Laura Ferrero
Hotéis anônimos, malas que se fecham rapidamente e um beijo fugaz nos lábios porque a pressa, como a culpa, não demora a chegar. Restaurantes caros, presentes desproporcionais e a promessa de se ver em breve, quando as agendas voltarem a coincidir novamente, quando as crianças não tiverem partida de futebol e os sogros não prepararem o maldito churrasco no jardim.
Também aeroportos, estações de trem, olhadelas de lado quando o outro não olha, o assobio condicional nos ouvidos, o celular que sempre soa como realidade e o tédio com um Sim, querida, o jantar de trabalho correu bem. Literatura e realidade. Realidade e literatura. Um prato complexo com ingredientes básicos que não são sempre os mesmos. Perguntas, desejos, amor, traição. Alguns ingredientes que estão mudando nessa receita sempre tão difícil de preparar: a infidelidade.
Um: as perguntas
Em um auditório lotado, a psicoterapeuta Esther Perel participa de uma daquelas famosas Ted Talks que tem um título mais que sugestivo: “O segredo do desejo em um relacionamento longo”. Não deixa de ser engraçado que a conversa tenha acontecido no Dia de São Valentim (Dia dos Namorados), e o público com olhos arregalados, composto por muitos casais que buscam, de fato, uma solução à pergunta de um milhão: podemos amar o que já temos? Sorriem, alguns até ficam vermelhos, talvez se reconhecendo no discurso da sexóloga de origem belga que pergunta ao público questões delicadas e incômodas. Por que o proibido contém tanto erotismo? O que há na transgressão que torna o desejo tão poderoso? A famosa sexóloga, que escreveu livros como Inteligencia erótica[1], se especializou em tratar o tema da infidelidade no âmbito do casal, em como lidar com ela, mas, sobretudo – e isso é o mais interessante – no porquê. Sem dúvida, Perel não dá respostas milagrosas e aponta que os dilemas do amor moderno são difíceis de desvendar. Podemos começar pelo princípio, dizendo algo muito sensato: nós queremos tudo. E nesse tudo há coisas contraditórias: um lugar, um parceiro estável e que cuide de nós, o parceiro-melhor-amigo, o que nos faz rir. Mas, quando procuramos o risco, a aventura, a novidade do descobrimento, a tensão sexual não resulta… chamemos como quisermos. Aqui as coisas começam a torcer. Ignoro se antes as coisas funcionavam de maneira distinta, mas atualmente, já nos disseram centenas de vezes e através de centenas de canais diferentes que existe um casal perfeito. Trata-se dessa metade da laranja em que se combinam o melhor amigo, o mito sexual, a pessoa compreensiva e quem cuida de nós e, sim, claro, quem não tem olhos para mais ninguém. A isso temos que acrescentar que agora vivemos duas vezes mais do que antes, e todas essas variáveis devem ser mantidas ao longo dos anos. Essas exigências não são um pouco excessivas?
Esther Perel mergulha na crise do desejo que está intimamente relacionada à nossa imaginação. Desejamos o desconhecido, o Outro, porque parece que o previsível não nos interessa. Não, não nos dá uma história sobre um casal entediado que cozinha brócolis todas as noites, mas que são felizes. Porque o verdadeiro problema da infidelidade é a relação entre amor e desejo.
Feliz Dia dos Namorados a todos, Esther Perel deseja à sua audiência. E há sorrisos de cumplicidade, mas, sobretudo, há muito mais a vontade de seguir perguntando. Ou seja: a crise do desejo é o grande detonador da infidelidade? Se sim, e agora?
Dois: o desejo
Leonard Cohen disse que há uma greta no todo; só assim entra a luz. Sempre me pareceu uma metáfora acertada para falar do homem e dessas superfícies aparentemente redondas e impermeáveis que se racham apenas por tocá-las. Essas superfícies se chamam certezas. E, para muitos, o mundo da parceria ou do matrimônio não deixa de ser uma delas: uma âncora. Uma dessas boias que nos mantêm a flutuar no mar, mesmo na pior das tempestades. No entanto, sendo honestos, haveria de começar dizendo que mais do que o mundo das certezas, vivemos no mundo das rachaduras. A verdade é que nunca se sabe realmente por que elas aparecem; simplesmente estão aí. E isso é o que ocorre no mundo de Irina e de Lawrence, o casal protagonista do O mundo pós-aniversário, de Lionel Shriver[2]. Durante anos, a cada 6 de julho eles jantam – no que já se tornou uma tradição – com Ramsey Acton, um popular jogador de sinuca que é amigo do casal. Mas justo esse ano, Lawrence estará fora e pede a Irina que jante com Ramsey. Ela concorda. Não há nada de errado em sair para jantar com um velho amigo que está passando por um momento difícil. No entanto, depois daquele jantar, depois do aniversário, o mundo dá uma virada, e a existência de Irina se divide em duas possibilidades que derivam do nascimento de um desejo: beijar Ramsey. A primeira possibilidade decorre do sim: beijar Ramsey e jogar a casa pela janela; e a segunda, de não fazer isso: ser uma boa menina e não ser infiel a Lawrence. Bem-vindos ao território da bússola moral.
O original desse romance de Shriver é que, longe de conformar-se em escolher um caminho, ele fica com os dois e escreve dois romances em um. Dessa maneira, alterna os capítulos em que se veem as consequências dessa temida decisão vital. É certo: pode-se decidir fazê-lo ou não o fazer. Mas do que não se é dono é dos seus desejos. Voltamos ao mesmo ponto: o desejo é o problema. É aí que a literatura e a realidade ficam presas, e desse cruzamento do caminho surgem as histórias. Porque na atualidade, falar de infidelidade não é falar de um tabu.
No entanto, relativamente faz pouco tempo, ao abordar a infidelidade ou o adultério, entrávamos no território do tabu. O adultério era um assunto-chave no romance do século XIX: heroínas trágicas como Emma Bovary ou Anna Karenina se definem quase por completo por sua rebelião contra os laços dessa instituição sagrada que era o casamento. Outros romances que compõem um elogio à infidelidade, como Choderlos de Laclos e As relações perigosas, O vermelho e o negro, de Stendhal, também foram duramente criticados na época do ponto de vista moral. As leis castigam o amor ilegítimo que a literatura exalta. Então, qual é o segredo dessa literatura para atrair tantos leitores? Talvez isso permita lançar luz sobre nossos desejos ocultos de transgressão.
Mas a história da infidelidade na literatura remonta ao início da própria civilização. A Bíblia já deu alguns outros conselhos sobre o assunto, embora – visto o que foi visto – muitos tivessem que pular o capítulo. Perguntar-se sobre a infidelidade é fazê-lo pela natureza humana. E, portanto, falar da literatura do adultério é falar da literatura em si mesma. Não entende de gêneros nem de momentos.
Conclusão: quebramos o tabu. Agora só há um problema: o desejo. Voltamos à mesma pergunta de Esther Perel: a crise do desejo é o grande gatilho da infidelidade? Parece que assim é. Mas segue faltando essa pergunta que acrescentei: e agora, o quê?
Três: o amor
Muitas histórias de infidelidade são, no fundo, grandes histórias de amor. Faz pouco tempo, apareceu um livro no mercado chamado Hace cuarenta años, de Maria van Rysselberghe[3]. É um livro curto e de grande beleza, que narra, depois de quarenta anos que havia acontecido, uma relação amorosa entre um homem e uma mulher casada. O que faz excepcionalmente bela essa história é que essa relação é mais mental do que física. Trata-se desses amores que nunca chegam a consumar-se e que, portanto, nunca expiram. Esse é o perigo que têm as ideias, especialmente as românticas: que vagam livremente pelas armadilhas sedutoras da memória. Portanto, mais do que completamente uma infidelidade, também se trata de um amor hipertrofiado por culpa de tantos subjuntivos. Um amor que dará sentido à vida de Maria, a protagonista, que depois de quarenta anos enfrenta de novo essa história e a fixa na escritura. Colocar palavras é uma maneira de amarrar, e é isso o que ela faz: dar uma realidade – a de escritura – ao que nunca aconteceu, àqueles desejos que nunca se concretizaram porque seguiram o caminho do não. Entramos novamente no território da bússola moral com outra pergunta de um milhão: qual estatuto têm os desejos? Este é pensado também como outra forma de traição? Escrever é uma maneira de fazer que as coisas aconteçam. E pensar nelas, em muitas ocasiões, não é pior do que fazê-las.
A literatura, mais que de infidelidades, está cheia de desejos que lentamente se confundem com amor. Uma combinação de desejos, amor e tristeza. Em um mundo não tão imaginário, um esplêndido texto de Leila Guerreiro, que compõe a série Formas del amor, a jornalista aborda um dos lados mais tristes da infidelidade. Começa assim: “Um dia, já não se sabe quando nem como, em um desses encontros, entre os lençóis amarrotados de um hotel, ele disse que a queria”. Se antes falamos de desejo, aqui falamos do limite que vive nas coisas, nas relações. Esses limites recordam os dos quadros de Escher, nos quais, de repente, os patos se convertem em peixes e ninguém sabe exatamente quando isso começou a ocorrer. Limites que não são vistos. O sexo rapidamente se converte em outra coisa, e isso não é conhecido apenas em Hollywood. Leila Guerreiro condensa em um artigo essa felicidade lunática dos amantes que sabem ter um tempo limitado. A expiração desses mundos paralelos que sucedem simultaneamente e em velocidades tão distintas. A culpa por aqueles que ficam em casa. As proibições, a ideia de que existe outra vida e, sobretudo, o medo de fazer mal.
(“Serei capaz?”, “haverá dor?”). Outras vezes se olham longamente nos olhos até que ele diz: “Você está bem?”, e ela fica muda durante uns segundos – e espera que ele saiba ver, nisso, uma resposta – e então sorri e diz: “Sim, estou bem.”. Quase sempre é mentira.
Mentiras que se acabam dizendo a eles mesmos. Isto é: a dor misturada com o desejo. Uma vida feita de desculpas que leva outros nomes como trabalho, reuniões. Covardia, sim, talvez. A covardia de abandonar a placidez de uma vida que lhes é cômoda. A literatura está cheia dessas histórias. E de todas, em minha opinião, essas são as mais tristes.
E agora, o quê? Então, nesse auditório imaginário, nessa Ted Talk também imaginária, faz-se um silêncio cada vez mais difícil. As perguntas, o desejo. Quando adicionamos esse terceiro ingrediente ao prato, o amor há que voltar a começar a se perguntar, como o disse Raymond Carver, do que estamos falando quando falamos de amor.
Quatro: A traição
Emma e Jerry estão sentados tomando algo.
Emma: Faz muito tempo que não nos vemos.
Jerry: Bom, fui à sua exposição privada.
Emma: Não, não me refiro a isso.
Traición, a obra do dramaturgo inglês Harold Pinter, está cheia de silêncios e palavras que não querem dizer exatamente isso. Emma e Jerry são amantes há sete anos; ao mesmo tempo, Emma está casada com Robert, o melhor amigo de Jerry. Sim, a traição aqui é como uma maçã podre, esse elemento que apodrece tudo o que tem ao redor. Mentiras, duplos sentidos e desculpas. Porque a infidelidade – na literatura, na vida – implica sempre algum tipo de traição. A cada um mesmo, aos demais, tudo depende de como se olha. O terreno da traição é perigoso: estamos próximos da vingança, leia Perdida, um best-seller que – embora muitos tenham suas ressalvas por se tratar justamente de um best-seller – dá muito o que pensar sobre a natureza das relações de um casal.
Há muitas traições literárias que valem a pena comentar, minhas favoritas: a de Howard Belsey em Sobre a beleza, a traição a essa mulher maravilhosa que é Kiki, por uma jovem – ah, os homens casados! –; a do matrimônio Berglund em Liberdade, de Jonathan Franzen. No papel, gostamos das traições. Porque tem bons e maus, céus e infernos, e de colocar rótulo, todos nós sempre gostamos. Há amantes, maridos enganados e filhos que nunca têm, os pobres, a culpa de nada. Mas as piores traições não são as que perpetramos contra os demais, senão contra nós mesmos. No relato “Como ser outra mulher”, incluído em Autoayuda[4], Lorrie Moore narra a história de Charlene, uma moça jovem que mantém uma relação com um homem casado, uma circunstância que, mais do que convertida na outra, a converte simplesmente em outra mulher distinta da que acreditava ser: “- Olá, sou Charlene. Sou uma amante. É como ter um livro emprestado de uma biblioteca. É como ter constantemente um livro emprestado da biblioteca”.
Charlene é o livro que logo voltará para a estante porque ninguém o comprou, mesmo que seja de Goethe, Tchekhov. Foi emprestado e ninguém vai se incomodar / vai se dar ao trabalho de virar as páginas cuidadosamente.
Quando tinha seis anos, acreditava que “amante” significava algo incômodo, como pôr um sapato no pé errado. Agora é maior e sabe que pode significar muitas coisas, mas que essencialmente significa pôr o sapato no pé errado.
Charlene dá – ao meu juízo – a melhor definição de traição que encontrei. Porque frequentemente a traição é isso: confundir-se de sapato. Tentar que o pé direito caiba no esquerdo e começar a andar. Após curto período de tempo, o atrito aparece, e depois é impossível continuar andando.
Cinco: todo o resto
E agora, o quê?
“I think the history of marriage can be written like this: people want too much” / “Eu penso que uma história de casamento poderia ser escrita assim: as pessoas querem demais”. Essa frase tão lúcida é o que seu pai diz a Lenny em “The year of getting to know us”, um incisivo relato de Ethan Canin[5]. Porque queremos tudo; isso resume e nos resume.
Querer tudo, isto é: aí estava. Talvez esse deveria ter sido o ponto de partida deste artigo. Porque me perguntaram várias vezes por que eu estava escrevendo um artigo sobre a infidelidade. Fizeram isso com o sorriso travesso de assuntos frequentemente-sempre-os-mesmos, ou pensando, por dentro, que razões eu teria para estar escrevendo / escrever.
Havia muitas razões. Por um lado, é certo que, nos últimos tempos, li artigos que alertavam acerca do crescimento da infidelidade no Reino Unido e nos Estados Unidos. Referiam-se a ela como se tratasse de uma pandemia e estivessem buscando uma cura para esse detestável defeito / vício. Também li outros artigos pseudocientíficos que falam de psicólogos especializados no tratamento de “cônjuges infiéis” e pareciam saber tudo, inclusive se atreviam a fazer uma tipificação da conduta normal depois do adultério do estilo “a mulher enganada quer” ou “o esposo infiel deve”. Mais tarde, li alguns artigos que, supostamente aprovados por revistas, intentavam dar distintas porcentagens com respeito ao adultério: “40% dos homens enganam devido à insatisfação sexual e 50% das mulheres o fazem porque necessitam de um romance”. Só cheguei a uma conclusão: como nós gostamos dos dados para entender o que não se pode entender.
Depois estava a realidade, claro.
Porque um dia você se senta num bar e escuta como, na mesa ao lado, uma moça abaixa o tom para contar algo a sua amiga e você só escuta que ele prometeu que vai deixar a mulher. Você olha para ela, e ela também está usando uma aliança e você já não sabe quem tem que deixar a quem. Porque outro dia você se senta ao lado de um estranho no avião que tira a aliança assim que aperta o cinto e te diz, com doce hálito de uísque, que não case, você que é jovem, olhe para mim, estou apaixonado por uma mulher que não é a minha. Pensa que, se pudesse abrir a janela, jogaria o anel. Mas, nos aviões, as janelas não abrem.
Por último, estava a literatura.
Porque você chega ao seu quarto e revisa os livros da estante. Suspira. É assim que você a perde, de Junot Díaz; Revolutionary Road, de Richard Yates; Saber perder, de David Trueba; El periodista deportivo, de Richard Ford; Ada ou ardor, de Vladimir Nabokov; A insuportável leveza do ser, de Milan Kundera; Viúva por um ano, de John Irving, ou Un día es un día, de Margaret Atwood. A lista é interminável. Poderia seguir assim durante horas. Você se dá conta de que são todos livros muito distintos e que, no entanto, compartilham em algum momento essa mesma temática: a infidelidade. Assim, pois, o que é que faz do adultério algo tão infinitamente irresistível para os romancistas… e para todos?
Esse ponto chega quando você pergunta aos outros. É quando a pergunta das razões por esse excesso de infidelidade na literatura dá lugar a outro questionamento: por que somos infiéis? Aí você se perde. Alguns te dizem que talvez seja a crise. Nesse bendito país, a crise sempre tem a culpa de tudo. Outros te dizem que talvez seja a necessidade de aventura ou que essa cultura de fast food ao final se aplica a absolutamente tudo, inclusive aos relacionamentos. Disso falava Zygmunt Bauman em Amor líquido. Mas sim, é fácil conformar-se com explicações filosóficas que pretendem abarcar tudo. Mas a realidade está longe daí / de lá, longe de Bauman.
Fiquei sem respostas.
Porém, há pouco, em um bar em frente ao Retiro, enquanto falava com uma amiga, comentei que não sabia como terminar este artigo. Fiquei presa no final. No princípio, pensei que, depois de tanto ler, teria algo conclusivo a dizer. E o certo é que não o tenho. Porque, lentamente, a pergunta sobre o tratamento da infidelidade na literatura foi se transformando nessa pergunta um pouco mais difícil de responder: por que somos infiéis?
Minha amiga sorriu e me respondeu algo interessante: que a infidelidade não era mais do que uma torção. Para quê? Perguntei. Bem, você já sabe, a história de sempre. O garoto quer a garota, o garoto começa a sair com a garota, mas, de repente, o garoto gosta de outra. E assim vale também ao contrário. A garota quer o garoto, a garota se junta com o garoto, têm filhos – ou não – e a garota gosta de outro garoto mas não deixa o dela. Há algo de novo nisso? Não, na realidade, não. Eu me disse.
Suponho que não há uma resposta válida à pergunta ‘por que somos infiéis’. Não existe. Ou existem muitas, que é como dizer que não há nenhuma. Busquei nos livros uma resposta que não estava nos livros. Que não está em nenhuma parte. Já o disse Oteiza: Buscava o seu nome entre os nomes errados das coisas. Perguntar-se ‘por que somos infiéis’ é parecido a se perguntar ‘por que nos apaixonamos’. Eu não tenho as respostas. Se alguém se atreve, comece a escrever.
Laura Ferrero é filósofa e jornalista. Ela trabalha no mundo editorial há anos. Pela FronteraD, publicou El Chad: lejos del desencanto, En letras mayúsculas e Miedo de ser William Stoner. Ela mantém o blog Los nombres de las cosas.