Jésus Santiago
Para a psicanálise, as raças constituem um mito criado por diversas manifestações de discursos dominantes. O que existe é “o racismo dos discursos em ação”1, portanto, o que há das raças resulta de pensamentos e práticas racistas. Raça e racismo são inseparáveis, ou seja, o mito de raças diferentes é produto do racismo que emergiu, no início do século XVIII, com repercussões no discurso da ciência. Assim, o paradigma de cunho racial faz-se presente, por exemplo, em iniciativas de naturalistas – entre outros, como Carl von Linné (1707-1778) – que buscavam um princípio de classificação de grupos de homens e de animais em categorias, segundo critérios biológicos e morfológicos. Os problemas acarretados por esse esforço de classificação agravam-se com o advento do evolucionismo darwinista, no século XIX, quando os critérios da antropologia física dão lugar a critérios biológicos e genéticos. Reforça-se, então, no contexto do saber, a ideia de uma hierarquia das raças, como resultado de uma presumível evolução do patrimônio hereditário modificado por adaptação ou por seleção natural.
Paradoxalmente, o próprio avanço da ciência acaba por demonstrar o equívoco desses princípios classificatórios e pode-se concluir que sua postulação carrega uma nítida ideologia política de viés racista. Os desenvolvimentos recentes da genética molecular e o sequenciamento do genoma humano permitem um exame detalhado da correlação entre a variação genômica, ancestralidade biogeográfica e aparência física e revelam que as designações empregadas para distinguir as “raças” – amarela, negra, branca, vermelha – não têm qualquer base científica demonstrável. Segundo Sérgio Pena, geneticista brasileiro, por mais que possa parecer fácil distinguir fenotipicamente um europeu de um africano ou de um asiático, tal facilidade desaparece por completo quando se procuram evidências de diferenças “raciais” no genoma humano2.
Jacques Lacan, psicanalista francês, nos anos 60, sob os auspícios do instrumental conceitual e clínico da psicanálise, tem a ousadia de profetizar o recrudescimento do racismo3 no momento em que os novos ares dos tempos sopram mudanças do mundo – transformação da família, fim do patriarcado e revolução sexual. Para surpresa de todos, Lacan prognostica a escalada do racismo em função do que, na época, ainda não se denominava globalização. Desde então, a atividade clínica do psicanalista destaca sinais evidentes de que as diferenças raciais se tornam insuportáveis, sobretudo quando emergem e se misturam em um mesmo espaço de convivência. Quem não reconhece teor racista, por exemplo, no comentário de um brasileiro que, diante da massificação do transporte aéreo, afirma que “os aeroportos viraram rodoviária”?
Pode-se facilmente, neste ponto, deduzir o princípio básico do racismo: se o Outro não goza da mesma maneira, o Outro deve ser repelido e rechaçado. Eis também o que está na raiz da depreciação e difamação de mulheres e que se pode nomear como racismo antifeminino. A perspectiva contemporânea do capitalismo de integração das nações em conjuntos mais amplos, que autorizavam os mercados comuns, pode colocar em risco as diversas civilizações. A imposição de formas padronizadas e homogeneizadas de consumo ameaça a existência de modos singulares de gozo, especialmente, nos dias de hoje, em que não se goza da mesma maneira em relação a estilos de vida, crenças religiosas, Deus e ao próprio corpo.
A psicanálise antevê a necessidade de uma “terapêutica de massa”4 que se traduz na promoção de discursos públicos que ofereçam outras perspectivas a sintomas do ódio implacável ao Outro. Tais discursos, inspirados na psicanálise, podem contribuir para tolher a cristalização de sintomas da civilização que, no caso do racismo, tem sua raiz no corpo. Se certo número de discursos produz identificações que convergem para o obscurantismo conservador, a defesa intransigente da tradição patriarcal, a hostilidade à vida civilizada, enfim, a morte do Outro, não há razão alguma para a existência de outros discursos que se oponham à solidificação de tais identificações e que se transformam em ações dissolventes e corrosivas delas.
Nosso ponto de vista é de que a questão do racismo constitui um dos maiores desafios para a consolidação da democracia que se deseja para o Brasil. Ao contrário do que se pode pensar, o episódio recente protagonizado pelo jornalista William Waack demonstra que o racismo no país não é um fato isolado e tampouco se expressa apenas por manifestações eventuais e insidiosas mediante xingamentos e insultos. Se um representante renomado da imprensa nacional profere tal fala racista, isso ocorre porque há algo da discriminação racial que integra a própria estrutura desigual e antidemocrática da sociedade brasileira e porque o Brasil está longe de ser o país da cordialidade e dos afetos.
Nesse sentido, o sintoma da segregação racial deve ser considerado exemplo vivo de que a democracia não se confunde com o Estado de direito. Uma sociedade restrita a significantes-mestres da legalidade e da norma jurídica é incapaz de se contrapor aos inimigos do gênero humano e nela o racismo se revela, ao longo dos tempos, uma arma privilegiada. Insistimos, por consequência, que a democracia não se confunde com o juridicismo e seu vigor exige uma conversação assídua sobre as grandes direções necessárias à vida civilizada. Enfim, a democracia apresenta-se no lugar de uma causa que coloca cada cidadão que dela participa como sujeito do desejo e também do desejo de democracia que, certamente, se situa sempre fora da norma. Assim sendo, a realização do Fórum Por que só há raças de discurso: desafios à democracia se constituirá ocasião ímpar para se levar adiante a discussão sobre como lidar com o sintoma do racismo, favorecendo a presença de discursos públicos que busquem orientações e valores civilizatórios compatíveis com a vida.