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Um corpo afetado pelas paixões

Licene Garcia[1]

 

Falo com meu corpo, e isto, sem saber.
Digo, portanto, sempre mais do que sei.
Jacques Lacan

Lacan[2] introduz as paixões do ser – amor, ódio e ignorância – como uma tríade que, através da demanda, cristalizará o modo a partir do qual o sujeito estabelecerá relações com o Outro, propondo uma separação da concepção freudiana, que definia os afetos pela via das emoções.

Sendo a transferência o motor que orienta o trabalho de análise, Freud aponta o par amor e ódio como afetos fundamentais presentes na clínica psicanalítica. Lacan, ao ler Freud, compreende que o saber suposto em um sujeito é o fundamento da transferência e aponta que a ignorância, em associação com o amor e o ódio, aparece como verdadeiro pivô na relação do sujeito com o saber.

Lacan reposiciona o estatuto do ser no seminário Mais, ainda e, consequentemente, retoma o amor, o ódio e a ignorância, mas agora sob novo contexto. As paixões deixam de se organizar em relação à falta-a-ser do sujeito e passam a estar do lado do gozo. “O ser é o gozo”[3], nos diz Lacan. Deste modo, onde está o ser, há uma exigência de gozo. Diante de tal precisão, o que Lacan faz é colocar os afetos em direção à paixão, mais precisamente às paixões da alma. “O que diz respeito ao ser, ao ser que se colocaria como absoluto, não é jamais senão a fratura, a rachadura, a interrupção da fórmula ser sexuado, no que o ser sexuado está interessado no gozo”.[4] O que podemos ler, com Lacan, é que será entre saber e gozo, muito mais do que entre o sujeito e o ser, que se articularão os afetos e as paixões.

Reposicionar saber e gozo consequentemente reposiciona o lugar da verdade, que, estando do lado do real, tem estrutura de ficção. Isso implica dizer que há um impasse, um fracasso estrutural em nomear, em transpor em palavras tudo que se experimenta, não somente no laço com o Outro, mas principalmente naquilo que se experimenta na relação com o corpo próprio. Por isso, só podemos falar de afetos na condição de um corpo afetado pelas paixões. Pensar em um corpo afetado localiza o esforço presente tanto em Freud quanto em Lacan, para sustentar a inadequação que há no ser falante, entre seu corpo e o mundo.

Sobre isso, Miller[5] nos esclarece: “o afeto quer dizer que o sujeito está afetado em suas relações com o Outro”. Com Miller, podemos ler que estamos diante de um paradoxo, pois se nossa prática se orienta para o singular do gozo em cada um, só podemos acessar algo do singular pelo modo que cada um se deixa afetar pelo Outro.

Para pensarmos as paixões enquanto expressões desse modo singular de gozo, não o fazemos sem passar pelo Outro. Esse foi o esforço de Lacan ao demarcar a dicotomia presente entre as paixões do ser – que tangem a relação com o Outro – e as paixões da alma, enquanto paixões do objeto a. Aqui, abrem-se as perguntas: quando demarcamos essa dicotomia, estamos falando do Outro e do Um? Seriam as paixões do ser uma defesa, mas também uma porta de acesso às paixões do falasser, já que, seguindo Miller, não necessariamente precisamos nos desprender das paixões da alma? Podemos apostar nas paixões para ter algum acesso ao Um?

Ao considerarmos que o falasser se defende da pulsão que o habita, situando-a no Outro, os afetos podem enganar na medida que tocam na verdade mentirosa de cada um, quando lidas pelas lentes da fantasia. Com exceção da angústia, que, para Lacan, é o único afeto que não engana. Podemos dizer, então, que o afeto não é jamais inconsciente, ele sempre aparecerá para o sujeito como um significado. Nesse sentido, Lacan está mais perto de Freud ao formular que os afetos enganam: “o afeto, pode ser louco, invertido, metabolizado mas não recalcado. O que é recalcado são os significantes que o amarram”[6].

Gorostiza[7] aponta que será desta inadequação que decantará o axioma lacaniano “a relação sexual não existe”, pedra angular dos afetos. Assim, será o troumatisme – enquanto acontecimento de corpo, marca da ação de lalíngua – que implicará ao falasser a corporização do significante como afeto, como efeito de gozo do significante sobre o corpo. O que nos permite dizer que os afetos lacanianos podem ser lidos como aquilo que testemunham isso que Lacan chamará de “traço de exílio”[8].

Quem fala só tem a ver com a solidão, no que diz respeito à relação que só posso definir dizendo, como fiz, que ela não se pode escrever. Essa solidão, ela, de ruptura do saber, não somente ela se pode escrever, mas ela é mesmo o que se escreve por excelência, pois ela é o que, de uma ruptura do ser, deixa traço.[9]

Se é desse troumatisme que emerge o falasser, é a partir dele que cada um precisa confrontar-se com o desafio de encontrar uma solução para esse vazio constituinte, que produz, como marca, essa dimensão opaca e inominável chamada gozo.

Ao colocar a questão do falasser em relação ao gozo, torna-se possível dizer que os afetos tomados no nível das paixões tocam na dimensão ética e tocar na dimensão ética do falasser implica que cada uma das paixões apontam para a posição que cada um estabelecerá com a verdade, mas sobretudo, a posição fundamental de cada um, em relação ao verdadeiro traumático: o choque da língua com o corpo e “o inconsciente é o testemunho de um saber, no que em grande parte ele escapa ao ser falante”[10]. Por isso, a linguagem é uma elocubração de saber sobre lalíngua e o inconsciente um saber-fazer com ela, visto que tudo que lalíngua comporta são afetos. “Se se pode dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, é no que os efeitos de alíngua, que já estão lá como saber, vão bem além de tudo que o ser que fala é suscetível a enunciar”.[11] Assim, é com ela e contra ela que nos humanizamos. É a partir do mal-entendido estrutural e irredutível que nos inserimos em um exílio sem retorno. Nas palavras de Pascale Fari: “lalíngua nos faz falar, rir e chorar. […] Dizer que ela nos afeta é pouco: ela é nossa carne e nosso sangue. […] o inconsciente, é a um só tempo, a comemoração desse encontro imemorial e defesa contra esse real sem lei e fora de sentido.[12]

Podemos afirmar, então, que os afetos, por tocarem na verdade mentirosa do falasser, podem ser, também, um dos modos de acessar algum saber. Eis o motivo pelo qual Lacan vai apostar na ética do bem-dizer para acessar a dimensão do gozo, visto que a paixão conserva a relação com o objeto. Nossa relação como o mundo nunca é direta, ela sempre será mediada pelo objeto a. Com isso, Lacan marcará algo importante: “o a, que chamo de objeto […] e o A, designo com ele o que, de começo, é um lugar. Eu disse – o lugar do Outro”[13]. Sendo o Outro um lugar, ele não é algo dado de entrada, é preciso construí-lo. O lugar do Outro é uma construção, uma ficção. Por isso, cada realidade se funda e se define pelo discurso enquanto modalidade de laço.

Segundo Esebbag[14], podemos dizer que o Outro tem estrutura de ficção, uma vez que, em uma análise, trata-se de fazer emergir a forma particular que cada um fez para existir seu Outro de um modo específico pela fantasia. É por não poder separar-se deste Outro construído que o sujeito dedica parte de seus sintomas e sofrimentos. Sendo o fim de uma análise o momento da queda deste Outro como ficção, demonstrando, assim, sua inexistência. Nas palavras de Lacan:

“Nós só gozamos com o Outro […] só o Outro usufrui de nós […] o S(A/) é a mesma coisa que acabo de formular: que com o Outro se goza mentalmente […] Vocês só gozam com suas fantasias. O importante é que suas fantasias gozam com vocês”.[15]     

Não há existência senão contra um fundo de inexistência. Se o Outro não pode fundar uma existência – pois o Outro se inscreve no nível do ser -, o que domina é o Um: só há o Um. Por isso, o Um é “o que só existe ao não ser”[16], ele ex-siste a partir do dizer, ao mesmo tempo em que subsiste fora dele.

Em outras palavras, tudo que implica o ser sempre irá remeter ao Outro, como podemos verificar nas paixões do ser. Há-Um não diz respeito ao que o Um seja, mas diz de sua existência. É o que nos permite dizer que Há-Um e o Outro. Por isso, o percurso de uma análise se trata de uma leitura e escrita – em retroação – daquilo que deixou traço. É somente pelo Outro que podemos ter acesso ao Um, não para dizê-lo, mas para ler o traço de sua existência. É tomar a fala como um modo de satisfação que toca o corpo, que, para além da decifração e da equivocação dos sentidos, aponta para o modo que o gozo toca o corpo do falasser. O gozo enquanto gozo do Um, que não se dirige ao Outro; marca da experiência de satisfação solitária em habitar o corpo próprio, visto que o Um que diz respeito ao ser falante é o Um que não passa ao dois.

Coloco o acento em uma das paixões da alma: a tristeza. Lacan, em Televisão, aponta a tristeza como um saber falido – ‘covardia moral’[17] – e, ao contrário do que se pensa, não coloca a tristeza em oposição à alegria, mas em oposição ao bem-dizer, ao gaio saber. Assim, para compreender qualquer teoria que tange aos afetos, Lacan nos esclarece que não se faz isso sem passar pela ética, justamente por ela tocar na relação do falasser com o gozo. Nas palavras de Miller: “O que é o bem-dizer? Não se trata do manejo do significante pelo significante, mas precisamente do acordo do significante com o gozo e sua ressonância. A ética do bem-dizer consiste em cernir, apreender no saber o que não se pode dizer”.[18] Por isso Lacan colocará a tristeza como uma questão ligada ao saber; ao fazer isto, ele nos esclarece que a tristeza é relativa a esse acordo entre significante e gozo e, assim, se o saber é triste, o falasser se mantém em uma posição de exterioridade em relação ao próprio gozo, abandonando a si mesmo.

Uma análise é uma aposta no entusiasmo, em um saber alegre que faz o sujeito passar da impotência que caminha ao lado da tristeza, ao impossível do saber, que comporta o gaio saber. Aqui cabe esclarecer a importância de opor o entusiasmo à beatitude, na medida em que Lacan colocará o entusiasmo como afeto próprio a um bom acesso ao saber, enquanto a beatitude é um estado onde ao sujeito nada falta, já que ele acredita estar de acordo com seu gozo. Por isso, para pensar os afetos lacanianos torna-se crucial a passagem da consistência à inconsistência do Outro.

A “alegria lacaniana”[19], termo proposto por Miller, é relativa ao saber, um saber que admite a extimidade do gozo, permitindo alguma reconciliação entre significante e gozo, reposicionando a relação de cada um com o objeto a, marcando assim uma passagem do horror ao saber – paixão da ignorância – para o ‘a’ enquanto causa de desejo, espaço e condição para alguma invenção. Em outras palavras, o saber de que se trata é quando o sujeito pode consentir com a inconsistência do grande A simbólico e pode tomar o pequeno a, enquanto objeto causa de desejo. “Abre-se, aqui, então, outra dimensão, na qual o que existe de não negativizável, isto é, de real, concernente ao gozo pode achar seu lugar não mais como obturador da falta-a-ser, mas como a existência de uma satisfação singular e incurável: Há-Um”[20]. Ainda que o Outro não exista, “o saber, este existe, na condição de construí-lo e inventá-lo”.[21] Isso reposiciona também o lugar da transferência, na medida em que aponta para o que está realmente em jogo em uma análise: a passagem da suposição de um saber no Outro para a suposição de um saber no real, esclarecendo a precisão clínica que Lacan propõe ao dizer que o analista opera com o real. Nas palavras de Oscar Zack: “Se o real de cada sujeito é imodificável, o que tem que se modificar é a posição do sujeito para fazer frente a esse real que o habita. Desta transformação subjetiva, o analista, a partir do caso, tratará de dar conta.”[22]. Como nos ensina Lacan, é dar-se a chance de “desfazer pela fala o que foi feito pela fala, até certo ponto.”[23]

A experiência analítica ela é
de fato, uma experiência afetiva.
Jacques-Alain Miller


[1] Psicanalista praticante. Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ. Reside e exerce a prática clínica em São Paulo. Participante em formação contínua pela Escola Brasileira de Psicanálise
[2] LACAN, Jacques. Seminário 5: as formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 513.
[3] LACAN, Jacques. Seminário 20: Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p.15.
[4] Idem, p.20.
[5] MILLER, Jacques-Alain. A propósito dos afetos na experiência analítica. In: Kalimeros: As paixões do ser. Escola Brasileira de Psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa. 1998, p. 47.
[6] Idem, p.44.
[7] GOROSTIZA, Leonardo. Afetos lacanianos. In: Associação Mundial de Psicanálise. Scilicet: Os objetos a na experiência analítica. Escola Brasileira de Psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa. 2008, p.16-17.
[8] Idem 3, p. 198.
[9] Idem 3, p. 163.
[10] Idem 3, p. 170.
[11] Idem 3, p. 170.
[12] FARI, Pascale. Lalíngua. In: Associação Mundial de Psicanálise. Scilicet: Um real para o século XXI. Escola Brasileira de Psicanálise. Belo Horizonte: Scriptum. 2014, p.221-222.
[13] Idem 3, p.40.
[14] ESEBBAG, Gabriela. El Outro no existe. In: GONZÁLEZ, Claudia (coord.). Aforismos lacanianos: una introducción al psicoanálisis. Barcelona: Ned ediciones. 2022.
[15] LACAN, Jacques. …ou pior (1971-1972). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p.109-110.
[16] Idem 14, p.131)
[17] LACAN, Jacques. Televisão (1974). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p.524.
[18] Idem 5, p.50.
[19] Idem 5, p. 50.
[20] SOUTO, Simone. Como conceber a transferência na clínica do Um que dialoga sozinho? Boletim (in)temporal. Boletim eletrônico da 24ª Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise da Seção Bahia. 2019. Disponível em: https://www.ebpbahia.com.br/jornadas/2019/2019/06/21/como-conceber-a-transferencia-na-clinica-do-um-que-dialoga-sozinho/. Acesso em: 12 de fev. de 2024.
[21] Idem 5, p.51.
[22] ZACK, Oscar. Reflexões a propósito da construção do caso. In: Curinga, v.1 n.0. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, 2010, p.150.
[23] LACAN, Jacques. Le moment de conclure. Leçon du 15 de novembre 1977, Ornicar?, Paris, 1979.
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