Skip to content

O amor no falasser

Samyra Assad[1]– (EBP/AMP)

O passe de Clotilde Leguil[2] nos demonstra como o estatuto do amor se transformou a partir do que se pôde ler no inconsciente real. Depura-se nisso uma primeira escritura mínima de um corpo, fundo de indeterminação, equívoco da existência entre 0 e 1 – esse farrapo de discurso a partir do qual tudo se enganchou e permitiu uma topologia entre o início e o fim de sua análise. Trata-se de um ponto avesso ao sentido, conquistado através de uma interpretação orientada pelo real, que jogou com a matéria sonora equívoca.

Tudo partiu do segredo familiar relativo à morte da primeira irmã do pai, quando bebê, por ter bebido uma água (d’eau) insalubre, cuja pronúncia em francês se equivale a “O”. Por outro lado, Clotilde é a primeira filha da sua família. Ser a primeira e “ao mesmo tempo perdida” trouxe o que ela não conseguia nomear – sua relação com o gozo.

Um sonho trouxe-lhe surpresa e enigma em um só golpe: sua filha perdida em uma cidade estrangeira, responde-lhe de um bueiro: “estou aqui”. Essa resposta no sonho permitiu a Clotilde se lembrar da ocasião em que o pai, ao fazer a contagem dos seus próprios irmãos, falou o nome da irmã morta, sob protesto da mãe: “É preciso contar a primeira perdida”? Se desse trauma da história paterna não se podia dizer uma única palavra, esse ditado se transformou em enigma da relação com a morte no discurso materno.

Através da contingência – “eu estou aqui” –, depois de 18 anos de análise em três sessões semanais, foi possível trazer os significantes que se articulam em torno de uma escritura, que carregam entre si a marca do traço traumático pelo equívoco sonoro da letra matemática em torno desse O/zero/água. Essa letra sempre a mesma, assim sucedendo: letra “O” do seu grupo sanguíneo, o “O” que falta na palavra dénuement (“indigência”, “privação”) para se transformar em dénouement (“desfecho”), a partir de uma escansão que o analista lhe faz: dé-noue-ment.

Logo, essa letra matemática, “O”, demonstrará o “fio de ouro do gozo”, por demonstrar em sua função ser sempre a mesma e, com isso, “suas afinidades com o registro do real”[3].

No passe, um sonho: o pai lhe entrega um papel com um número de telefone. Lê-se 0-1.

Desse modo, restou apenas “a estranheza do que pode se dizer do amor ao inconsciente tal como ele é lido” [4].

Se o desfecho da sua análise foi marcado por um desapego do sentido, isso favoreceu morder a substância gozante. Ou seja, antes de ter um sentido, esse traço simbólico (“a primeira”) teve um valor de gozo que repercutiu no corpo como eco de um dizer. A letra articulada ao significante não era mais casada com um significado, mas com um efeito de gozo.

Articular a letra (O) ao significante (1), mas com efeito de gozo separado de um significado, possibilitou um novo uso das marcas de gozo, a partir do que itera e que permite sua contagem numa existência. Há Um, como metáfora do 0.

Como um novo amor, que faz um ponto de basta ao sentido, ela passa a amar o que de mais singular existe em um sujeito. Esse novo amor como uma paixão do falasser contou com a indeterminação inerente à língua a partir de uma primeira escritura. Isso, inclusive, transformou sua relação com seus analisantes, ao oferecer aí o seu corpo através da satisfação pela escuta da existência singular de cada um deles.

Para Clotilde, uma letra tocou seu corpo, fazendo dele um corpo poético sob o tom do eco de um dizer, ao som vazio de sentido que precipitou a marca de uma língua.


[1] Participante do GT: As paixões na experiência analítica: manejos e arranjos

Sonia Vicente AME (EBP/AMP)- Coordenadora; Marina Recalde AME (EOL/AMP) -Êxtima

Participantes – Analícea Calmon AME (EBP/AMP), Clara Melo (IPB), Ethel Poll(IPB), Luiz Felipe Monteiro (EBP/AMP), Maria Luiza Miranda (EBP/AMP), Rogério Barros(EBP/AMP), Samyra Assad(EBP/AMP) e Waldomiro Silva Filho.

[2]LEGUIL, C. O novo amor, um amor que faz ponto de basta. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 87, p. 115-125, abr. 2022.

[3]MILLER, J.-A. Pièces detachées. La Cause freudienne, n. 62, mar, 2006, p. 79.

[4]LAURENT, É. A interpretação: da escuta ao escrito. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 87, abr. 2022, p.125.

Back To Top
Search
Abrir bate-papo
Olá 👋
Podemos ajudá-lo?