Julia Solano (EBP/AMP) Inicio o editorial dessa última edição regular do Páthos com uma fala…
Uma interpretação inesperada
Rosa López AME (ELP/AMP)
Ela havia finalizado sua análise fazia tempo e ele era apenas um menino. Ambos eram felizes brincando. Inventavam histórias nas quais, além das palavras, colocavam o corpo. O pequeno homem sublimava a pulsão sádica, ela ria e com gosto acompanhava o jogo. As pistolas não paravam de disparar e as trincheiras, feitas com almofadas, eram assaltadas a mão armada até que um dos dois se dava por vencido, depois de ter sido morto várias vezes.
Porém, quando o jogo envolvia mais alguém, ela dizia: “Paremos que eu sinto pena” e ele obedecia, até que completou quatro anos. A cena era a mesma, porém desta vez o menino se sangou e disse algo fundamental: ”Vó, você deixou de ser minha ídola, porque você tem pena de tudo, e aquele que sempre tem pena não é valente”.
Ela, que havia enfrentado com coragem os embates de uma vida difícil, sentiu que poucas vezes alguém havia lhe feito uma interpretação tão certeira. De imediato comprovou quão frequentemente usava ultimamente a expressão “Que pena!” diante de questões muito desiguais.
A compaixão é necessária para tecer o laço social, porém se faz extensiva se converte na paixão mais imaginária, a menos heróica, pois se perde no labirinto dos espelhos. Aristoteles nos ensinou que o valor da tragédia é produzir nos espectadores a catarse como purgação de duas paixões: a compaixão e o temor.
O que diferencia o herói do homem comum é que o primeiro não se embaraça com o imaginário dessas paixões, pelo contrário, as atravessa porque mira o desejo, custe o que custar. “O acesso ao desejo precisa ultrapassar não apenas todo temor, mas toda piedade, que a voz do herói não treme diante de nada, e muito especialmente diante do bem do outro”.[1]
Esta é a posição do analista quando faz uma interpretação (não sem prudência).
Mas então, estamos opondo herói e analista ao homem comum ou o menino dessa história? Não necessariamente. Lacan coloca algo muito paradoxal:
Da última vez opus o herói ao homem comum, e alguém se ofendeu. Não os distingo como duas espécies humanas – em cada um de nós há a via traçada para um herói, e é justamente como homem comum que ele a efetiva.[2]
A sorte de receber uma interpretação inesperada, vinda da boca de quem, por sua idade, não se lhe supõe o saber, consegue despertar o sujeito do sonho imaginário para recordar-lhe a mensagem que a tragédia transmite e que a atualidade tem esqueccido.