Saulo Machado Cunha (participante do IPB)
[…] um duende travesso que nos prega peças: este é o desejo.
(Jacques-Alain Miller, 2013)
No Seminário 7, A ética da psicanálise, Lacan comenta que uma revisão ética das ações humanas pela perspectiva do desejo tem valor de “juízo final” no interior da psicanálise:
[…] o tragicômico existe. É aí que reside a experiência da ação humana, e é por sabermos […] reconhecer a natureza do desejo que está no âmago dessa experiência, que uma revisão ética é possível, que um juízo ético é possível, o qual representa essa questão com seu valor de Juízo Final – Agiste conforme o desejo que te habita? (LACAN, 1959-1960/1988, p. 367)
A perspectiva do tragicômico, por sua vez, não é o que Lacan parece apontar no que reside de oscilação e de engodo na experiência humana com o desejo? Talvez não tenha sido à toa que Miller tenha trazido um personagem do mundo da fantasia, o duende, para falar do desejo. Seguindo a indicação de Lacan (1958-1959/2016, p. 200) de que o desejo “é uma certa posição do sujeito em face de um certo objeto” e que esta relação se dá através da fantasia, é possível constatar que na relação do sujeito com seu desejo há uma fantasia, uma lenda, um duende.
O “duende travesso” é mais conhecido no Brasil como saci-pererê. Todos sabem: o saci-pererê entra pela janela da cozinha e troca o sal pelo açúcar; engana e amedronta quem viaja pela selva apagando as trilhas e emitindo gritos estranhos; assusta crianças, enfim, seus atos são artimanhas que tiram as coisas da ordem. O desejo, como algo eminentemente transgressivo e fora da norma, coloca o sujeito em questão. Dividido e em meio ao burburinho da linguagem, o sujeito é como que empurrado à fantasia, frente à opacidade do desejo do Outro. Afinal, como assim: eu troquei o sal pelo açúcar e acabei estragando esse jantar tão importante? Não… foi o saci-pererê.
Nesse sentido, Miller (2014, p. 15) traz uma indicação importante: “a própria fantasia é a interpretação do desejo”. Sendo assim, como é possível, à experiência analítica, guiar-se por algo indomável como o desejo? Como interpretar isso que se extravia, prega peças, desliza, descaminha e que apresenta o sujeito à sua divisão? Enfim, como a transferência – o amor – pode informar o sujeito de suas próprias travessuras? A lenda popular ensina um modo de captura e aprisionamento do saci: atira-se uma peneira no centro de um redemoinho de vento e, depois, retira-se seu gorro vermelho, pondo-o numa garrafa. Diferente da tática popular, o que pode o analista?
Carimbando nossa saída do mundo natural, a linguagem deu-nos a salvação e o engodo que é o desejo. Se é o desejo que magnetiza a direção da bússola analítica, talvez a aposta do analista seja fazer passar do sono fantasmático do gozo à inquietação do desejo: preocupado menos em capturar o saci e mais em apontar ali onde se faz redemoinho.