“Axé significa o fundamento que nós temos. Significa o sagrado, uma casa de axé. Axé é uma resposta e não uma pergunta.”
Logo de chegada, sou surpreendida com essa afirmação de Mãe Zulmira. Ialorixá Nengwa do terreiro Tumbeci, ela fala que o “axé” é uma resposta, e eu ia em busca de uma pergunta sobre o desejo. Há uma busca que vem do orixá, e os filhos da casa só precisam se entregar e acreditar. Só? Não, é necessário respeito, amor, fé e responsabilidade. O que se dá em troca do que recebe é reverência ao santo, folha, animais, sacrifício dos resguardos, roupa branca, música e silêncio.
Na psicanálise, paga-se com a palavra dita em voz alta para que cada um se escute. Esse elemento fundamental para que se chegue a um apaziguamento da angústia.
No fundamento do axé há uma divisão do que rege cada nação do candomblé, cada casa que carrega sua ancestralidade e cada filho com sua demanda. O que é comum a todos, o particular e o pessoal. Saberes que movimentam um conhecimento ancestral através de uma prescrição.
Os sentidos dados ao rito com a música de cada dança, cada orixá, cada vestimenta, folha e artefatos específicos, dizem do passado ancestral caminhando para a realização do que é pedido ao orixá e alcançado com a fé; para tanto, requer movimento.
Fundamento de axé funciona um pouco com o nosso relativo universal, particular e singular.
Uma diferença é que caminhamos para o fora-sentido, desarticulando o discurso para chegar ao singular, esse que é caro à psicanálise, já que a linguagem só dá conta do particular. Sendo o singular uma objeção ao furor sanandi, andaríamos na contramão do “fundamento” de axé. Este parece acreditar que a fé pode movimentar seu desejo de cura e curar.
Certa feita, ouvi que Axé é movimento de realização, que se cumpra, que cada um se responsabilize pelo que deseja no percurso da vida naquela comunidade e fora dela. Concluí que axé é palavra plural e retumbante de um povo, um conjunto de fundamentos.
Nesse sentido, a comunicação dada no rito tem uma dupla visada entre continuidade e descontinuidade através de uma alteridade, um outro que articula os elementos usados nos ritmos, dança e música de tambores que fazem trepidar aqueles corpos em transe. Passado, presente e projeção de futuro se condensam em corpos atravessados por elementos do coletivo e da alteridade. Um outro se impõe na comunicação constante do ritual do candomblé. Deixando entrever a permeabilidade entre o externo e o interno, entre corpo e mundo.
Exu é o orixá considerado o comunicador entre os mundos. Ele traz consigo a complexidade dessa mitologia herdada da África, o que mais povoa o imaginário popular. Exu coloca tudo em movimento; ele é transporte e comunicação e, portanto, criativo. Às vezes, gera o caos, como nos disse Marlon Marcos. Já que ele é o das encruzilhadas, está sempre no vento de direções, o que remete ao reino do entrelugar. Ele organiza a civilização na sua temporalidade e atemporalidade como no inconsciente. Sem cronologia que dê conta da existência. “Que gera o desconforto e que faz a pergunta” (Marlon Marcos).
Seria um encontro possível com o que chamamos desejo? Não seria por essas travessias de encruzilhadas o que partilhamos na experiência clínica?
“Você quer o que você deseja.”[1]
Indiscutivelmente, existem muitas diferenças entre esses dois campos da psicanálise e religião, mas talvez algumas semelhanças. O desejo é anelado pelo passado, presente e futuro, assim como o candomblé.
Desejo, nesses dois casos, é uma articulação que se aproxima pela linguagem. Movimento em direção a uma marca psíquica, anelo de diferentes tempos da experiência. O que não se mostra claramente, cifrado, obscuro e que exige interpretação. Mantém-se indecifrável e sempre como pergunta do que o suscita, um brilho, uma textura, um som, um significante. Elemento nodal do “fundamento” e da experiência analítica.