Por que o discurso capitalista diz respeito à psicanálise?

Por que o discurso capitalista diz respeito à psicanálise?

Joaquín Caretti*

Sabemos que a democracia é um ideal que, como tal, é inalcançável. Além disso, é um sistema contrário às idiossincrasias dos seres humanos que estão inclinados a fazer guerra, a prejudicar o outro, a explorar e roubar dele – longe de qualquer idéia de solidariedade. Como resultado, a democracia está sempre ameaçada e em risco de desaparecer e requer ações para melhorá-la e sustentá-la a cada dia. Através da divisão de poderes que a caracteriza, o homem encontrou uma maneira, precária certamente, de resolver as diferenças entre antagonistas sem a necessidade de matar uns aos outros. Mas ao mesmo tempo, ao tornar visíveis os invisíveis, resulta ser perigosa para todos aqueles cujo anseio é controlar e dominar os cidadãos, excluindo-os de qualquer participação e procurando fazê-los se submeterem mansamente a qualquer ultraje. Isto é confirmado pela resposta da Comissão Trilateral em 1975 (fundada em 1973 por Rockefeller) diante da corrente de democratização nos EUA durante os anos 60 do século passado. Foi escrito um famoso relatório chamado “A Crise da Democracia”, no qual afirmou-se com total clareza que “o que é necessário é um maior grau de contenção democrática”, porque havia muita democracia.

Existe hoje, com justificadas razões, grande preocupação na UE sobre o surgimento de partidos de extrema-direita e, como consequência, são acordados cercos sanitários contra eles sem abordar as verdadeiras causas que lhes deram origem. A UE não quer avaliá-los porque isso poria em questão todo o sistema econômico que é a causa das flagrantes injustiças e desigualdades de que sofremos. Todos sabem o que está acontecendo – não há inocência – mas ninguém dos quem gerenciam a UE quer tocar na base que sustenta o modo de laço em que vivemos.  Para falar mais francamente, a democracia vai até a eleição de governos nacionais e eurodeputados e é suspensa quando se trata de eleger as mais altas autoridades da UE, que garantirão a não-confrontação com o neoliberalismo. Esse é o fim da democracia, pois é tido como certo que quando falamos de democracia estamos inevitavelmente falando de capitalismo, como se essas duas palavras estivessem indelevelmente ligadas e não fosse possível pensar em nenhum outro tipo de sistema econômico associado à democracia. Quem sugere isto ou, mais modestamente, procura uma melhor distribuição de riqueza é marcado como populista, assim como nos tempos anteriores ele ou ela era comunista. Sob este significante-insulto, todos os tipos de regimes ou projetos são equacionados. Vox é o mesmo que Podemos, Mélenchon o mesmo que Le Pen, Salvini, Orbán ou Golden Dawn, e Evo Morales ou Lula o mesmo que Bolsonaro ou Trump. Neste sentido, a posição da Ciudadanos é muito clara: nenhum acordo governamental com o PSOE se Vox ou Podemos estiverem presentes. Dois partidos que são diametralmente opostos, já que um busca um retorno à tradição franquista sem tocar na economia neoliberal e o outro busca um aprofundamento da democracia e certas medidas para melhorar de alguma forma a distribuição de renda. No entanto, para Ciudadanos, um preeminente defensor do neoliberalismo, ambos são inimigos populistas, embora no final um mais do que o outro, já que acaba fazendo um pacto com a ultra-direita.

Realmente não é  possível chamar a democracia de um sistema onde são colocadas barreiras no caminho de seu exercício. Hoje podemos falar sobre os prejuízos do sistema de acumulação capitalista prevalecente, desde que o que este discurso propõe não tenha efeito real sobre a vida dos cidadãos. Sabemos que existe um consenso global em torno dos benefícios do neoliberalismo, que é promovido pelo FMI, o BM, a OCDE, a UE e todos os bancos centrais e privados do mundo, grandes corporações multinacionais, fundos de investimento e a maioria dos governos. A globalização marca o triunfo do capitalismo.

Por que estas perguntas dizem respeito à psicanálise? Em uma conferência em Milão em 1972, Jacques Lacan, psicanalista francês, mostrou sua preocupação com a ascensão do capitalismo. Era o alvorecer do neoliberalismo e Lacan inventou um novo discurso, o discurso capitalista. Isto tem uma característica muito especial: não cria um vínculo social, é um dispositivo de incitamento ao gozo através do consumo e ignora qualquer tipo de limite a suas ações. Em outras palavras, é um aliado do superego, a instância psíquica descrita por Freud que empurra o sujeito a ir além de seu próprio bem-estar. Ou melhor, o discurso capitalista é o próprio superego caindo maciçamente sobre as populações, que aderem voluntariamente a este mandato, sem saber da submissão que ele encarna. Por outro lado, o amor não entra em sua lógica, de modo que a dimensão do outro é deixada de lado, e assim a própria experiência analítica é ameaçada, uma vez que precisa do amor de transferência para ter lugar.

Na verdade, o outro, sua presença, entra neste discurso sob uma única modalidade: a daquele  com quem se tem que competir por um lugar no mundo. Esta palavra competição é o significante privilegiado que orienta o discurso capitalista. É o significante que mata qualquer vestígio de solidariedade e estimula os discursos de ódio que estão hoje em dia desenfreados na Europa.

Lacan diz nessa palestra que o capitalismo é insuportável, ao mesmo tempo em que é muito astuto e que está indo muito bem, tão bem que está destinado a explodir. Hoje o neoliberalismo, a versão devastadora do capitalismo fordista, é a principal causa do mal-estar na cultura porque conseguiu transformar tudo em uma mercadoria.

Se assiste perplexo aos avanços sobre aqueles terrenos que podemos considerar como pertencentes à totalidade dos cidadãos. No século XVIII, isto foi feito pelo estado inglês em terras comunais, que tirou dos camponeses para dá-lo aos proprietários de terras para torná-lo mais produtivo. Os conhecidos enclosures resultaram na proletarização do campesinato. Hoje, na mesma linha, bens comuns como saúde, educação, empresas e serviços públicos, ou seja, tudo o que foi construído com o dinheiro dos cidadãos, está sendo privatizado sem cerimônias. Isto tem sido denominado por David Harvey como “acumulação por despossessão”. Estes são os novos modos de acumulação, uma vez que, graças à privatização, enormes quantidades de dinheiro do Estado, do bem comum, passam para as mãos dos ricos para torná-los cada vez mais ricos e mais concentrados.

Por outro lado, nem tudo é reduzido a um problema econômico, mas foi revelado – em parte graças à psicanálise – que o discurso neoliberal produz uma profunda mutação da cultura e da subjetividade. Estamos todos tocados pela ideologia da competição, pelo individualismo e pela crença de que todo prazer é possível. O mais marcante é que os sujeitos aderem a isso apesar de os resultados obtidos se voltarem contra eles. Homens e mulheres que trabalham para seu próprio mal sem saber; homens e mulheres que desistem de suas vidas, literalmente, por um sistema que acaba por engoli-los; homens e mulheres que se tomam como um negócio do qual são os gerentes exclusivos. Então, quando as coisas não vão bem, eles caem em culpa por não terem feito o que se propuseram a fazer e têm que arcar com uma dívida que roe qualquer possibilidade de futuro. É certamente um sistema impiedoso, e não há forma de refreá-lo e redirecioná-lo, já que, de certa forma, ele coincide com aspectos centrais da subjetividade humana, como o afã de dominação e gozo ilimitado, chamado de pulsão de morte por Freud. Este afã não vem dos planetas, mas é sustentado pelos cidadãos; são eles que exploram os outros e se apropriam do que Marx chamou de mais-valia e, por sua vez, do que é comum.

Lacan viu na experiência de uma análise a possibilidade de uma saída do discurso capitalista, visto que ali é possível trabalhar duas questões essenciais: a submissão a um mestre e a vertente pulsional, sem esquecer que se esta saída fosse apenas para alguns, não significaria nenhum progresso no social.

Estamos diante das duas dimensões do capitalismo: um sistema econômico e um discurso que, ao imbuir a sociedade como um todo, faz com que a sociedade a sustente como único sistema possível. Existirá uma maneira de quebrar este consenso planetário e encontrar outro sistema econômico e outra forma de ligação social mais justa e solidária, onde a democracia não seja mais uma ilusão?

Penso que a oportunidade está em inventar uma outra maneira de fazer política, uma maneira em que as identificações inerentes à política sejam aliviadas, o espírito crítico necessário seja imposto e o impulso de acumulação, que beneficia apenas alguns, seja remodelado. Entretanto, qualquer modificação da injustiça, por menor que pareça, é bem-vinda.

 

*Psicanalista da ELP/AMP
Tradução por: Luiz Felipe  Monteiro
Texto originalmente publicado Joaquín CARETTI RÍOS (ELP) ¿Por qué el discurso capitalista concierne al psicoanálisis? Disponível em: https://zadigespana.com/2019/06/23/por-que-el-discurso-capitalista-concierne-al-psicoanalisis/?fbclid=IwAR39950gQ0voc2mZwc_tqVn3znID2QPTMl2tWrUF4bG2rsGIjgbec7AqzI0/
O boletim Bendegó agradece gentilmente a autorização da autor.
Next Post Previous Post