Lá se vão pelo menos uns vinte anos de quando ouvi pela primeira vez Lay Lady Lay. “You can have your cake and eat too” nunca parou de tocar desde então. A ironia de Bob Dylan é uma lição impagável sobre o desejo e suas tortuosidades, sobre o desejo em seu jogo de espelhos. Sempre engana, mas é por acertar em um ponto onde a imagem narcísica não pode ser atingida. É o próprio engano, poderíamos dizer; algo que está necessariamente em outro lugar, em outra cena.
“Você não pode ter o bolo e comê-lo ao mesmo tempo” é o ditado com que Dylan brinca em seu verso. É com ele que brinco para dizer alguma coisa sobre o tema das Jornadas da Seção Bahia e do IPB – Desejo: mostra sua cara! A picardia do nosso título diz um pouco desse modo de brincar com os sentidos a fim de poder emergir alguma outra coisa, insuspeita. Sim… no desejo há sempre algo outro, implica uma dose de alteridade que não retorna na imagem do espelho. A cara do desejo não é a mesma com a qual podemos nos mirar.
O “você não pode” do ditado, com o qual a canção brinca, é chave. Trata-se muito menos que uma censura ou impedimento. É uma bela definição do desejo, pois coloca o acento em uma negativa que, ao fim, é uma habilitação, uma condição para uma forma de dizer “sim” a algo que não é localizável por tal e qual demanda. Quando, em qualquer conversa entre amigos, um deles para e diz “You can’t have you cake and eat too”, é porque o amigo do outro lado já está diante de algo decisivo, como quem diz: “e aí?”.
O drama do neurótico é prolongar o tempo dessa indeterminação porque esse ato… esse ato só pode acontecer na condição de perceber-se que algo seu já está perdido e não há imagem narcísica que possa resolver tal determinação. Essa é uma das razões por que acho interessante pensar o desejo como um ato que não pode se suceder pela via narcísica. Todas as confusões dos actings-out dizem bem como algo do desejo, por vezes, só pode acontecer à revelia. Como se o desejo fosse um acidente esperando para acontecer, e quando o acontece, é com uma dose de dissabor egoico.
Eis o que para o neurótico é tão custoso. Diante de sua alienação à demanda do Outro, quase sempre terá o seu desejo em reserva, relegado ao plano de sua fantasia inconsciente que servirá de argamassa de seus queridos sintomas. É o modo costumeiro de o neurótico degradar a sua deriva pulsional que não se deixou tomar pelas identificações e injunções do Outro. Pode-se referir-se a esse desejo fantasmático como uma defesa que mostra comumente como resistência, como quem precisa muito de um “dizer que não” para apontar que ali há algo que escapou às chancelas de seus próprios predicados.
O desejo tomado por essa perspectiva, como um ato em suspenso, dificilmente será reconhecido pelo neurótico como algo desejável, daí que no dizer dos analisantes ele está alhures daquilo que é dito como anseio. A reserva onde o desejo se aloja o determinará a uma imiscuição com o gozo na fantasia que, notadamente, não tem um enredo muito variado – o erotismo masoquista costuma ser o seu motivo típico. Neste arranjo o desejo se esconde no imperativo supergoico que tantas vezes está na sustentação do sentimento inconsciente de culpa, nas angústias e, naturalmente, nas parcerias-sintomáticas.
Caminhando por aí, uma pergunta vale a pena ser feita: se o desejo é um ato em suspenso, um ato a que o narcisismo não dá consentimento, justamente por ser a parte de libido não avalizada pelo Outro, como pensar então a famosa prerrogativa lacaniana do desejo como desejo do Outro? Não haveria aí uma contradição? Talvez essa seja uma pista para pensar um pouco mais onde o analista entra quando opera desde o chamado desejo do analista. Talvez seja um tema para outro texto.