Aléssia Fontenelle
A XXVII Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Bahia e a XXIII Jornada do Instituto de Psicanálise da Bahia – propõem uma investigação sobre a vigência do desejo tanto como ponto pivô de uma análise como na vida contemporânea: Desejo, mostra a sua cara!
Freud define desejo (Wunsch) como uma força silenciosa – imortal, impossível de se apreender ou regular – que subjaz sob tudo o que se diz, fazendo-se veicular apenas pela via inconsciente. Introduz, assim, a noção de uma realidade psíquica que se dobra diante do desejo inconsciente.
De modo análogo, Lacan enfatiza o caráter desviante do desejo (Begierde), sua errância, o que torna necessário situá-lo no campo da linguagem, em itinerários significantes que fixam a relação entre sujeito e objeto. Sua hipótese é de que o desejo e a lei caminham juntos, ou melhor, o simbólico é o marco e a condição do desejo. Ele é, fundamentalmente, efeito do simbólico. O desejo é sempre desejo do Outro, o Outro compreendido como “aquele que endossa o sentido do que se diz, e do desejo”.[1]
O sujeito se constitui dividindo-se e eclipsando-se atrás do significante que o representa. Nessa concepção lacaniana, o desejo (Desidero) é uma metonímia da falta a ser. O que nos leva a considerar sua função, sobretudo, como “resíduo último do efeito do significante no sujeito.[2] Com isso, Lacan indica que, uma vez capturado na cadeia significante, o desejo é reenviado adiante e permanece insatisfeito. Essa insatisfação evidencia um certo gozo em jogo no ato de desejar. No movimento incessante de reenvio, o desejo é o que aparece como resíduo. A impossibilidade de nomear o objeto de desejo, o objeto a, é o que constitui, para cada sujeito, a causa de seu desejo.
Tais veredas implicam o objeto causa que se estrutura ao redor de um vazio e o objeto de satisfação que, sempre efêmero, não está pré-determinado. Podemos dizer que o desejo é a décalagé (defasagem), a fenda que se produz entre o objeto ao qual o desejo se dirige e a sua causa. Isso significa que o objeto não é aquele da necessidade, nem o que se pode obter pela demanda de amor e, mais ainda, é encontrado apenas na fantasia.
Lacan pensa a fantasia como a resposta do sujeito quando tem de se haver com a opacidade do desejo do Outro. O sujeito se desfalece diante dessa opacidade e se engancha ao objeto. Em outras palavras, é a função que articula o desejo com o objeto que o fixa, a matriz que orienta e suporta o desejo do sujeito. A pulsão, por sua vez, inscreve uma divisão entre o sujeito e o desejo. Com efeito, só se deseja por desconhecer onde se goza.[3]
Contudo, Lacan já nos advertia, em Radiofonia, sobre a mudança de posição do objeto e seus ecos sobre o desejo, ou seja, sua vinculação ao gozo do sujeito pós-moderno. Se anteriormente tínhamos a “moral civilizada” como bússola, hoje, é o objeto a que está colocado no zênite social pelo discurso capitalista.[4] Assim, o desejo se converte em um desejo convulsionado pelo mais de gozar, em meio a um excesso de oferta de objetos multiformes que, articulados à pulsão, supostamente o satisfariam. E, consequentemente, quanto mais se multiplicam os objetos de gozo (desejos), menos o desejo mostra sua cara. Podemos dizer que essa mutação altera as desventuras do desejo nas barreiras do gozo.[5]
Então, qual é o lugar para o desejo em nossa época? Vivemos uma crise do desejo? Há uma deflação do desejo sexual? Podemos extrair algo novo ao nos determos sobre a função do desejo em tempos que se caracterizam pela ruína dos ideais, pelas transformações tecnológicas, pela fluidez dos limites e por laços efêmeros? O paradigma que Miller propõe para pensar a cultura hipermoderna é o de sujeitos “[…] desinibidos, neodesinibidos, desamparados, desbussolados”. [6] Esse desnorteamento está associado à perda do norte fálico que regula o curso de desejo. Perde-se a bússola que orienta o sujeito e o desejo tende a condescender ao gozo.
Aliás, observamos uma reclassificação dos objetos que, sob a máscara do desejo, visam à satisfação pulsional. Assim, os sujeitos se ancoram, se engancham ao objeto de consumo, buscando satisfação que opere uma sutura na perda do gozo estrutural, o que os conduz a um gozo cada vez mais autoerótico. Naparstek[7] nos lembra que, em nossa época, os objetos a estão isolados e soltos, sem o enquadre da fantasia. Por não estar onde deveriam e na falta de uma fantasia perversamente orientada, qualquer objeto pode servir ao gozo e aos seus imperativos.
O vale tudo, acrescido da infinitização dos objetos e das demandas, dificulta a escolha de um objeto de desejo. Lacan[8] considera que a minimização da dimensão do desejo, ou melhor, a indiferença em relação ao objeto, é o sintoma contemporâneo por excelência. Sem consentir com a falta a ser, o rechaço ao sintoma e ao inconsciente tendem a se universalizar.
Assim, cada vez mais, os sujeitos buscam o analista para falar: da dificuldade de ter um corpo ou armar-se de um corpo; da anorexia mental; da impossibilidade de dar corpo ao desejo; da degradação do objeto amoroso e da dificuldade do encontro com o amor; da excitação contínua como resposta à apatia e a desvitalização que marca a ausência de desejo. O desejo estaria, de fato, condenado ao fim? Estamos, então, fadados ao gozo dos Uns sozinhos?
Nesse contexto, o que a psicanálise poderia oferecer? Segundo Miller,[9] hoje, praticamos uma psicanálise líquida, o que implica adaptar a experiência analítica ao que não é sólido, ao que flui, ao que escapa, ao que é inalcançável. É preciso destacar que a causa de desejo mantém sua importância ao longo do ensino de Lacan, permanecendo sempre como “um motor, silencioso, para desejar”.[10] A ela, associa-se a escritura do Sinthoma, que coloca o objeto a no lugar em que o entrelaçamento entre real, simbólico e imaginário fazem nó (borromeano). Essa escritura incorpora o furo em cada um dos registros, permitindo novas possibilidade de articulação entre gozo e desejo. Saber fazer com seu sinthoma permite que o desejo, livre das ataduras mórbidas do sintoma e da impotência da fantasia, possa tomar a dianteira.
Assim, propomos discutir a atualidade da clínica do desejo nos três eixos que constituem a XXVII Jornada da EBP-BA/ XXIII Jornada do IPB:
- Desejo e seus descaminhos;
- Desejo e suas manifestações; e
- Desejo e sua interpretação.
Convidamos a todas e a todos a participar da investigação do desejo como operador clínico e colocar em debate suas consequências para a experiência analítica contemporânea. Nessa via, Lacan nos aponta uma direção quando afirma que numa análise “é sempre a partir de um além do gozo como absoluto que assumem logicamente o seu justo lugar todas as determinações articuladas sobre o que acontece com o desejo”.[11]
Com efeito, o que poderia oferecer a psicanálise agora que a orientação lacaniana se depara com o aggiornamento do desejo do analista, da função da interpretação e o domínio do gozo sobre a vida libidinal? Muitas perguntas se abrem para abordar o desejo que, sempre metonímico, aponta para algo além…