Sobre o desejo, Fabián Naparstek sintetiza “como algo que tem uma particularidade, um rastro (traço), e sempre aponta para algo”. Entretanto, fica o questionamento: e quando esse traço se apaga e o desejo se desencaminha?
Diferentemente da errância, pela qual o desejo envereda no campo da linguagem, o que é colocado em perspectiva aqui é a convulsão do predicado que leva o título da entrevista de Fabián na revista Registros: “el deseo es la horma”. A expressão pode ser traduzida livremente como “o desejo é uma forma”, passível de ser localizado; ou seja, essa “forma” diz respeito a uma forma particular onde cada sujeito coloca seu gozo como questão.
É na fantasia que o sujeito desenvolve sua relação com o objeto a, fixando-o de modo que o desejo caminhe. Mas é na medida que esse objeto cai; é através dessa perda, redundantemente, para sempre perdida, que o sujeito pode advir e enganchar-se nessa recuperação de gozo. Ademais, enquanto essa fórmula (da fantasia) serve como anteparo ao sujeito em relação à pulsão de morte, o sujeito também se agarra com afinco ao objeto.
Nesse sentido, seguindo as trilhas da lógica neurótica, em que um acréscimo de gozo não é nada demais, é justamente nessa promessa de gozo que o discurso capitalista em comunhão com a tecnociência opera suas artimanhas, através dos objetos que serão ofertados nas prateleiras do consumo. Em vista disso, a dimensão da objetalidade ganha outra tônica.
Se antes a lógica era regida pelo desejo, que, assim como o laço, supõe uma falta e uma renúncia pulsional; no reordenamento contemporâneo, ao deslocar a relação do sujeito com o Outro para outra relação, por vezes compulsiva, com os gadgets, que não passam pelo discurso, acaba-se por comprometer a possibilidade de laço social.
É na oferta dos objetos produzidos e dispostos nas prateleiras, no excesso de gozo, e não mais da falta, que podemos pensar a deflação do desejo. O sujeito fica num gozo que não mais passa pelo laço, mas, sim, por certa imaginarização.
Nessa convulsão, remeto ao conto de Cinderela. O que dá o tom ao enredo dessa história de amor é o objeto perdido, encarnado pelo “sapatinho de cristal”. Na história, os sapatinhos pululam de pé em pé, mas sua fôrma é particular: eles cabem somente nos pés da verdadeira dona. A unicidade desse objeto permite o enquadre da fantasia e permite que o desejo caminhe. Caminhe na direção do amor. Segundo a história, o príncipe enreda-se na procura do encontro amoroso e passa dificuldades em achar os pés que calçam os sapatinhos.
Agora, suponhamos outra narrativa: ao invés de seguir as pegadas desse objeto perdido, que causa seu desejo, o príncipe incorre em outro conto na tentativa de suplementar a inexistência da relação sexual. Na promessa desse gozo, ele recorre às prateleiras do consumo, acreditando poder acessar o mítico happy end através de atalhos: reveste-se de roupas de marca, compra carro do ano, retoca sua harmonização facial, persegue a promoção do ano etc. Nesse afã, o príncipe faz série nas prateleiras, na ilusão de que será sempre o próximo objeto a suturar sua falta. Na dificuldade de localizar seu desejo – a fôrma que calce os sapatinhos de cristal –, qualquer objeto vem a calhar. Na medida em que ele tenta acessar o mais-de-gozar, ele acessa a falta.
No Seminário 20, Lacan diz que “não há relação sexual porque o gozo do Outro tomado como corpo é sempre inadequado: perverso, de um lado, uma vez que o Outro se reduz ao objeto a, e, do outro, direi louco, enigmático”. No encontro entre um homem e uma mulher, pura contingência , o impossível do “não se escrever” cessa. Diferente da subversão feita à história de Cinderela, não é através das próteses que se dá a possibilidade da existência da relação sexual, mas como revela a verdadeira história, é o amor que faz suplência à inexistência da relação sexual. Portanto, quando o capitalismo promete a elisão da falta e promete a existência da relação sexual, o amor se esvai.