Discurso universitário

Discurso universitário

Luis Tudanca

Com a expressão “discurso universitário” se aponta hoje, de um lado, um laço social muito extenso e, de outro, a modalidade em que tal laço se apresenta. Sendo o discurso que delimita posições e distribui lugares, o discurso universitário os fixa no paradigma professor-aluno. O resultado, contudo, é que o par professor-aluno resume a extensão ilimitada dos vínculos que, antes, eram reassegurados na simetria e, hoje, deambulam na avaliação.

Qualquer um pode entender o deslocamento lento e imperceptível, ainda que paradoxal em suas misturas, de certas relações, por exemplo, pai e filho, que viram e reviram do desigual, do não proporcional, ao valorizar…o valor futuro.

Isso quer dizer que os termos senhor e escravo, burguês e proletário e ainda chefe e empregado perduram por nostalgia dos velhos tempos. Isso é o que Lacan resumia com o nome de discurso do mestre antigo, tempo da lei e não do contrato.

Ocorre que esse passou pela peneira do discurso universitário. Passar pela peneira e examinar, conscienciosamente, uma pessoa ou coisa. Com uma consequência: a própria família se transforma em universitária, com pais que são professores e educam sem transmissão, com ou sem títulos.

Por isso, o discurso universitário é, para Lacan, o discurso do mestre contemporâneo, mas também o “que se chama capitalista”[1], uma mutação capital que, em sua disposição fundamental, “que mostra onde o discurso da ciência se alicerça”[2]. Em que se apoia, e não o que é. Não a ciência que manipula o real, e sim aquela que nos diz diariamente onde estamos situados.

Equivalências da equivalência-base, sustentadas em um saber que não é qualquer saber, já que se caracteriza por ser um “não saber-de-tudo, nós não chegamos aí, mas tudo- saber”[3].

Vale esclarecer que, para Lacan, isso corresponde à essência da burocracia. Uma coisa é a burocracia como instrumento de gestão e outra, a burocracia do saber. Na primeira, trata-se apenas do “estabelecimento do necessário para o funcionamento”[4]. Na segunda, tudo está organizado como saber e isso trava qualquer funcionamento. Há então, no materna S2, como agente do discurso universitário una redução inacreditável: a figura do professor generalizada, o capitalismo em seu funcionamento hoje, a ideologia da ciência, falsa ciência, e a burocracia associada a esse tipo de saber. Lacan chama a tudo isso de: a nova tirania do saber.

Para completar o lado esquerdo desse discurso, Lacan põe o significante mestre no lugar da verdade, razão pela qual toda pergunta sobre a verdade se achata. Um sujeito instalado no discurso universitário conhece perfeitamente a lei, mas esta é inoperante em razão do lugar que ocupa.

Trata-se do aluno como objeto a, chamada por Lacan de astudado, a fim de indicar com esse termo o lugar de objeto em que está instalado.

Pois bem, o objeto a funciona como mais-de-gozar em todos os discursos, dando ao estudado essa característica especial de “ser apenas unidade de valor”[5], um produto tão consumível quanto qualquer outro, mas, além disso, equivalente, quer dizer, sendo perfeitamente substituíveis um pelo outro, algo que cria um clima de traição mais do que de competência.

Circuito feroz e permanente em que qualificar mediante a avaliação se converte numa aposta que desliza para um tudo ou nada de que se esquiva, mas para a voltar a apostar, ou então se cai do próprio discurso.

Lacan não se priva de assinalar que as ciências humanas são responsáveis por tomar o humano como húmus, acentuando o caráter de dejeto – ao mesmo tempo decomposição e abono – que compete ao astudado.

Reprodução eterna a que o submetido espera submeter outros numa corrida interminável, cuja rota é a segregação, levando a Lacan a concluir que, na sociedade humus, “tudo o que existe se baseia na segregação”[6].

No que diz respeito ao sujeito, encontra-se no lugar do mais-de-gozar sem amarração alguma com um significante mestre. Por isso Lacan afirma que o estudado deve constituir a divisão subjetiva com sua própria pele.

Psicopatologia do discurso universitário[7].

Em primeiro lugar, a posição de objeto do astudado o torna propenso à passagem ao ato, toda vez que a imagem de si vacila em espelho com S2. Mas também faz pensar numa variedade dos chamados sintomas contemporâneos, que muitas vezes são consequência da instalação de um sujeito em tal discurso… ou de sua queda dele.

Efetivamente, verificam-se, em alguns casos, os vaivéns produzidos ao cair desse discurso, sem que isso constitua um fora de discurso.

Há a emergência de ataques de pânico em que prima uma angústia pura, constituinte, não constituída, surgida por não se qualificar ou por ficar fora de algum contrato de trabalho, o que empurra ao desamparo.

Às vezes, também há depressões que acompanham essas quedas, desajustes ou perdas de rumo, sempre que uma avaliação lembra ao sujeito que ele não o é.

Nem se fale do astudado estudando. Prevalece o estudar decorando, que é um estudar sem sujeito. Nada de implicação subjetiva nesse ato, bem como o esquecimento mais absoluto de tudo que se leu depois do exame. Crescente tolice subjetiva não de manejos de cálculo, mas de perda na orientação no desejar, já que se deseja apenas o mais-d e-gozar. Assim também certas anorexias que se comprovam como respostas à submissão ao saber, com seu lado superegóico, que faz da dieta uma obrigação para a obtenção da boa e saudável imagem corporal.

O objeto a como mais-de-gozar não é a mesma coisa do que os objetos a, e tampouco o a mais que daria um ser, em seu avesso, um objeto que divida o sujeito. Do singular ao plural é a passagem por uma psicanálise.

No discurso universitário, o ser lhe dá a tese que logo tem de revalidar. Enquanto isso, desordem pulsional que indica não vacilação da fantasia, e sim desfalecimento.

Ante as tentações e o despudor oferecidos pelo discurso universitário, a psicanálise não responde à tirania do saber, nem à ditadura do mais-d e-gozar, já que, recorda Miller, “a prática lacaniana exclui a noção de êxito” e, além disso, é “uma prática sem valor”[8].

Lacan indicou, por sua vez, certa especificidade nas intervenções com os estudados: produzir vergonha, às vezes ensinar a ler o sintoma (para ler, é necessário dispor de um S1), nenhuma conivência com o incremento de valor a que o astudado aspire, indiferença em relação ao mais-de-gozar do analisante…caso ele se constituísse.

 

Texto originalmente publicado em Scilicet “Os objetos a na experiência analítica” Tradução: Elza Marques Lisboa de Freitas. Associação Mundial de Psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2008. P.94-96.
Luis Tudanca (membro da AMP e da EOL). AE (2010-2013). Bendegó agradece a amável autorização do autor.

[1] Lacan, Jacques. (1969-1970).  O seminário: livro 17: o avesso da psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. p.30.
[2] Ibid. p. 97.
[3] Ibid. p. 29.
[4] LAURENT, Eric. Le dialogue Lacan/ Kojève sur la burocratie et l’empire. Ornicar? Digital: Revista Eletrônica Multilíngue de Psicanálise, Paris, n. 4, set. 1998. https://www.wapol.org/ornicar/articles/lrn0059.htm
[5] Lacan, Jacques. (1969-1970).  O seminário: livro 17. p. 76.
[6] Ibid. p. 107.
[7] Seguimos aqui a orientação do curso “Clínica do discurso universitário”, dado por Juan Carlos Indart desde 2005.
[8] Miller, Jacques-Alain. (2004). “Uma fantasia”. IN: Opção Lacaniana, n. 42, São Paulo, Eolia, p. 7–18.
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