Considerando que os psicanalistas devem conseguir responder ao mal-estar da civilização da época em que vivemos, impõe-se a nós uma pergunta: como ler a atualidade? Como ler a modernidade ideológica?1
Podemos dizer – junto com Miller, em seu curso Piezas Sueltas2 - que nossa época se caracteriza como a época onde o “poder é a impotência”3 – como afirmava Lacan em seu “Discurso aos católicos” ao referir-se à psicologia moderna –, na qual o governo prescinde da política, já que se trata do governo por “peritagem coletiva”4, ou seja, anônimo. Segundo Lacan – tal como destaca Miller –, se trata de um chamado ao pai – significante mestre – que prepara o retorno da autoridade em suas formas mais terríveis5 (p.ex. Totalitarismos).
Por outro lado, fica evidente que a ficção reguladora na ordem social atual é a da “liberdade do consumidor”6, que se traduz pelo matema do sujeito barrado, que “verdadeiramente”, está comandado pelo mestre.
No Seminário III[i] Lacan afirma que antes de fazer o diagnóstico de psicose devemos exigir a presença dos transtornos de linguagem. O ensino de Lacan transitou por diferentes momentos e se pode afirmar que sempre se preocupou com o tema em toda a sua amplitude: linguagem, discurso e escrita como constantes, tomaram diferentes matizes. Entretanto, há algo que se mantém desde o início, um ponto freudiano tomado por Guiraud e Lacan desde muito cedo, nas palavras atuais: o gozo de lalíngua e o discurso.
Inicialmente, quero destacar os dois elementos centrais que para Lacan definem um discurso: (1) o discurso é o laço social; (2) o discurso é um modo de tramitar o gozo .
Se tomarmos o laço social como a cultura e o gozo como equivalente ao mal-estar, podemos dizer que os discursos são os modos nos quais a cultura tramita seu mal-estar estrutural .
Quero marcar neste trabalho de que modo Lacan, ao mesmo tempo em que concebeu os seus discursos (1968), localizou os modos políticos pelos quais a cultura da sua época tramitava o seu mal-estar .
A passagem abaixo será o centro da pequena exploração que segue:
O dizer da análise, na medida em que é eficaz, realiza o apofântico, que por sua simples ex-sistência, distingue-se da proposição. Assim é que coloca em seu lugar a função proposicional, posto que, como penso haver mostrado, ela nos dá o único apoio que supre o ab-senso da relação sexual. Esse dizer renomeia-se aí pelo embaraço que deixam transparecer [trahissent] campos tão dispersos [éparpillés] quanto o oráculo e o fora-do-discurso da psicose, através do empréstimo que lhes faz do termo interpretação.[1]
Difícil parágrafo de um difícil texto, o “Aturdito”, inteiramente tecido por intensos enodamentos textuais como este. Apesar disto é passagem bastante conhecida e muitas vezes percorrida em nosso meio por fornecer indicações precisas sobre a interpretação. Nos limites deste artigo, visaremos a relação por ela estabelecida entre interpretação e psicose.
No final do ano de 1974, ao fazer sua terceira conferência na cidade de Roma, Jacques Lacan ([1974] 1980) provocativamente interrogou se a psicanálise seria um sintoma. Dizendo, logo a seguir, não formular perguntas cuja resposta não soubesse de antemão, ele definiu o sintoma como algo que vem do real. Para explicá-lo, disse que o sintoma apresenta-se como um peixinho cuja boca voraz não se fecha se não se lhe põe sentido sobre os dentes. Então, de duas uma: ou ele cresce e multiplica, ou ele morre. Diante das duas possibilidades, melhor seria que ele morresse, afirma.
Não sem mencionar Freud ([1916-1917] 1974) nas suas “Conferências introdutórias sobre a psicanálise”, Lacan observou que “o sentido do sintoma não é aquele com que se o alimenta para a sua proliferação ou extinção, o sentido do sintoma é o real” (Lacan, [1974] 1980: 168), real entendido como aquilo que “impede que as coisas andem no sentido em que dão conta de si mesmas de ma- neira satisfatória” (Lacan, [1974] 1980: 168). Em resposta à provocação inicial, propôs que o sentido do sintoma depende do futuro do real, ou seja, do êxito da psicanálise. Se o que se pede da psicanálise é que nos libere do real e do sintoma, se ela triunfar nisso não teremos muito a esperar senão um retorno da “verdadeira religião” (Lacan, [1974] 1980: 168). Caso seja bem-sucedida, ela própria se extin- guirá, restando apenas como “um sintoma esquecido” (Lacan, [1974] 1980: 169). Portanto, a conclusão de Lacan é de que tudo depende da insistência do real, e para que ele insista é preciso que a psicanálise fracasse no que se lhe pede. Na sua avaliação, ela está no bom caminho e tem grandes probabilidades de continuar sendo um sintoma.