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“Não mexe comigo, que não ando só”

 Marília Santiago
Núcleo da Política da Nova Juventude

“…É assim, eu tenho, nós temos poetas e escritores extraordinários. Eu sou cantora popular, não sou escritora. Eu escrevo para me preservar, para me resguardar um pouquinho da vitrine, do palco, né? Que a carreira, a profissão exige. Eu adoro escrever, desde muito moça. Escrevo muito. O Wally Salomão, que era uma pessoa que sempre se interessava pelo que eu escrevia, mas que brigava muito comigo, meu querido amigo, porque ele me ligava e dizia assim:

– Eu soube que você passou o fim de semana escrevendo.

Eu falei:

– Pois é, escrevi.

– Eu vou aí.

– Não vem, porque eu já queimei.

Eu escrevo e queimo, eu escrevo e queimo, eu escrevo e queimo. Porque acho…acho purificador, escrever e queimar […] eu escrevo para mim, que eu acho que posso me compreender um pouquinho, o que seja, né? Pro meu analista, mostro muita coisa para ele, pros meus amigos, atores, diretores, Fauzi, Elias. Pessoas minhas, pessoas daqui, de dentro da minha vida, do meu coração. Para essas pessoas, eu escrevo.”¹ (Maria Bethânia, em entrevista.)

 Refrão entoado por Maria Bethânia em sua Música “Carta de Amor”, faz parte do álbum de mesmo nome. Refrão que toma forma imperativa, tom firme, ameaçador, como se mostra ao longo da canção. Dando a ver todo ódio contido no amor. A cada estrofe, muda ritmo, compasso, a canção inicia falando de amor, daqueles que protegem e cuidam. Território conhecido, seu berço, seu chão.

Bethânia tem uma longa trajetória, para além da música, no candomblé, é filha de Oxum, orixá das águas doces, rios e cachoeiras, deusa da beleza, do amor, da fertilidade. Também, filha Iansã, deusa dos ventos, raios e tempestades. Com muito trabalho, construiu um lugar de importância e respeito, sua música entoou cânticos e levou a história e a cultura do povo de santo onde jamais se imaginara. Após revelar a vasta lista dos seus guias protetores e sua íntima relação com eles, seu traço visceral resplandece, não é apenas do amor divino que se trata essa música. Uma vertente feroz, como quem mostra uma face pouco vista, mas um traço certeiro da cantora.

“Jacques Lacan faz do ódio uma das paixões do ser, junto com o amor e a ignorância. Se bem que o amor pode virar rapidamente ódio, este – em sua face real- põe em ato a impossibilidade de fazer do próximo um semelhante […] A relação com o semelhante é ambígua. Quando o outro não nos devolve a imagem ideal, torna-se ameaçador, malvado. A dialética imaginária, com suas paixões, não consegue dar conta disso, pois o outro pode ser, para o sujeito, o impossível de suportar.” ².

O ódio está no princípio da constituição do sujeito, Lacan retoma a teoria freudiana e assinala que há um gozo não reconhecido como próprio, que permanece como um resto inassimilável para o sujeito, sendo assim o mais íntimo e o mais alheio para o sujeito. Segundo Patrícia Moraga³, não há comunicação, acordo ao nível do gozo, o ódio aponta para uma diferença absoluta: te odeio porque tu não gozas como eu. Nada concentra mais ódio do que o dizer de uma exceção na qual se situa a existência.

“Onde vai, valente? /Você secou, seus olhos insones secaram/Não veem brotar a relva que cresce livre e verde longe da tua cegueira/ Seus ouvidos se fecharam a qualquer música/A qualquer som/Nem o bem, nem o mal/Pensam em ti”4. Ana Stela Sande, em sua transmissão no Seminário de Formação Permanente do presente ano, nos ensinou que esse não reconhecimento do gozo do Outro é o que o sujeito experimenta enquanto ódio, e, por não reconhecê-lo, o sujeito quer eliminá-lo, pois representa uma ameaça. Não se sabe ao certo a origem da música, no boca a boca, há uma lenda urbana que diz que essa música seria uma resposta de Bethânia a uma crítica de um jornalista. No entanto, não achei registros em que se comprovassem ou negassem essa história. O que de fato podemos atestar é o que o ódio é o único sentimento lúcido.

Referências Bibliográficas:
  1. Entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AVabA3iKnSM
  2. Moraga, P., Del odio como lazo social. AMP Blog, 4 de dezembro de 2018.
  3. idem
  4. Trecho da música Carta de Amor disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Zi2cb9cK4M8 e demais plataformas digitais.

 

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