Entrada em análise: entrevistas preliminares

 “Uma análise é algo muito importante. Antes de começar a análise propriamente dita, eu pratico aquilo que é uma norma em minha Escola, as entrevistas preliminares”. Foi com essa frase que Lacan se despediu de nossa convidada Esthela Solano-Suárez, quando ela foi lhe pedir uma análise em 1975[1].

Ao longo da história da psicanálise, procura-se uma resposta para a pergunta sobre as condições requeridas para que uma prática seja qualificada como psicanalítica. Freud descobriu o inconsciente, inventou a psicanálise e nomeou seu método de associação livre, que até hoje se constitui como a regra fundamental. De início, submetia os pacientes ao que chamava “tratamento de prova”, que servia para o analista provar se o dispositivo analítico podia ser posto em funcionamento para aquele que demandava tratamento, bem como para elaborar a estratégia sobre como transformar aquele que o procurava em um sujeito analisante. Freud acreditava que, com o uso das palavras, poderia alcançar uma elaboração, estimular o desejo, amenizar a angústia e eliminar os sintomas, sem, no entanto, fornecer substitutos.

Na orientação lacaniana, quais as condições para que uma análise aconteça?

Lembremos Lacan na abertura do texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, ao dizer: ‘o psicanalista é aquele que seguramente dirige o tratamento’.  Ele coloca a vertente técnica, o que fazer, sempre visando a ética e por isso elabora as entrevistas preliminares – preliminares à entrada em análise. Trata-se aí da responsabilidade do analista frente à ética que rege a estrutura do discurso – ética do bem-dizer o desejo, que constitui, na experiência, o sujeito.

Para que o sujeito advenha nas entrevistas preliminares, indica-se ao paciente que fale, que diga qualquer coisa. Nessa perspectiva, Lacan sentiu a necessidade teórica e clínica de saber a estrutura do sujeito, fazendo das entrevistas preliminares um tempo para compreender o diagnóstico diferencial bem como para conduzir a demanda, pela via de um desejo à histerização do discurso. É pelo discurso histérico que podemos alcançar uma dimensão dinâmica da verdade, evidenciando que ela não pode ser toda dita.

Ainda em relação à demanda, como promover uma retificação do sujeito na sua relação com o real, já que este, com frequência, é velado pela própria queixa que o fez procurar um analista? Implicar o sujeito em sua enunciação é, justamente, interrogar qual sua participação na desordem do mundo que ele tanto se queixa. Quem é ele na fila do pão?

O tempo das entrevistas preliminares, que é variável, consiste em uma oferta de escuta analítica, que prepara a inclusão do analista no discurso do analisando, sendo necessária para a existência do sujeito do inconsciente. O analista acolhe o sintoma que faz o paciente demandar e orienta a transferência. A função das entrevistas preliminares consiste em instalar no sujeito uma interrogação sobre a causa de seu sofrimento, conduzindo-o a buscar a verdade, que logo depois será suspensa pela interpretação, fazendo aparecer o desejo de saber. Colocam-se em jogo as hipóteses e converte-se a certeza do paciente em suposição. Enfim, implicar o sujeito num novo laço com o Outro. Ofertar um Outro-parceiro, é o que deve aparecer nas entrevistas preliminares.

O paciente deve ser levado a consentir ao inconsciente.  Quando dirigir o seu sintoma ao analista ele o estará incluindo no inconsciente. Isto é o que chamamos de sintoma analítico. Nas entrevistas preliminares se dá a transmutação do sintoma queixa em sintoma analítico. Aí inicia-se a análise, propriamente dita, cuja orientação é ao real. Baseado no ‘desejo do analista’ este convoca o uso da palavra, para, na utilização da linguagem como laço, operar conforme a letra de gozo, fazendo aparecer o singular do falasser.

Sonia Vicente
Coordenadora da Comissão Científica do XXIX Jornada da EBP-Ba


[1] Esthela Solano-Suárez, Tres segundos com Lacan, p.19, Ed Gredos, Escuela Lacaniana de Psicoanalisis 2021

PLENÁRIA 1:

Luiz Mena (Mais-um), Iordan Gurgel, Claudio Melo, Milena Nadier, Kleyanne Lima, Liliane Sales, Pedro Ivo, Rogério Paes Henriques, Camila Abreu.

Entrevistas preliminares, transferência, interpretação e ato analítico

Frequentar o consultório de um analista não equivale, por si só, a estar em análise. É necessário que se inaugure um espaço de escuta que favoreça a livre associação — não qualquer silêncio, mas aquele que se recusa a ceder à demanda. Um silêncio ético, que não se acomoda nem consola. Jacques-Alain Miller1 propõe uma distinção crucial entre duas modalidades de demanda: a imaginária e a simbólica. Na primeira, insiste a repetição libidinal, perpetuando a regressão a posições infantis, animadas pelo gozo que se infiltra na própria fala. Já a demanda simbólica abre uma hiância, através da qual emerge uma pergunta que se revela como eixo do trabalho analítico: “O que isso quer dizer?”[1]

Na contemporaneidade, contudo, diante da erosão do Nome-do-Pai e da descrença na palavra, o desafio é outro: trata-se de instaurar uma hiância na relação do sujeito com sua fala, promovendo uma suposição de saber em relação ao próprio inconsciente[2]. Mas tal operação só se viabiliza a partir da transferência, esse laço inaugural que enreda amor, saber e gozo[3]. Seu manejo, longe de se apoiar em protocolos, exige uma articulação sutil entre a docilidade e a perturbação, o suficiente para convocar o enigma, mas sem precipitar a fuga provocada por um ato excessivamente disruptivo.

O que pode, então, o analista fazer para promover uma entrada em análise? Eis a questão que orienta esta investigação. Para desdobrá-la, nos deteremos sobre a função das entrevistas preliminares, a lógica da transferência, a potência da interpretação e a aposta no ato analítico.


[1] Miller, J. A (1994). Come iniziano le analisi. Disponível em: https://enapol.com/xi/wp-content/uploads/2023/03/ENAPOL-Jacques-Alain-Miller-PT.pdf. Acesso em: 11 abr. 2025.
[2] Lacan, J. (1988). O seminário livro 7: A ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1959-1960).
[3] Sinatra, E. (2017). Las entrevistas preliminares y la entrada en análisis. Olivos: Grama Ediciones, p. 90.

PLENÁRIA 2:

Rogério Barros (Mais-um), Júlia Solano, Graziela Vasconcelos, Clara Melo, Júlia Jones, Samyra Assad, Camilla Costa, Virginia Dazzani

 Parcerias sintomáticas contemporâneas: impasses na entrada

Há par porque não há relação sexual. Esse pressuposto orienta a ideia central de que a parceria se faz sob o fundo da inexistência da relação[1]. As parcerias, sempre sintomáticas, implicam abordar o sintoma como o que realiza um aparelhamento entre gozo e significante, sendo o objeto a o índice do gozo a ser restituído, suposto no Outro, numa relação com o falasser. É o que Miller apresenta como um novo par: o falasser e o parceiro-sintoma[2].

Sob as mais diversas modalidades de parcerias sintomáticas, a inexistência da relação sexual se manifesta na clínica atual. O século XXI traz a bandeira do direito ao gozo, cuja permissidade inerente ao regime do supereu deflagra sua companheira, a pulsão de morte[3]. A práxis psicanalítica contemporânea revela impasses na entrada em análise, indicando um Outro rompido[4], em consonância com a queda dos ideais[5] e a regressão a um estatuto autoerótico do sintoma[6], cuja alteridade radical é o corpo[7]. Se não há parceria, mas parcerias[8], interessa pensar os obstáculos inerentes à colocação do objeto a no zênite social[9] articulado ao estatuto inexistente do Outro simbólico.

O que se apreende dessas novas parcerias sintomáticas hoje? Que respostas a civilização vem encontrando para inscrever a relação sexual inexistente? De que modo o parceiro-analista joga o seu jogo nas trincheiras do desabono do inconsciente, desresponsabilização sintomática, que indica um desinteresse por uma subjetivação ou causalidade para o mal-estar que toma o corpo, sendo esse mesmo o próprio sintoma da época[10]?

Tal cenário nos permite interrogar o lugar do analista como Sujeito Suposto Saber (SSS), onde o parceiro-analista encontra desafios na concorrência com outros aparelhamentos de gozo[11]. Seria possível pensar, a partir da queda do SSS, algo que indicaria um Sujeito Suposto como operar?


[1]   Miller, J.-A. A teoria do parceiro. Em: Escola Brasileira de Psicanálise (Org.). Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2000.
[2] Laurent É.; Miller, J.-A. United Symptoms. Em: El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005.
[3] Miller, J.-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2010.
[4] Laurent, É. Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. Em: Opção lacaniana, nº 79, São Paulo: Eolia, 2018.
[5] Portillo, R. O declínio do ideal, a exigência de gozo. Em: Latusa digital. ano 2. n. 16 – julho, 2005. Disponível em http://www.latusa.com.br/pdf_latusa_digital_16_a1.pdf. Acesso em 01 maio 2025.
[6] Miller, J.-A. Para uma investigação sobre o gozo autoerótico. Em: Pharmakon digital – A especificidade da toxicomania, vol. 2, novembro, 2016.
[7] Lacan, J. O Seminário, livro 20 – Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
[8] Miller, J.-A. et. al. La pareja y el amor. 1a ed. Buenos Aires: Paidós, 2003.
[9] Miller, J.-A. Uma fantasia. Em: Opção Lacaniana. n. 42, p. 7-18, fev. São Paulo, 2005.
[10] Tizio, H. La función del síntoma. Granada: Editoral Universidad de Granada, 2015.
[11] Miller, J.-A. O osso de uma análise. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

PLENÁRIA 3:

Paulo Gabrielli (Mais-um), Ethel Poll, Graziela Pires, João Klaus Seydel, Marília Santiago, Tânia Porto e Wilker França.

Entrada em análise, diferença entre Psicanálise e Psicoterapia, fantasma e sintoma analítico.

O que leva alguém a procurar um analista? Como se sustenta a diferença entre falar e se implicar no que se diz? No início de uma análise é preciso que o sujeito possa associar livremente e estabelecer outra relação com seu próprio dizer, consentindo com o inconsciente. Não seria essa a diferença principal entre a análise e as psicoterapias?

Para Freud (2011), uma parte do inconsciente diz respeito aos conteúdos recalcados da vida psíquica, e o sintoma, como sua formação, articula-se com algo que retorna sem que o sujeito possa dizer. Trata-se de um enunciado recalcado que subsiste no sujeito como um texto indecifrável.

O sintoma, marcado pela repetição, pode abrir, em sua insistência, a possibilidade de um encontro — uma tykhe — que produza alguma retificação.  Para Miller (2011) “o sintoma é um Janus, tem duas caras, uma cara de verdade e uma cara de real” (p. 9). Assim, não se trata de escutar o sintoma analítico como quem escuta um desabafo, mas de fazer a leitura do que ali se repete indicando um modo de gozar. A escuta não busca o sentido, mas os efeitos de enunciação. Não seria esse um primeiro gesto de leitura do sintoma? Como tratar o sintoma não como um desvio a ser corrigido, mas como um acontecimento de corpo que faz furo no saber?

No curso de uma análise, o sujeito se vê confrontado à fantasia, essa moldura que organiza seu modo de gozar e que lhe oferece uma cena para suportar o desejo do Outro. Mas como ela aparece nas entrevistas preliminares?  Afinal, o sujeito fala do sintoma, mas silencia sobre o fantasma. Por quê? No neurótico, o conteúdo do fantasma é emprestado de um gozo que ele não reconhece como seu. Miller (2024) aponta que a questão é que o prazer que o falasser obtém do seu fantasma não combina com o resto. Como o analista pode operar para que algo desse circuito se revele, sem se apressar em interpretar?

Este eixo convida a demonstrar como essas e outras questões podem ser desenvolvidas na práxis da experiência analítica, em nossa Jornada Clínica.


Referência
FREUD, S.. O inconsciente (1915). In: FREUD, Sigmund. Obras completas: volume 14 – Escritos metapsicológicos (1915-1917). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 121–159.
MILLER, J-A. Ler um sintoma. Afreudite – Ano VII, 2011 – n.º 13/14. p.1-30.
MILLER, J-A. Sintoma-fantasma. OPção lacaniana 88. Abril/2024. Tradução de Vera Avelar à versão em francês publicada em La cause du désir, n. 114.

PLENÁRIA 4:

CONSELHO EBP/BAHIA: Aléssia Fontenelle, Analícea Calmon, Fátima Sarmento, Lucy de Castro, Mônica Hage (Presidente) e Pablo Sauce (Secretário).

Advir analisante, tornar-se analista: uma questão de Escola.

“Advir analisante, tornar-se analista: uma questão de Escola”, essa é a temática que o Conselho da EBP-Bahia elegeu para trabalhar no Seminário de Orientação Lacaniana, no ano de 2025, e que irá dialogar aqui com o tema dessas Jornadas. Nosso título é amplo e ousado, uma vez que parece querer abarcar não pouca coisa: advir analisante, tornar-se analista, não sem a Escola. Muitas entradas. Muitas passagens. Muitas portas e dobradiças.

Se é do trabalho de transferência que pode advir o analisante, é com a transferência de trabalho que um analista se dirige à Escola. Freud nos brindou com o trabalho de transferência, e Lacan inventou a transferência de trabalho Vale destacar que a transferência de trabalho diz respeito ao que restou de um gozo da transferência analítica que não pôde se liquidar. Como afirma Miller[1], não há atravessamento da transferência, não há grau zero da transferência, e o final de análise evidencia isso, tal como se vê nos restos sintomáticos enunciados por Freud e no dispositivo do passe proposto por Lacan.

Se, como aponta Miller[2], “é o analista quem deve decidir a entrada em análise, com a condição de ter sido investido com o estatuto de analista pelo paciente”, por outro lado, nem a psicanálise, nem ninguém, pode dizer o que é o psicanalista como tal. O psicanalista não existe. Ele acontece, um a um. E a pergunta sobre o que é um analista se coloca no centro da Escola.

O conceito de Escola implica, portanto, que o analista é o resultado da sua própria análise, e não o exercício de uma prática. No dispositivo do passe deve-se acolher o analisante como aquele que pode nos ensinar sobre o que é um analista, pois se não existe um conceito não se pode saber a priori. Trata-se, pois, de verificar algo que não se sabe.

Seguiremos nessa investigação!


[1] Miller, J.A. Cómo Terminan los Análisis, pg. 147. Olivos: Grama Ediciones, 2022.
[2] Idem, pg. 88.