Marcus André Vieira
O dizer eficaz da análise
A passagem abaixo será o centro da pequena exploração que segue:
O dizer da análise, na medida em que é eficaz, realiza o apofântico, que por sua simples ex-sistência, distingue-se da proposição. Assim é que coloca em seu lugar a função proposicional, posto que, como penso haver mostrado, ela nos dá o único apoio que supre o ab-senso da relação sexual. Esse dizer renomeia-se aí pelo embaraço que deixam transparecer [trahissent] campos tão dispersos [éparpillés] quanto o oráculo e o fora-do-discurso da psicose, através do empréstimo que lhes faz do termo interpretação.[1]
Difícil parágrafo de um difícil texto, o “Aturdito”, inteiramente tecido por intensos enodamentos textuais como este. Apesar disto é passagem bastante conhecida e muitas vezes percorrida em nosso meio por fornecer indicações precisas sobre a interpretação. Nos limites deste artigo, visaremos a relação por ela estabelecida entre interpretação e psicose.
Antes mesmo de buscar referências que nos ajudem, permita o leitor que prossigamos, para começar, invertendo. É o final do parágrafo que nos interessa. Leiamos, portanto, de trás para frente, recortando o texto da seguinte forma:
- O termo “interpretação” é tomado de empréstimo a campos tão dispersos quanto o oráculo e o fora-do-discurso da psicose para renomear o dizer de uma análise.
- Esse empréstimo deixa transparecer um embaraço. É o embaraço de apoiar-se na função proposicional para suprir a relação sexual.
- Desta função distingue-se, por sua ex-sistência à ela, o apofântico.
- Realizar o apofântico é o que faz, quando é eficaz, o dizer da análise.
Esta montagem introduz uma pontuação alternativa e até certo ponto herética. Com ela, entretanto, podemos seguir a orientação de Lacan: fisgar algum sentido sem nele mergulhar.[2] Juntando, então, as pontas, podemos partir do seguinte enunciado: a interpretação analítica, entre tantos dizeres de uma análise é seu dizer eficaz por realizar o apofântico, o que, tal como ocorre na psicose e nos oráculos, desembaraça este dizer da função de suprir a relação sexual que não existe.
Intercessores
Lacan nomeia três intercessores, no sentido que J. A. Miller dá a este termo, o de submissão parcial a um apoio – que é aproximação e analogia, mas também contraponto.[3] São eles: Aristóteles, o oráculo e o psicótico, ou melhor, a lógica aristotélica, a decifração divinatória e o fora do discurso da psicose.
A articulação, no ensino de Lacan, entre o apofântico e a interpretação já mereceu observações precisas de muitos e seria impossível dar-lhes aqui o lugar necessário. Para poder seguir adiante, procederei dogmaticamente, resumindo o que posso formular quanto a este ponto com um mínimo de segurança.
O termo apofântico é utilizado por Aristóteles para caracterizar uma afirmação da qual seja possível dizer que é verdadeira ou falsa. O mesmo se poderia dizer do termo “proposição” em um sentido geral. Lacan, porém, institui no seio do universo das proposições uma oposição entre o apofântico e o modal, fazendo-a recobrir sua distinção entre desejo e demanda. Ambos são enunciados passíveis de um valor de verdade ou falsidade, no entanto, enquanto o modal diz respeito à demanda, o apofântico é o dito que incide sobre a causa do desejo. O apofântico afirma aquilo que “é”, as outras proposições falam do que “pode ser” caso isso ou aquilo aconteça.[4]
A interpretação está, portanto, com relação à proposição, articulada ao que parece exceder o valor de sentido de um dito, sendo entretanto, um dito. É radical, vazia de sentido, mas não, em si silenciosa ou mística (se por este termo entende-se algo de que, não podendo se falar deve ser calado). Dessa forma, se ela se relaciona com o oracular, não o será pelo transe, ou mantra. O dito apofântico é mais absoluto que silencioso. Enquanto o modal é a demanda da prece, o apofântico é a certeza da profecia.
Concluamos esse brevíssimo percurso com relação aos dois primeiros intercessores de Lacan para que possamos nos dedicar ao terceiro.[5] Em quê a indicação sobre o fora do discurso da psicose pode nos ajudar a entender o dizer da interpretação como dizer eficaz?
Iluminação específica
“Interpretação” não tem na tradição alemã da psiquiatria o mesmo destaque que na escola francesa onde Sérieux et Capgras cunharam, por exemplo, o delírio de interpretação. Nele, ela é um raciocínio falso que se desenvolve com uma capacidade de raciocinar intacta. Suas premissas é que são errôneas por conta de “tendências da afetividade” que perturbam o pensamento e levam a induções e deduções patologicamente falseadas.[6] O equipamento de atribuição de sentido, assim como a aparelhagem da senso-percepção estariam preservados, concepção também evidente na definição de Kraepelin da paranóia.[7]
O essencial vai se articular, portanto, a esta falha fundamental por onde irrompe a patologia e que, perturbando os funcionamentos normais da vida psíquica, levaria às formas clinicamente observáveis da psicose. Este núcleo básico da loucura, grau zero de sua forma psicopatológica será delimitado de várias maneiras: “Vivências delirantes primárias”, como o denomina Karl Jaspers; “percepção delirante” em oposição à “representação delirante”, como tende a proceder a tradição alemã; ou ainda “intuição delirante” em oposição à “interpretação”.[8]
Lacan avança neste debate desde sua tese. Ele segue estas distinções sem, no entanto, nelas centrar seu argumento. Visa delimitar o ponto central do delírio e, neste sentido, o termo geral “interpretação” é tão bom quanto qualquer outro. Importa, sobretudo, localizá-la como “experiência surpreendente”, uma “iluminação específica”, de “parentesco indiscutível com os sentimentos de estranheza inefável, de déjà vu, de jamais vu, de fausse reconnaissannce” etc.[9]
No Seminário 3 ele prossegue, a partir das mesmas premissas, na descrição disto que é iluminação, mas sempre localizada e especificamente definida com a expressão: “interpretação elementar”. Crucial será o termo “elementar”, indicando uma base primária que pode vir a ser elaborada, articulada a outras experiências, mas que, em si, é impossível de “integrar em um diálogo”, pois “o fenômeno está fechado a toda composição dialética”.[10]
O termo “interpretação” designa a esta altura o elementar do delírio, mas também “intuição”, definida de modo análogo a partir da ruptura que representa. É um “fenômeno pleno, que tem para o sujeito um caráter submergente, inundante” suas formas básicas, o enigma e a repetição, “páram a significação”. Assim como a interpretação, a intuição delirante é um “chumbo na malha”, na rede do discurso do sujeito.[11]
Fenômeno elementar
Seja como interpretação ou como intuição o que importa é a “característica estrutural” de iluminação específica, marco organizador do campo do sentido. É preciso não perder de vista seus vínculos com um registro fundamental que organiza as vivências em vez de ser, ele próprio, vivência. Para designar estes núcleos centrais da experiência da psicose Lacan adotará uma expressão que elimina qualquer menção à compreensão, à atribuição de sentido e que tomará de empréstimo a Clérambault. É seu célebre “fenômeno elementar”.
Para a psiquiatria importava distinguir entre o que se apresentava como imediato e o que se caracterizava como leitura, secundária, do fenômeno perceptivo. No entanto, ambos os fenômenos evidenciados no campo do vivido, digamos, psicológico, opunham-se a uma “causa interna” no dizer de Kraepelin. O “interno”, aqui, define na verdade uma exterioridade a este campo, um “fora do vivido”, algo “anidêico”, localizado, por exemplo, pelo termo “orgânico”. Em outros tempos, os psiquiatras contentavam-se em supor uma vaga “causa interna” nos termos de Kraepelin, ou uma “irritação serpiginosa”, nos de Clérambault, para o fundamento orgânico dos fenômenos psíquicos. Apesar da enorme distância que os separa da psiquiatria neurológica de hoje o ponto de vista é o mesmo, pois esta última situa nas fragilidades genéticas ou em alterações da taxa de neurotransmissores suas causas. Migrando para o laboratório, ela assenhora-se da causa. As causas, agora transmissores, receptores e sinapses, se tornam objetivamente acessíveis e relativamente manipuláveis. Mantemo-nos, contudo, a anos-luz da experiência subjetiva e da possibilidade de uma intervenção clínica.[12]
E Lacan? Sua posição é clara: os psiquiatras acertaram ao produzir descrições tão precisas do ponto em que o fenômeno elementar emerge. Ele se impõe em ruptura com o plano do sentido tanto para quem o observa quanto para o próprio sujeito que o vive. Este é o paradoxo que Lacan busca desdobrar com seu fenômeno elementar. Ele se dá no campo do sentido, mas neste campo é ruptura, pois “se situa no plano da compreensão como fenômeno incompreensível”.[13] É preciso, segundo ele, seguir Jaspers e desconsiderar as causalidades psicológicas. É preciso abandonar qualquer esperança de que, com empatia, introspecção ou psicologia possamos compreender o que está em curso. Dito de outro modo, o fenômeno elementar não se explica.[14] Neste momento, porém, em lugar de se afastar do concreto da experiência e partir em direção aos laboratórios, à sociologia ou à filosofia, como faz o próprio Jaspers, Lacan não perde de vista o sujeito que está tomado pelo fenômeno e que, mesmo experimentando-o como absoluta ruptura, busca reestruturar-se para fazer suas vivências caberem dentro de seus postulados.[15]
Interpretar?
Este ponto de aparente paradoxo em que algo fora do sentido se dá dentro do sentido resolve-se com a distinção entre “fora do discurso” e “fora da linguagem”, implícita na passagem do “Aturdito” que nos interessa. A interpretação, assim como o fenômeno elementar é chumbo na malha e neste sentido é apofântica, mas é proposição; é fora do sentido, mas é fala; não é significado, mas é significante e finalmente, ela é fora do discurso, mas isso não significa que seja fora da linguagem.[16]
O inconsciente está estruturado a partir de significantes e não de significados. Aqueles se repetem, estes são sempre variáveis e continuamente reelaborados, em uma articulação análoga a que propõe Lacan entre o fenômeno elementar e o delírio. Neste sentido, podemos aproximar os insights e sínteses que o neurótico realiza quotidianamente com o delírio na psicose, assim como os fenômenos elementares com os significantes-mestres de uma história. Apenas neste plano, latu sensu, podemos falar em delírio generalizado, desde que não esqueçamos que o termo “delírio” aqui não tem a mesma significação que na psiquiatria e nem mesmo na da expressão “delírio na psicose”.[17]
O importante é ressaltar o quanto a posição de Lacan permite localizar a compreensão em seu lugar. Não buscaremos compreender o fenômeno psicótico, nada ganharíamos em tentar encapsular pelo sentido um fenômeno que é preliminar a todo sentido possível. Em compensação, mantendo-nos no plano da linguagem e seguindo ao pé da letra o que se diz e ouve na experiência subjetiva, podemos participar do trabalho artesanal de ordenação que realiza o psicótico, dentre o que vive, entre o que poderá ou não ser tomado como vivência sua e que abre as portas a uma composição nova entre o que se apresenta para ele nestes diferentes registros. Este trabalho, aproximado do secretariado em uma metáfora célebre de Lacan, segue o modo como ele situa a interpretação do sonho: ao pé da letra. Nada de buscar o que o sonho quer dizer, seu sentido oculto, mas apenas rearticular o que, ali, foi dito.[18]
A interpretação é corte, de acordo. Porém, se ela é ruptura com a ordem do sentido é também apresentação das balizas significantes que ordenam esta ordem para um sujeito. A interpretação é furo (no sentido), mas igualmente presença que sustenta uma certeza. No plano do discurso e da significação compartilhada tudo pode ser interpretado e reinterpretado. Algo, porém, está marcado “com o ferro do significante” na carne de cada um e quanto a isso não há o que discutir, apenas nomear, tornando disponível aquilo que já estava lá, mas não podia se dizer. Essa é a interpretação analítica. Nos termos de Lacan: “A interpretação só rompe o discurso para parir a fala”.[19]
A fala analisante, nos momentos em que é este dizer eficaz, esvazia a suposição neurótica de uma função proposicional única que ordenaria o sentido de todas as proposições de um sujeito. Ex-siste a elas por assinalar os marcos zero de toda história possível para um sujeito. É o que destaca com vigor o último ensino de Lacan, em que a interpretação é definida por Miller “como fazer soar outra coisa que não o sentido”.[20] Ela é a base necessária para que se possa fazer soar este grau zero do sintoma, permitindo que se atinja, a partir daí, uma nova satisfação. É o que está realmente em jogo no ato analítico. Será possível? Nesta arte incerta reside a aposta de uma análise.