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Mau Humor: um toque do real

Wilker França – Associado do IPB

  • Tem veneno pra rato?
  • Tem! Vai levar? – pergunta o balconista.
  • Não, vou trazer os ratos pra comer aqui! – responde seu Lunga.

Seu Lunga é um poeta residente em Juazeiro do Norte, conhecido, em todo Brasil, pela sua impaciência e mau humor. Inúmeras de suas respostas às perguntas do cotidiano viraram versos de cordel. Ruy Castro, escritor e jornalista, lançou um livro intitulado “Mau humor” com citações ácidas de personalidades conhecidas. Cito algumas:

“Se duas pessoas se amam, não pode haver final feliz” – Ernest Hemingway

“Feliz aniversário! Pode ser o último” – Robert Benayoun

Em alguma medida, o autor equivale as frases irônicas como expressão do mau humor. A ironia, diferente do humor, atesta a inexistência do Outro, já nos ensinou Miller (1996). Portanto, o mau humor estaria mais próximo da ironia? Do que se trata mesmo o mau humor? Seria o contrário do bom humor?

Miller (2010b) considera este afeto como uma das paixões do objeto a, a partir do que Lacan nomeou em televisão, de paixões da alma. Diferente das paixões do ser, que são paixões que fazem laço com o Outro, essas paixões são paixões de separação do Outro, escapam ao enquadre fantasmático e apresentam uma espécie de soldadura entre o saber inconsciente e o gozo.

Esta paixão, sugere Miller (2010b), tem relação inclusive com a felicidade tal qual Lacan pensou em Televisão:

O mau humor poderia ser um pecado, como recorda Lacan, se não for nada além de tristeza. Poderia ser um grão de loucura se se tratar de uma paranóia. Mas pode ser um verdadeiro toque do real se quiser dizer – e por isso não é em absoluto incompatível com a felicidade de todos (…)” (p. 467).

O mau humor então está atrelado a impossibilidade de suportar o real, visto que o real sempre escapa ao significante, ou seja, é uma paixão que surge diante da impossibilidade de uma harmonia entre significante e gozo. É nessa direção que Laurent (2019), interrogando esse “toque de real” que Lacan atrela ao mau humor, relaciona-o com a impossibilidade estrutural, posto que “não é isso”[1], não se trata disso. O objeto pequeno a é sempre um resto e nunca A Coisa como tal. Estando o objeto sempre perdido, esta paixão do objeto a seria um modo de “superar la insatisfacción histérica o el aislamiento obsesivo” (p.57). Seria o que resta de um rechaço à felicidade da repetição. Completa Laurent (2019):

La repetición de la demanda impone un cierto modo de felicidad y, en esta felicidad, hay insatisfacción, aislamiento, todos los mecanismos neuróticos, mientras que, en el mau humor, la felicidad de la repetición se completa con un “no es esto” del objeto pequeño a, no es La Cosa (p. 57).

Ou seja, o mau humor seria um afeto que escapa a linguagem e que resta diante da impossibilidade de capturar A Coisa mesma. Importante destacar que essa paixão, por escapar à linguagem, não faz demanda, não deixa o outro culpabilizado, “sin producir un infierno doméstico”, sinaliza Laurent (2019, p. 57).

O próprio Lacan era conhecido por experimentar esse afeto. No livro “La vie de Lacan”, Miller (2010a) relata que, à medida que a doença ia progredindo, Lacan foi ficando mais quieto em seus seminários. E qualquer obstáculo era recebido de forma impaciente, pois era sentido como um doloroso empecilho ao seu progresso intelectual. Em seus últimos dois anos de vida, Lacan experimentou “uma agudeza de mau humor”[2],  já presente anteriormente nele.

Todo falasser precisa se arranjar diante de uma perturbação do humor fundamental que é estrutural e não biológica. A separação do júbilo da imagem é sempre uma bricolagem, afinal, há uma desarmonia estrutural entre significante e gozo. Por isso mesmo, cada um é mais ou menos depressivo, mais ou menos maníaco. O mau humor seria o contrário do entusiasmo, que é um afeto que está mais do lado da mania. Os dois apresentam esse “toque do real”, contudo, diante da expressão “não é isso” e não haverá nada melhor, responde-se a essa constatação de uma forma entusiasta, o lado positivo do humor ou, a partir do seu lado negativo, o mau humor (LAURENT, 2019).

Sabemos que há muitos relatos de passe que falam sobre uma espécie de entusiasmo no final de uma análise e não do mau humor. Falta entusiasmo aos mau humorados a escolha pelo passe? A pergunta sobre a relação da ironia com esta paixão segue aberta: A ironia seria uma espécie de tratamento possível para o mau humor?


Referências
LACAN, J. (2003). Televisão. In J. Lacan. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar.
LAURENT, E. Los objetos de la pasión. Buenos Aires: Tres Haches, 2019.
MILLER, J.-A. (2010a). Vie de Lacan. In Cours d’Orientation Lacanienne III. In.: https://www.podcastjournal.net/Lacan-revit-et-meurt-a-Nice_a11279.html
MILLER, J-A (2010b) Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2010.
MILLER, J-A. “Clinica irônica”. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

[1] Alusão ao “Eu te peço que recuses o que te ofereço, porque não é isso”
[2]une acuité de mauvaise humeur
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