Um Convite a Escrita
Pablo Sauce (EBP/AMP) – Coordenador do núcleo da Jornada Clínica
As paixões, uma linguagem
Provocado particularmente pelas paixões do tédio e da (douta) ignorância, na abertura de “El curso de las pasiones” [1], Germán García coloca as cartas na mesa ao explicitar os motivos que o levaram a se interessar pelo assunto das paixões. Para justificar a escolha do tema, diz o seguinte: “dito pela negativa, meu interesse se originou pelo tédio que me produz a maneira como nos contamos a psicanálise uns aos outros na cidade de Bs. As. Dito pela positiva, queria encontrar alguma ideia um pouco menos abstrata das que J. Lacan coloca quando fala da exclusão, ou foraclusão, ou rechaço do sujeito na ciência moderna” (século XVIII). Assim, seguindo Lacan, procura nos antecedentes discursivos da psicanálise e da ciência os recursos para uma explicação “um pouco menos abstrata” dos fundamentos da experiência analítica; e para isso recorre à linguagem das paixões.
Este modo singular de apresentar o tema me parece muito pertinente e oportuno para nosso contexto atual de convocação à troca de experiências através da apresentação de trabalhos em uma Jornada Clínica. Sua pertinência se deve, em primeiro lugar, ao apresentador estar implicado naquilo que lhe interessa elucidar, ou seja, fala como analisante; em segundo lugar, porque pretende dialogar com o presente incluindo no debate seus interlocutores mais próximos; e em terceiro lugar, porque não se priva de tomar o relevo de Freud, Lacan, Miller, entre outros, na hora de se interrogar e responder pelas condições de transmissibilidade de uma experiência orientada pelo discurso analítico. No qual, tomar o relevo significa ser causado por seus antecedentes, enquanto sujeitos do inconsciente, e interpretá-los, em lugar de tomá-los simplesmente como mestres. Eis aqui uma posição subjetiva a um tempo apaixonada e apaixonante; posição à qual, de uma ou outra maneira, somos convocados cada um dos que praticamos a psicanálise.
A respeito das paixões, G. Garcia, destaca uma citação de Lacan para nos indicar que “o problema é o da entrada do significante no real e ver como disso nasce um sujeito”. E dá uma definição aproximada das paixões como “a entrada do sujeito na linguagem”. Porque “não há outra forma de ver de que modo o sujeito da enunciação entra no enunciado”: questão central em jogo no percurso de uma análise, desde a entrada no dispositivo até sua saída. E propõe, a modo da bússola kantiana, quatro formas de modalizar as paixões: querer/saber/poder/dever. Então, com ele, questionamos o seguinte:
Em relação ao querer: se quer aquilo pelo qual se está apaixonado?
Em relação ao saber: é necessário conhecer o valor do objeto para apaixonar-se? O amor é cego? Ou se ama porque se sabe o valor que esse objeto tem para o amante?
Em relação ao poder: a paixão é uma força ou energia que tende a realizar-se?
Em relação ao dever, no duplo sentido -lógico e moral: é necessário que haja paixões? Sou responsável por minhas paixões?
Por outro lado, poderíamos fazer uma sequência na qual colocamos um dos quatro elementos como agente, fazendo os outros três responder a este. Por exemplo, começar com o saber: O que quero saber? O que posso saber? O que devo saber? E assim sucessivamente; o que nos remete à uma questão não somente ética, senão também estética, dado que supõe pôr em jogo o gosto de cada um. Nesta perspectiva, G. Garcia, afirma que no contexto da imanência de uma sociedade racionalista, a psicanálise se propôs fazer uma estética transcendental das paixões na medida em que as reduz a sua lógica; a partir do aparelho psíquico em Freud e dos aparelhos do fantasma e do sintoma em Lacan, os quais acabarão sendo reduzidos ao sinthome como a aparelhagem do falasser. Releitura freudiana das paixões da alma onde a pulsão é entendida como uma força passional, ao estilo do apetite racional em Aristóteles. Lembramos aqui que, J. J. Rousseau, para quem o passional seria a única forma de realização do sujeito, encarnou a outra cara do racionalismo europeu na época de seu surgimento. O apetite racional implica um enodamento entre o apetite das pulsões, enquanto paixões do corpo e a razão que pretende dominá-las.
Aos efeitos de orientar e estimular a produção de trabalhos para nossa Jornada colocamos, a modo de ilustração, passagens de um texto produzido por mim para uma mídia a partir de um episódio de domínio público acontecido com a apresentadora Ana Hickmann em maio de 2016:
Bem Me Quer, Mal Me Quer
“Eu te amo, mas, porque inexplicavelmente amo em ti algo que é mais do que tu (…), eu te mutilo.” (Jacques Lacan)
O amor é como um pharmakón, a depender da dose pode ser o melhor remédio para tratar a dor moral de alguém ou o pior veneno do qual se alimenta essa mesma dor. “Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada, não”, diz o poeta. O caso que envolveu Ana e seu fã “obcecado”, R, levantou uma questão: a partir de que momento e em função de quais fatores uma paixão pode vir a tornar-se mórbida?
No caso referido, se nos orientamos pela Psiquiatria Clássica, estaríamos falando do desencadeamento de uma erotomania. Esta paixão amorosa adquiriu status de Síndrome no início do século XX, com Clérambault, sendo um dos Estados Passionais Mórbidos. Isso ocorreu quando o psiquiatra precisou diferenciar os apaixonados “normais” dos “delirantes”, os quais, após uma frustração amorosa, geralmente acabavam em atos criminosos.
Para Clérambault, nas síndromes passionais há uma ideia diretriz -núcleo delirante- a partir da qual o indivíduo interpreta as situações e desenvolve sua paixão; porém, este núcleo não compromete toda a “personalidade”, o que dá ao quadro um aspecto de aparente normalidade. O postulado fundamental consiste na certeza de ter seu amor correspondido por um personagem eleito, geralmente alguém de status mais elevado.
Classicamente o quadro apresenta três fases. Uma vez instalado o postulado fundamental, se assemelha a um episódio de enamoramento. Porém, diferentemente dos apaixonados “normais”, na erotomania desencadeada há uma intensidade absolutamente desmedida da paixão. Para ilustrar esta primeira fase com o caso referido, destaco uma passagem do Instagram onde R diz para Ana: “meu Sol, minha luz, minha princesa, meu amor, minha paixão, mulher da minha vida… Eu te amo e te amarei mesmo depois do fim… Quando não houver mais vida na Terra, e as estrelas, os planetas e todo Universo se transformem em nada”.
A segunda fase é caracterizada pelo despeito. Quando o sujeito tem pelo ser amado, simultaneamente, sentimentos de conciliação e de vingança, baseados em seu orgulho ferido, pelo fato de que o ser amado não está correspondendo ao que a erotomania em questão espera dele. Para ilustrar este segundo momento, pós desencontro amoroso, cito outra passagem de R: “Ana, meu amor, eu estou muito triste porque você gosta de me ver assim e ainda brinca com isso? Eu quero seu carinho, seu amor, não quero ser magoado! Eu te dou tanto amor, sou tão bom pra você e os meus dias estão desse jeito. Não estou dormindo direito, meus dias estão uma merda e a minha saúde indo pra casa do. Obrigado mesmo”.
A terceira e última fase destacada por Clérambault se caracteriza pelo sentimento de rancor ou de reivindicação, quando, a partir da desilusão amorosa, o indivíduo sente ódio pelo ser amado e passa a fazer-lhe acusações e ameaças: para exemplificar, cito outras frases de R: “Eu nunca me senti tão humilhado como agora. Vc respondeu pessoas que eu nunca vi te escrevendo e me ignorou! O que eu fiz para vc?”; “Porque você é uma mentira. Duvidou do amor que eu tinha”; “Eu sou um ser humano, cretina. Sou um ser humano”. Uma frase da entrevista com Ana ilustra o sentimento predominante no desfecho da paixão não correspondida: “Ele olhava para mim com um ódio tão grande que eu nunca pensei que alguém pudesse sentir isso por mim. Ele deixou bem claro que pelo fato de eu não ser dele, não seria de mais ninguém”.
Quando uma erotomania se instala, distingue-se de uma “paixonite aguda” pela certeza tão inabalável quanto delirante, de ter recebido da pessoa admirada um inequívoco signo de amor: “ela colocou esse vestido porque me ama”. A partir da confirmação, pela interpretação delirante, de que seu amor é correspondido por ela, o admirador-admirado passa a demanda-lhe mais e mais provas de amor que testemunhem em favor da realidade dessa ilusão.
Quando a expectativa amorosa, alimentada pelo delírio, é confrontada com a inexistência desse amor correspondido – através das inevitáveis frustrações amorosas que a realidade impõe – acaba por derivar em ódio, em reivindicação ou em perseguição do ser amado. Casos como este nos ensinam que, diferentemente de uma paixonite, na dimensão erotomaníaca do amor o verdadeiramente impossível de suportar é a indiferença do ser amado.