Ódio, racismos e o devir do mundo

Ódio, racismos e o devir do mundo

Flávia Cêra (EBP)

“[…] parece que os povos obedecem agora muito mais às suas paixões do que aos seus interesses”¹.

Como pensar as relações entre ódio e racismo? O primeiro deságua necessariamente no segundo? Laurent retoma Lacan apresentando o laço social fundado em uma rejeição primordial que constitui o ódio: “não é um homem aquele que eu rejeito como tendo um gozo diferente do meu”². Odeia-se, porém, o desconhecido do próprio gozo. Como, então, esse desconhecido se apresenta como diferença reconhecível e ganha um alcance na cultura com consequências que se arrastam por séculos? E ainda: a lógica da exclusão contempla a profusão da violência racista de nossos dias?

Achille Mbembe, em seu livro Crítica da razão negra, apresenta o racismo como a identificação do homem não com aquilo que o torna igual aos outros, mas com aquilo que o distingue deles: “tudo que não é idêntico a mim, é anormal”. É sobre o fundo de uma nomeação europeia que o “negro” passa a existir, e a empresa colonial e civilizadora não deixará de produzir cesuras que precipitarão o lugar do negro como aquele que não é homem. A “razão negra” se constrói aí e “[…] se consola odiando, manejando o terror, praticando o alterocídio, isto é, constituindo o outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto propriamente ameaçador, do qual é preciso se proteger, desfazer, ou que, simplesmente, é preciso destruir, na impossibilidade de assegurar o seu controle total”³.

Miller diz que o ódio racista é o ódio ao próprio gozo, que, desconhecido, se localiza no outro para poder extirpar essa perturbação opaca que escapa à simbolização⁴. Há um Outro que ameaça minha existência e deve ser excluído. Este, alerta Mbembe, sempre foi um dos paradigmas da política na modernidade.

Algo mudou, as tecnologias do biopoder já não dão conta de explicar as práticas contemporâneas. Por isso, Mbembe acrescenta à biopolítica e à disciplina o necropoder, que ultrapassa a ideia de inclusão e exclusão, de produção da vida, e passa a ter, no seu horizonte, o massacre e o extermínio como solução operante na destituição do Estado como detentor do monopólio da violência e na reconfiguração da guerra com o apagamento das diferenças entre os campos políticos externos e internos⁵. Se havia regras intrínsecas no regime de soberania em que vigorava a biopolítica, se era preciso delimitar o dentro e o fora e se servir de formas jurídicas de exceção, na necropolítica isso não é necessário. O que outrora se validava pelo progresso, de desenvolver o que se considerava subdesenvolvido⁶, circula agora em uma matriz orientada pelo discurso capitalista que privilegia contornos indefinidos. Nesse sentido, podemos verificar no mundo inteiro um esgotamento das políticas de inclusão e disciplina, a crise da imigração e a precarização das relações de trabalho como seus maiores exemplos. Por consequência, a lógica da exclusão tampouco encontraria lugar. Não obstante, constroem-se muros, cercas e toda a sorte de identidade nacional que empurra o racismo para uma política cotidiana autorizada pelo discurso do mestre que manipula um ódio difuso e generalizado anunciando, como destino e sintoma, o que Mbembe nomeia como “devir-negro do mundo”⁷.

O que se apaga nesse cenário é o limite que a palavra é capaz de fazer. O laço sustentado no discurso de ódio é frágil: ele pode facilmente alcançar o ponto em que a palavra se demite, e o campo da violência aparece livre. E à violência disseminada, constantemente, responde-se com a guerra. A psicanálise, contudo, sabe que a paz é uma ilusão, no entanto não deixa de apostar, em cada experiência, e nas bordas do seu impossível, em dar outro destino ao ódio no enlace com a alteridade.

Texto originalmente publicado em: https://ix.enapol.org/boletim-oci-9/
O boletim Bendegó agradece gentilmente a autorização da autora.

Notas
¹ FREUD, S. “Reflexões para os tempos de guerra e morte”. In: Edição Standard. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago.
² LAURENT, É. “Racismo 2.0”. In: Opção Lacaniana, n. 67, dezembro 2013.
³ MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1 edições, 2018, p. 27.
⁴ MILLER, J.-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2017, p. 43-58.
⁵ MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018.
⁶ LACAN, J. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
⁷ MBEMBE, A. Op. Cit., p. 20.
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