As cidades, em sua diversidade arquitetônica, podem ser vistas como manifestações físicas dos sonhos e desejos humanos. O surrealismo muitas vezes brinca com a arquitetura dos sonhos, criando espaços que desafiam as possibilidades da física e exploram os limites da imaginação. Nas obras surrealistas, as cidades muitas vezes são transformadas em cenários estranhos e desconcertantes, refletindo a natureza enigmática do inconsciente.
Nas obras de Salvador Dalí, por exemplo, é comum encontrar elementos simbólicos, metamorfoses e imagens que parecem desafiar a lógica. Esses elementos, assim como “a suposta cara do desejo”, podem ser interpretados/experienciados à luz da psicanálise, e a partir disso podemos esboçar algo que relacione arte, cidade e os meandros do desejo.
Desejo como falta e busca
Para Lacan, o desejo é fundamentalmente uma experiência de falta. Podemos concordar que em seu ensino Lacan propôs e acreditava que os seres humanos nascem com um vazio ou falta, e essa falta é o que impulsiona a busca incessante por satisfação e completude. O desejo não é tanto a busca por algo específico, mas sim a busca contínua por algo que permanece inatingível. Essa busca, insaciável, é alimentada pela falta e é o que mantém o desejo em movimento.
A ideia da falta está relacionada à experiência estética na arte, onde muitas vezes se busca algo que é sentido como ausente ou inatingível. Na arte, muitas vezes há elementos indefiníveis e evasivos que capturam a atenção do observador, fazendo com que eles busquem algo além do que é imediatamente visível, ou seja, as obras de arte podem evocar sentimentos de desejo e busca por algo que está além do visível.
Sublim(ar)-te
Freud enfatizou o papel da sublimação na civilização, argumentando que ela ajuda a canalizar os impulsos primitivos para formas produtivas e criativas. Na pegada freudiana, Lacan destaca que a sublimação não elimina o desejo, mas pode redirecionar sua energia para produção de símbolos e significados. A atividade da sublimação redireciona a energia do desejo para atividades socialmente construtivas, como a arte, construção de cidades e tantas outras criatividades humanas. Sublimação pode ser então a maneira pela qual os desejos humanos são transformados em formas culturalmente valorizadas de expressão, ao invés de serem reprimidos. A sublimação não nega o desejo, mas o transforma e o expressa de maneira socialmente aceitável.
Se há algo do desejo que sempre estará elidido, o surrealismo tentou propor que se visse o que se mostrava apenas nos sonhos (e cá entre nós, sonho é nome popular para desejo, certo?). E são nas cidades, onde a arte muitas vezes representa a ambiguidade e a complexidade da experiência humana, para além das pretensões bucólicas, onde se situam as manifestações de todo caos sublimatório que tenta dar cara ao que os falasseres desejam e sonham: por vezes, em Salvador. na Bahia de mar calmo do recôncavo ou já pra lá de Itapuã em mar aberto; em outras ocasiões, num campão do Centro-Oeste brasileiro, onde as capivaras resistem à cultura bovina e uma certa SLO anda erigindo revistas inspiradas em Sabiás, podendo passar por Las Ramblas em Barcelona de um antigo bairro gótico à estátua de Colombo apontando para a América ou quem sabe numa exposição de Salvador Dalí sobre a dantesca Divina Comédia fazendo contraste com as formas concretas e duras da CN Tower em Toronto, no Canadá. […]
Há de haver surrealismo e arte para tentar dar conta dos restos não-cientifizáveis e que lampejam atravessando toros, como touros: além das idas e vindas pelas cidades, o que sonham, recalcam ou sublimam os moradores das cidades e o que se passa aí e acolá com as caras que os desejos podem ter?