta “se situa além do laço onde se instituiu a distinção do objeto parcial como operador na relação com o desejo”[4].
Ponto de desejo e ponto de angústia se enodam, então, de maneira moebiana.
O ponto de angústia ao nível do Outro […]. O funcionamento do desejo – isto é, da fantasia, da vacilação que une estreitamente o sujeito ao a, aquilo pelo qual o sujeito se encontra suspenso, identificado a esse a permanece – permanece sempre elidido, escondido, subjacente a qualquer relação do sujeito com um objeto qualquer que seja, e devemos detectá-lo aí.[5]
Isso me parece ser o poder e o fascínio que Dumas exerce sobre o espectador. A imagem só ganha vida através do espectador que a olha. Ela produz um mais-de-gozar no laço que o circuito da pulsão opera na tensão entre angústia e desejo.