Ana Ruth Najles
Considerando que os psicanalistas devem conseguir responder ao mal-estar da civilização da época em que vivemos, impõe-se a nós uma pergunta: como ler a atualidade? Como ler a modernidade ideológica?1
Podemos dizer – junto com Miller, em seu curso Piezas Sueltas2 – que nossa época se caracteriza como a época onde o “poder é a impotência”3 – como afirmava Lacan em seu “Discurso aos católicos” ao referir-se à psicologia moderna –, na qual o governo prescinde da política, já que se trata do governo por “peritagem coletiva”4, ou seja, anônimo. Segundo Lacan – tal como destaca Miller –, se trata de um chamado ao pai – significante mestre – que prepara o retorno da autoridade em suas formas mais terríveis5 (p.ex. Totalitarismos).
Por outro lado, fica evidente que a ficção reguladora na ordem social atual é a da “liberdade do consumidor”6, que se traduz pelo matema do sujeito barrado, que “verdadeiramente”, está comandado pelo mestre.
Por isso Miller afirma que as guerras do século XXI são entre a fé e o mercado7. E a divisão do sujeito se produz, portanto, entre sua espiritualidade e seu materialismo.
Trata-se, nesse momento, e ainda hoje, de encontrar o lugar para a psicanálise em um mundo configurado entre a perícia coletiva, para manipular a liberdade do consumidor, e a religião8. Evidencia-se que a operação das terapias cognitivas, de mãos dadas com o DSM, consiste em reverter o S1 produzido pelo discurso analítico, em benefício do discurso do mestre, sem esquecer a aliança atual do mestre com o saber – pseudo-científico. Isto tem como resultado a burocracia enquanto uma das formas do discurso universitário, que se caracteriza pelo fato de que o saber – cuja verdade é o poder em decadência do mestre antigo – exerce seu domínio sobre um elemento de gozo com a finalidade de ordenar e regular a sociedade, antecipando seu porvir9.
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S1 // $
É desse modo como o domínio aponta a que esse elemento de gozo, excessivo respeito do saber, se reduza ao $ – conjunto vazio – enquanto pura “variável de ajuste”10. Trata-se, na verdade, da tirania do saber.
Há que considerar também que esta decadência do mestre antigo – o significante do Ideal – deu lugar ao império do regime do “Não-Todo” cuja lei é: “não há exceção”, quer dizer, “todos iguais”11.
De modo que estamos – como indica Jacques-Alain Miller – perante um totalitarismo que não se totaliza, um totalitarismo serial que não conta com a segurança que dá o conjunto12 . É por isso que se impõe a suspeita generalizada13 e, também, a avaliação para-todos como sua consequência lógica (Há que se inspecionar).
Como afirmava Jean-Claude Milner em seu livro A política das coisas, o único objetivo da avaliação é a “domesticação generalizada”. Trata-se de uma operação de controle que ataca o direito ao segredo14, o único que pode opor resistência ao controle.
O que explica a expansão da avaliação, segundo Milner, é que ela promete que as coisas poderão finalmente governar, substituindo as miseráveis decisões humanas.
O “governo das coisas” oferece grandes vantagens quando o que interessa é impôr o silêncio, já que dispensa toda política. “O governo das coisas”, de Milner, remete ao neologismo “governanza”15, ao qual Miller define como um governo de peritagens coletivos e sem a política.
A avaliação para Milner – lembremos que nessa mesma época, 2004, Milner e Miller publicaram um livro sobre a avaliação – é um produto da democracia moderna solidária à economia de mercado – regida pela tecnociência – democracia que se caracteriza por não dar o governo aos homens senão às coisas. Esta “democracia verbal”, como a denomina Milner, pretende a “igualdade substancial”, já que esse é o tipo de igualdade que convêm às coisas.
É através da avaliação que os mestres da democracia verbal puderam estabelecer a igualdade, submergindo os seres falantes no espaço do medível e do substituível. Por isso pode-se afirmar que a avaliação instala a transformação dos homens em coisas.
Podemos colocar que, neste ponto, ressoa em toda sua dimensão a hipótese de Lacan do ano 1967, sobre a “criança generalizada”, para dar conta de “o que rubrica a entrada de um imenso gentil no caminho da segregação”16.
Este caminho da segregação só pode ser lido como a perda do estatuto de ser falante para cair no estatuto de objeto de manipulação por parte do mercado; objeto mais-de-gozo homologável a qualquer objeto produzido pela tecnologia. Isso implica em deixar o ser falante sem palavra, sem responsabilidade, de modo que todos, enquanto consumidores, somos crianças. Isto é assim porque a maior identificação que se propõe ao ser falante na atualidade é a identificação com o consumidor, o que, por sua vez, acaba sendo objeto de consumo do mercado.
“A criança generalizada”, então, equivale a postular o mesmo gozo para todos.
Os especialistas atuais são os encarregados de traduzir para os governantes os supostos discursos das coisas. Mas, como as coisas não falam, esses pretendidos porta-vozes das coisas são, somente, porta-vozes de si mesmos.
Se a avaliação é a perícia por excelência é porque ela permite fazer perícias de todos os demais peritos. A força da avaliação reside, portanto, no fato de que não há, em si mesma, nenhum conteúdo próprio. A avaliação é inavaliável.
Temos aqui a nova definição do Ser Supremo: o que avalia a todos e que, por sua vez, não poderia ser avaliado.
“A avaliação escolheu a peritagem; ao fazê-lo escolheu o controle, e ao escolher o controle abandona o sofrimento à sua sorte” 17 já que é isso o que exige o governo das coisas.
É por tudo que dissemos anteriormente que a avaliação – pretensamente científica –, subsidiária da política das coisas, jamais poderia emitir um julgamento favorável sobre a psicanálise18.
E por que? Porque contra a ilusão filosófica – e não somente a do pragmatismo – a prática da psicanálise demonstra que os problemas da vida não se dissiparão jamais. Considerando que o problema da vida é que não há relação – nem entre as palavras e as coisas, nem entre homens e mulheres –, somente há modos singulares de vida, que na psicanálise denominamos sinthome. E o sinthome, despido do sentido, objeta o laço social, já que se reduz ao gozo autístico, quer dizer, a um modo de vida singular.
Dado que alíngua – enquanto integral de equívocos na qual cada um vem cair ou submergir-se – faz do ser que a habita e que a falará um doente, um deficiente, ela constitui o trauma para o ser falante. Em seu seminário Le sinthome19 Jacques Lacan propõe fazer um uso lógico do sintoma, o que supõe sua redução ao real sem lei, real que condensa o trauma de alíngua que se escreve como “acontecimento do corpo”. Isto quer dizer que se inscreve como marcas no corpo enquanto as palavras marcam e recortam os corpos, ou seja, dão corpo ao ser falante.
Para a psicanálise se trata de fazer uso desse sintoma que possibilita ao neurótico viver ainda que seja incômodo. Se se apela à psicanálise é para fazê-lo menos incômodo, até alcançar o ponto de estar feliz em viver20. Em seu Seminário 24, L’insu…..21, Lacan pontua que isso é o suficiente.
Lacan coloca também que ainda que o sintoma se reduza, sempre fica um relevo que dá conta de que cada um é sem par, e que sua diferença reside nesse resto opaco que fica irredutível ao semblante – ao significante. Esse resto é o que dá a cada um seu valor, sua diferença absoluta, sua nobreza. Como bem nos lembra Miller, Lacan coloca que não há ser falante sem sinthome22 .
É dessa forma que no contexto do último ensino de Lacan a ciência aparece como o duplo da religião, pois ambas supõem um saber no real; diferentemente da perspectiva da psicanálise da orientação lacaniana que coloca o sinthome como esse real totalmente disjunto do saber, quer dizer, um real exterior ao simbólico com o qual haverá que saber se virar.
A política da psicanálise, regida pelo sintoma, dá conta de que sempre haverá um resto que resiste à avaliação “científica”, resto que é a esperança da psicanálise, pois é o que põe limite e faz fracassar toda a “utopia totalitária’23.