Skip to content

Paixões do falasser – mortific(a)r ou vivific(a)r

Graziela Vasconcelos (IPB)

Sabemos que Lacan introduz o termo falasser para dizer do sujeito e seu corpo, do sujeito e seu gozo. Uma relação que não passa pela imagem, que é diferente daquela do estádio do espelho, na qual o olhar do Outro permite ao sujeito constituir um corpo. Laurent, em Los objetos de la pasión, vai nos dizer que, ou o sujeito tem uma relação com seu corpo como imagem especular, ou essa relação se dá por meio do gozo proveniente das zonas pulsionais. Ou seja, a relação do sujeito com o corpo se dá pela imagem ou pelo furo. Talvez possamos dizer, essa relação se dá pela mediação do Outro ou em ausência dela, no entanto, em presença do objeto a enquanto furo.

É a partir de Joyce que Lacan vai poder pensar uma relação com o corpo que não passa pela imagem. A perda do corpo, ou seu abandono, após a surra que lhe é dada por alguns companheiros, sem o posterior registro de um corpo infligido, nos mostra que, em Joyce, paradoxalmente, não há uma relação narcísica com a imagem, o que se observa é uma relação narcísica com o que faz furo no corpo, com o objeto a. Está em jogo uma articulação do inconsciente com o real do gozo, por meio do a. O que permite Lacan desenvolver, em seu texto “Televisão”, essa articulação enquanto paixões da alma, ou, como propõe Miller, paixões de a.

Vemos então que, aqui, o Outro não está incluído. Há uma separação que se estabelece por meio do objeto a. Está em jogo, portanto, uma relação com o corpo que passa necessariamente pelo a. Porém, se tomarmos a série das paixões da alma, que Lacan nos apresenta em “Televisão” e o que testemunhamos na clínica do século XXI, parece haver dois modos dessas paixões afetarem um corpo, um modo que sustenta uma articulação com o objeto a, como testemunham o gaio saber, a felicidade e até o mau humor. Outro modo que testemunha um certo desalojamento do objeto a, quando o que se apresenta são casos em que o imperativo anônimo da pulsão ordena ao sujeito um gozar sem tréguas, sem espaço para um corpo falante.

O que faz com que, em muitos sujeitos, o objeto a esteja desalojado de um bom lugar? A nova ordem estabelecida a partir de um enfraquecimento do nome do pai, de uma ascensão do discurso capitalista e coroada pela inexistência do Outro, ao que tudo indica, contribui para o que vemos diariamente na clínica, sujeitos cuja bússola parece ter sido afetada  pela anomalia magnética do Atlântico Sul.

Ante a clínica contemporânea, a dos Uns sozinhos, nos restaria, portanto, a intervenção analítica como possibilidade para uma “boa” soldadura entre o saber inconsciente e o gozo, por meio do objeto a?

…Se bastasse cantar compassiva

Pra aplacar a agonia

Nessas terras de gente cativa

De cantar morreria…

Adelio Cogliati/ Eros Ramazzotti/ Pierangelo Cassano


Bibliografia
LACAN, J. Televisão. En Outros Escritos. Zahar, Rio de Janeiro, 2003
LAURENT, E. Los objetos de la pasión. Tres Haches, Buenos Aires, 2019.
LEGUIL, C. Las pasiones del cuerpo en el siglo XXI. Revista Freudiana n. 73.
MILLER, J.A. La consistência lógica de a. En Extimidad. Paidós, Buenos Aires, 2010.
Back To Top
Search
Abrir bate-papo
Olá 👋
Podemos ajudá-lo?