Antecedentes do discurso capitalista

Antecedentes do discurso capitalista

Patrício Alvarez

Inicialmente, quero destacar os dois elementos centrais que para Lacan definem um discurso: (1) o discurso é o laço social; (2) o discurso é um modo de tramitar o gozo .

Se tomarmos o laço social como a cultura e o gozo como equivalente ao mal-estar, podemos dizer que os discursos são os modos nos quais a cultura tramita seu mal-estar estrutural .

Quero marcar neste trabalho de que modo Lacan, ao mesmo tempo em que concebeu os seus discursos (1968), localizou os modos políticos pelos quais a cultura da sua época tramitava o seu mal-estar .

Lacan diz que seus quatro esquemas são a tentativa de construir uma lógica da incompletude, onde a propriedade de cada um deles é implicar sua hiância . Nos quatro casos se circunscreve um vazio . Se o real é o que não cessa de não se inscrever, esse gozo impossível de cifrar é o que os discursos tramitam de um modo ou de outro .

Portanto, se a relação sexual não existe, a questão é saber como se coloca a impossibilidade .

A pergunta, então, é: como uma época vive a pulsão? No Seminário 17, Lacan tenta responder a esta pergunta utilizando os discursos para situar, nas formas de dominação da época, os distintos modos de colocar o impossível .

Se a filosofia tem buscado historicamente evadir o real para tentar se localizar só no campo da verdade, a política, ao contrário, en- tendida como as diferentes formas de governo ou dominação, permanentemente inclui e trata de algum modo esse real impossível de cifrar .

Quero trabalhar um ponto que me surpreendeu ao ler o Seminário 17: Lacan descreve ali um discurso capitalista equivalente ao discurso universitário, o qual define assim: o todo saber tem vindo ao lugar do mestre . O interessante é que este discurso, ao qual chama discurso capitalista, tem características bastante diferentes das do famoso discurso capitalista da conferência em Milão, cuja fórmula é a seguinte:

 $  → S2
S1        a

Portanto, Lacan formalizou de dois modos diferentes o discurso capitalista, e me parece interessante poder entender quais são essas diferenças .

Acredito que estas duas variações do mesmo discurso foram dois modos diferentes de Lacan entender a sua época, dois modos diferentes de localização do mestre e de tramitação do gozo, e, em referência a isso, dois modos diferentes em que o analista deve se posicionar diante da sua época . Neste trabalho vou me circunscrever ao primeiro modo .

A primeira diferença que se deve estabelecer entre estas duas formalizações é que se o primeiro (1968) se baseia sobre o todo saber, o segundo (1970) se baseia no rechaço da castração .

Mesmo que pareçam dois modos de dizer o mesmo, podemos dizer que enquanto um discurso necessita do horizonte de um saber que consiga subsumir por completo o gozo, o segundo é de um mecanismo muito mais bem-sucedido: ao rechaçar a castração, este discurso se fundamenta num gozo ao alcance da mão, ou seja, um gozo para todos (para todos os que possam pagá-lo) .

Assim, a formalização do discurso capitalista do Seminário 17 não é outra coisa que uma formalização da dialética marxista, ao mesmo tempo em que é uma crítica a um Marx hegeliano e revolucionário, crítica que permite a Lacan prever de um modo brilhante o fracasso do comunismo . Por outro lado, a segunda formalização implica uma superação da dialética marxista, ou seja, no segundo caso Lacan examina um discurso político pós- marxista, que lhe permite se adiantar inclusive às formas de poder econômico da sua época,

prevendo um novo modo da política que já não

mais se baseia nas idéias, que já não necessita do saber, só necessita do gozo .

Discurso universitário – discurso capitalista

Vou partir de três citações paradoxais do Seminário 17 que me parecem fundamentais e não podem ser entendidas separadamente:

  • nossa época é a da nova tirania do saber;
  • o discurso do mestre moderno, chamado capitalista, é o discurso universitário; (3) Marx é o fundador do capitalismo .

Lacan diz isto sem rodeios na página 32: “o que se produz ao passar do discurso do mestre antigo ao do mestre moderno, que chamamos capitalista, é uma modificação no lugar do saber” . E o define como o discurso universitário .

Por que Lacan localiza o discurso universitário como o do mestre capitalista? Poderia ser dito que é uma provocação ao marxismo revolucionário desses anos . Porém, além disso, é uma formulação que tem o valor, nada mais e nada menos, de definir todas as formas de dominação da época a partir da mudança do lugar estrutural do saber . A autoridade, nesta época, não se funda mais num ideal, num S1 que sustente a ordem do rei ou do general, senão no uso, a utilização de uma forma particular do saber, o saber do mestre .

Por isso Lacan define a época contemporânea como a nova tirania do saber . Assim descreve as formas de governo da sua época: nem democracia, nem liberalismo, nem comunismo: tirania do saber .

M .H . Brousse destaca que o termo tirania do saber manifesta o essencial da tese política de Lacan neste Seminário e diz que esta tirania se produz na história a partir da introdução do discurso da ciência .

Essa tirania do saber se produz pela passagem do saber ao lugar de agente do discurso, por um ato de apropriação em que Lacan responsabiliza a filosofia de usurpar do escravo seu saber fazer, formalizando-o em benefício do mestre . Lacan diz: “a filosofia na sua função histórica é essa extração, quase diria essa traição, do saber do escravo para conseguir convertê-lo em saber do mestre” (p . 21) .

De qualquer forma, isto não responde por que Lacan localiza o capitalismo como o centro desta tirania do saber . Para explicá-lo temos que recorrer à terceira citação, que parece uma gozação: Marx fundador do capitalismo . É o fundador, porque no Capital localizou como o mais-de-gozar pode se contabilizar como mais-valia, e portanto pode se acumular . Assim como a ciência formaliza o real produzindo um saber do real, Marx formalizou como o mais-de-gozo pode contabilizar-se e, portanto, utilizar-se . Quer dizer que Marx formalizou o modo como o gozo pode transformar-se em saber .

Porém, Marx conseguiu tornar mais surgimento da ciência e logo formalizada por Marx . Lacan não situa como opostos essas formas políticas que imperam na sua época, às quais chama ironicamente modos de vida, senão que as localiza como duas caras de um mesmo movimento, unificando-as mediante um mesmo matema: o matema do discurso universitário .

Por esta razão é central a definição da época como a nova tirania do saber, porque, ao localizar o S2 no lugar do mestre, Lacan pode sintetizar numa mesma fórmula as formas opostas de dominação da época .

Os novos lugares desta mudança do discurso são os seguintes:

 S2  a
S1        $

Neles Lacan localiza os seguintes termos:

 

Lacan vai chamá-lo o fantasma do saber-totalidade, localizando ali tanto a fantasia hegeliana de uma autoconsciência absoluta, ou a fantasia marxista de uma sociedade sem diferenças sociais, quanto a fantasia iluminista de um progresso científico que elimine as diferenças por meio da razão . Em todos os casos, o saber-totalidade implica o fantasma de uma redução total do mal-estar, quer dizer, a eliminação do gozo mediante o saber .

Burocracia marxista, capitalismo científico

Uma vez aclarado como este matema sin- tetiza os modos de dominação da época, que Lacan vai chamar de burocracia e capitalismo científico, quero agora examinar como Lacan os diferencia, dando ao mesmo matema duas formas de funcionamento diferentes .

Para a burocracia, Lacan diz o seguinte: “é singular ver que uma doutrina tal como instaurada por Marx, articulada em função da luta de classes, não impediu que junto com ela nascesse algo que é pelo momento a manu- tenção de um discurso do mestre” . Apesar de Marx, sua doutrina não fundou uma sociedade mais justa, ao contrário fez nascer outro mestre . Logo explica por que o coloca como discurso universitário: “o que ocupa o lugar

A conseqüência desta mudança de posições é a de uma nova forma de dominação, que consiste na idéia de que o saber pode constituir uma totalidade e, portanto, subsumir o gozo instaurada por Marx, articulada em função da luta de classes, não impediu que junto com ela nascesse algo que é pelo momento a manu tenção de um discurso do mestre” . Apesar de Marx, sua doutrina não fundou uma sociedade mais justa, ao contrário fez nascer outro mestre . Logo explica por que o coloca como discurso universitário: “o que ocupa o lugar que chamaremos de dominante é isto, S2, cuja característica é ser […] todo saber […] e que se chama burocracia” (32) que chamaremos de dominante é isto, S2, cuja característica é ser […] todo saber […] e que se chama burocracia” (32).

A burocracia socialista é, então, a instituição de um Estado constituído no Outro do saber absoluto, um Estado que realiza essa ilusão Lacan diz aos estudantes: “o que reina na URSS é a Universidade Assim concebo a organização da URSS: o saber é o rei” .

Neste todo saber da burocracia, o que não se deve saber é a verdade, que é a verdade do mestre Desse discurso que esperávamos a justa distribuição do mal-estar, do qual esperávamos a verdade, só se revela a verdade do mestre .

O grande erro de Marx foi ter seguido a senda de Hegel: por esta ilusão do todo saber, Marx pode alegar o fim da história hegeliana, uma sociedade na qual a mais-valia seja distribuída eqüitativamente pelo Estado como lugar do saber, quer dizer, uma sociedade sem resto, de um Estado que distribuiria em partes iguais o gozo .

Lacan fala aos estudantes sobre essa ilusão hegeliana: “por sustentarem com todas as forças um discurso do mestre pervertido – é o discurso universitário . Rhegelem-se, diria eu.” E diz: “não por nacionalizar os meios de produção, no nível do socialismo de um só país, se acaba com a mais-valia, se não se sabe que coisa é” . Isto é, o gozo não se pode distribuir, não há sociedade sem resto .

Entende-se por que esta forma de governo pôde dar um Stalin: é a mais próxima da realização dessa ilusão do todo saber .

A segunda forma de poder que Lacan designa é a do capitalismo propriamente dito, o capitalismo científico . Diz Lacan que este é o desenvolvimento mais sofisticado do discurso do mestre, mais desenvolvido inclusive que o socialismo: “não foi necessário esperar que o discurso do mestre se desenvolvesse por completo até revelar sua melhor expressão no discurso do capitalista, na sua curiosa copulação com a ciência” . (116)

Como Lacan o explica? Pela realização de um mandato: o mandato superegóico da ciência que diz: siga sabendo . Esse mandamen- to superegóico é o S1 que comanda o saber científico . É o saber científico (S2) no lugar do agente, comandado pela sua verdade, o mandato a seguir sabendo (S1), mandato que pela mesma razão se torna impossível de deter . Este é o puro saber do novo mestre. Diz Lacan: “É impossível deixar de obedecer a essa ordem que está aí, no lugar que constitui a verdade da ciência – Siga, adiante . Siga sabendo cada vez mais . Precisamente por este signo, porque o signo do mestre ocupa esse lugar, toda per- gunta pela verdade fica apagada, precisamente toda pergunta acerca do que pode encobrir este signo, o S1 da ordem Siga sabendo” . (110) Já designa esse discurso como uma perversão do saber, perversão do mestre antigo em mestre do saber .

Neste ponto, Lacan ironiza com a posição dos universitários, dizendo-lhes que eles mesmos são o que a sociedade capitalista consome, são os objetos de gozo da sociedade . O universitário é o trabalhador, o escravo desse discurso, que trabalha para o saber . Por isso os chama astudados, porque são ao mesmo tempo os objetos de gozo do sistema e seu produto: sujeitos localizados em posição de objetos a serem consumidos, sejam estudantes ou trabalhadores . Por isso Lacan diz que o sujeito mesmo fica localizado num lugar equivalente ao da latusa: “são produtos, tão consumíveis como os outros . Como se costuma dizer, socie dade de consumo . O material humano, como se falou no seu momento, e alguns aplaudiram considerando-o um elogio” .

Por isto mesmo, o protesto dos estudantes nessa época é carente de efeitos, porque a denúncia está no lugar do produto: a denúncia do sintoma do sistema mal localizada em seu lugar é a denúncia inoperante . Lacan diz para eles: não se tem perguntado como esta socie- dade capitalista pode se permitir o luxo de um relaxamento tal do discurso universitário que tem levado a este protesto? Justamente, essa sociedade pode permiti-lo porque a denúncia, localizada nesse lugar, é inofensiva . Esse é um dos funcionamentos da verdade localizada como impotente: por mais que se diga aos gritos, não muda nada .

Por último, numa previsão brilhante, Lacan localiza claramente como a intenção revolucionária do socialismo fracassará diante do desenvolvimento do capitalismo científico . Localiza numa crítica à revolução que utiliza o saber do manual maoísta, dizendo: “num mundo onde tem surgido de uma maneira que já não existe o pensamento da ciência, a não ser a ciência de alguma maneira objetivada, quero dizer essas coisas forjadas inteiramente pela ciência, esses aparelhinhos, bugigangas e demais [        ] pode pesar o bastante o saber fazer

do manual para ser um fator subversivo?”

Totalitarismo 

Por último, Lacan dá algumas chaves para pensar o totalitarismo como uma realização da ilusão do todo saber Diz: “a idéia de que o saber pode constituir uma totalidade é, se assim se pode dizer, imanente ao político enquanto tal” Assim, a idéia do todo saber, na medida em que se tem realizado historicamen- te, deu lugar às formas de totalitarismo que conhecemos: o nazismo e o stalinismo Cada um a seu modo, Hitler e Stalin têm se loca- lizado na posição de encarnar esse S2, como instrumentos desse saber da história . S ŽiŽek diz que quem o realiza mais claramente é Stalin, que, apoiando-se na suposta ciência objetiva do materialismo histórico, sustentava todas as suas ações totalitárias em ser seu agente de realização . Desse modo, não havia distância entre suas decisões e a verdade histórica . Esta figura é muito diferente da do mestre clássico, por exemplo, o rei, que situado no lugar

da autoridade, do S1, ordena a seu arbítrio simplesmente porque é o rei . Neste caso, Stalin não dava ordens, ele era simplesmente um instrumento da história que nele se realizava, pelo seu próprio movimento dialético, um instrumento do Outro semelhante ao verdugo sadeano . Assim também o fazia Hitler, que sustentava seu ato totalitário mediante uma espécie de darwinismo feito à medida, nas supostas leis da natureza .

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