Em seu curso “A orientação lacaniana”, Jacques-Alain Miller nos permite situarmos algumas chaves do último ensino de Lacan que são imprescindíveis para pensar a psicanálise do século XXI. Quão relevantes são os conceitos com os quais costumamos pensar a nossa prática? Assim, o de desejo não está particularmente presente nesse ensino, tampouco o de transferência[2], nos obrigando a um exame atento da sua vigência.
A tensão que propomos no título de nossas Jornadas entre desejo e gozo está destinada a interrogar a atualidade das formas em que o sujeito falante, sob um regime que já não é o da repressão, reinventa seu desejo. Estas reinvenções se produzem agora sob novas premissas, dentre as quais podemos destacar o que em seu texto “Em direção à adolescência[3]”, chamou de uma nova aliança entre a identificação e a pulsão.
Em seu curso “O Um sozinho[4]”, Miller indica que o próprio da experiência de gozo é a disrupção, a ruptura a respeito da rotina do discurso. Entretanto, podemos nos perguntar se não vivemos uma época em que algo dessa mesma dimensão disruptiva do gozo já faz parte de um regime de discurso, presente tanto na modalidade dos sintomas individuais como no social, inclusive no político. Algo de sujeito atual exige a inscrição daquilo em que situa como pode sua singularidade, clama seu reconhecimento.
Mas essa exigência de reconhecimento é o que podemos e devemos sustentar como um desejo? Daí a pergunta “você quer o que deseja?” não mais apontando a elucidação das possíveis confusões entre desejo e demanda (dimensão própria da neurose que Lacan situou claramente em “A direção da cura”, entre outros lugares), mas propriamente à que pode se produzir entre o desejo e o gozo, nos labirintos do reconhecimento. De fato, o empuxo para reconhecer o direito de gozar de cada um é terreno fértil para isso. A questão do real que concerne a cada um não se pode circunscrever nestes termos.
Declinações do Um sozinho
Digamos que existem diversas formas de declinar o “Há Um”. Fazê-lo desde a psicanálise e considerá-lo desde sua ética específica não é o mesmo que decliná-lo em nome da identidade do sujeito com seu cérebro ou com seus genes, ou insistindo em reduzir a realidade sexual do inconsciente a alguma construção de gênero garantida pela ciência. Ou inclusive buscando em uma comunidade de gozo a equivalência interessada entre o corpo de um ser falante e o corpo, que segue sendo imaginário, de uma paixão coletiva.
Isso não impede ao psicanalista, ao contrário, acolher no sujeito contemporâneo o que têm de genuíno as manifestações que tem nele de certa aspiração a um real, por vezes desesperadas, inclusive quando passem pelas declinações de entrada mais opostas ao que a psicanálise trata de obter.
Há diversas formas de responder à questão do nexo entre desejo e gozo, frente ao qual diversas orientações são oferecidas ao ser falante. Entre elas, há que distinguir as soluções que possam melhor acolher o singular de cada um e se opor àquelas que entregam o sujeito aos estragos da pulsão de morte.
A psicanálise não pode prometer nenhuma solução ao mal-estar de todos e de cada um. Mas se compromete em acolher aquilo do sintoma de cada um que indica a via de um desejo sustentável. Isto implica, com efeito, uma nova aliança, não tanto com a pulsão, mas com o Um sozinho de cada um, marca de gozo que se acessa mais além da deflação do desejo fálico. Este mais além se obtém, sem dúvida, em uma análise que pode ser prolongada. Mas isso não impede que sua orientação esteja presente desde um princípio e em todo momento na função do desejo do analista, enquanto o analista a sustenta como condição de seu ato.
Não se trata, portanto, de responder pela via da nostalgia do pai, nem exaltando as virtudes da repressão. Mas nesse ponto de articulação, marcado por um vazio, convidamos a renunciar as soluções prêt-à-porter, nas quais o real que concerne a cada um é velado por alguma forma de coletivização ou obturado por um nome emprestado dos disponíveis no discurso corrente. Contudo, é importante sublinhar que isso não é possível sem acolher o sujeito nos próprios termos nos quais se supõe e nos supõe seu extravio. Inclusive quando trata de alojar sua singularidade sob um significante tomado do social – identidade nacional, comunidade de gozo, questão de gênero ou diagnóstico – importa que sob transferência ele possa alcançar a dignidade de um sintoma, ponto de partida na busca por um nome melhor para o real que lhe concerne.
O nome que damos à extravagância do desejo que melhor acolhe a disrupção do gozo traumático que concerne a cada um é o de sinthome. Mas esta é uma aliança que está por ser feita para cada um, seu wo Es war, soll Ich werden.