Marcelo Magnelli (EBP/AMP) Estamos nos aproximando do nosso encontro, então, não deixe de acompanhar nosso…
Imagem e paixão*
Henri Kaufmanner
(EBP/AMP)
“As pessoas vinham muito tristes e com auto percepção muito distorcida pelas câmeras dos computadores celulares. Tinha a questão do contexto [pós-pandemia], mas também tem outro ponto fundamental: as pessoas deixaram de se olhar no espelho para se olhar através da câmera da selfie. E aí junto com isso, colocando filtros que fazem reparos na pele, mas também distorção da anatomia.”[1]
Essa afirmação feita por uma dermatologista em um programa do portal UOL expressa de maneira sintética questões que, me parece, cabem muito bem ao tema das jornadas da Seção Bahia. A substituição da imagem do espelho pela das câmeras é uma ponta visível de toda uma mudança que vem acontecendo em nossos tempos na relação que temos com as imagens. Essa nova realidade tem importantes consequências sobre os corpos e as paixões dos falasseres.
Da tristeza à melancolia
Em Televisão[2] Lacan sustenta que eram equivocadas as críticas que teria recebido por não ter se ocupado dos afetos ao longo de seu ensino. Lembra como estes foram contemplados em seu seminário sobre a Angústia e propõe reconsiderar as paixões naquilo que elas afetam o corpo tomando o afeto da tristeza como um primeiro passo. Ele ressalta que se trata de uma falta moral (covardia moral), um acontecimento do pensamento e não da alma, que somente pode ser situado no registro do bem dizer, referenciado ao inconsciente na estrutura. Contudo essa covardia moral que traz consigo a marca do rechaço do inconsciente pode se mostrar mortal se chega à psicose, sendo a mania o retorno em forma de excitação daquilo que foi rechaçado da linguagem.
Seguindo essa linha, Graciela Brodsky[3] nos convida a considerar um contínuo transestrutural entre depressão e a melancolia. Assim, propõe que pensemos esse contínuo a partir de três matemas: S(Ⱥ), –Φ e Φ0. O S(Ⱥ) assinalaria a dimensão lúcida da depressão, o reconhecimento de que o Outro falta, de sua inconsistência, O (-Φ) articularia a depressão com a castração, com a perda. O Φ0, estaria do lado da psicose, alí onde a sombra do objeto recai sobre o Eu, não sendo a questão colocada mais no campo do desejo.
O objeto a
No seminário da Angústia somos apresentados ao objeto a. Ele é o resto singular da existência, sem qualquer facticidade, sendo que é nele onde se enraíza o desejo. O princípio do desejo seria a queda desse objeto, após este ter-se elevado no lugar do Outro, por intermédio de um diálogo representado numa cena. Citemos Lacan:
“Ele se encena como papel, é claro, mas o que importa não é o papel, como todos sabemos por experiência e por certeza íntimas, e sim o que resta além desse papel. Um resto precário e submisso, sem dúvida, pois, como todos sabem hoje em dia, sou para sempre o objeto cedível, o objeto de troca, e esse objeto é o princípio que me faz desejar, que me torna desejoso de uma falta — falta que não é uma falta do sujeito, mas uma carência imposta ao gozo situado no nível do Outro” [4]
A angústia seria então decorrente do jogo dessa intromissão radical de uma coisa tão Outra no ser vivo. Estaria aí o trauma, que, longe de se referir ao nascimento, à separação da mãe, refere-se à “própria aspiração de um meio intrinsecamente Outro” [5]. A angústia, contudo, é repelida e mesmo desconhecida, na medida em que se é capturado pela imagem especular. “O máximo que se pode desejar é que ela se reflita nos olhos do Outro — mas nem isso é necessário, já que existe o espelho”[6].
A constituição da imagem narcísica, o eu ideal, i(a), se dá exatamente nesse jogo de reflexos e imagens que Lacan representou em seu famoso esquema ótico.
Num mundo em que muitas vezes os espelhos são substituídos pelas telas do mundo virtual, interessa-me indagar os efeitos sobre a angústia e quais suas consequências.
Em suas elaborações sobre Hamlet, Lacan nos lembra que o impasse deste com o desejo estaria articulado à impossibilidade de verificar, em sua mãe, algum sinal de luto pela morte de seu pai. Estaria aí o elemento determinante dos impasses do desejo em Hamlet, impasses que somente puderam ser atravessados a partir do encontro com o cadáver de Ofélia e do reconhecimento do luto experimentado pelo irmão desta. Sem o encontro com a perda do objeto, esse ponto nos chama particular atenção, não haveria como Hamlet operar no campo do desejo, livre da inibição imaginária.
Referindo-se ao luto, Lacan acentua que o problema do protagonista é a manutenção no nível escópico das ligações pelas quais o desejo se prende ao i(a), e não, ressalta, ao objeto. Estaria aí a diferença fundamental entre o que acontece no luto e o que acontece na melancolia. É necessário distinguir a diferença entre o objeto a e o i(a), caso contrário, diz, não teremos como conceber a diferença fundamental entre o que acontece no luto e o que acontece na mania e na melancolia. Encontramos, em “Luto e melancolia”, a admissão de Freud (1917) que o processo de reversão ao próprio Eu, presente no luto, e, portanto, colocando em cena o i(a) e sua perda, na melancolia não tem bons resultados, porque o “objeto supera sua direção. É o objeto que triunfa” [7]
Na mania, segue Lacan:
“o que está em causa é a não função do a, e não simplesmente seu desconhecimento. Poderíamos tomar a mania como uma defesa diante do triunfo do objeto. O sujeito não se lastreia em nenhum a, o que o deixa entregue, às vezes sem nenhuma possibilidade de libertação, à metonímia pura, infinita e lúdica da cadeia significante”[8].
A passagem do espelho do Outro a tela do Outro provoca uma mudança determinante nos estatutos da imagem. Quando se busca a própria imagem num smartphone, o que se encontra é a imagem modificada pelos algoritmos e toda a tecnologia definida pelas Bigtechs, que, no mundo digital, acabam por se constituir numa nova apresentação do Outro. A imagem refletida por um aparelho depende de sua marca, do número de pixels e toda a sofisticação tecnológica nele embarcada. Qualquer imagem é ai determinada pelos interesses da indústria de tecnologia. Passamos assim do semblante ao simulacro.
O que testemunhamos no mundo de hoje é que a partir da inexistência do Outro, de sua transcendência simbólica, vemos se impor uma presença imperativa de gozo, tensionada pela técnica e seus gadgets. Um imperativo de consumo que nos atravessa a todos. Assim, a dimensão obscura de Deus, hoje se apresenta como obscuridade do Gozo dos deuses da tecnologia. O afastamento de Deus da “Ordem do mundo”, desse Deus que somente entendia da superficialidade dos homens, como denunciava Schreber, nos faz hoje em dia homens feitos às pressas, não por estrutura, mas por um efeito de discurso. O discurso do capitalismo.
Sacos e cordas
Nos primórdios de seu ensino, no seminário 2, na sequência de sua interrogação sobre porque os planetas não falam, Lacan já apontava para os graves quadros de melancolia, conhecidos classicamente pela psiquiatria como síndrome de Cotard. Nessa, os indivíduos se identificam maciçamente a suas imagens, sem furos — Totais como a visão circular de um planeta, subsumidos na dominância imaginária, são tomados de forma marcante pelo silêncio. Desde aquele momento, já se podia vislumbrar os efeitos dessa redução à imagem e também algo que viria a ser nomeado posteriormente como rechaço do Inconsciente.
Tal leitura se esclarece mais quando nos orientamos pelo Seminário 23 e o ensino de Lacan a partir de Joyce. Ali Lacan nos fala da lógica do saco e da corda. Em Joyce é possível perceber que esse saco, apreensão imaginária do corpo e a reta infinita não se amarram primariamente. Para Freud, diz Lacan o inconsciente, o Unnerkant, seria uma relação entre a corda, a reta infinita e esse corpo que temos, mas desconhecemos. Em Joyce, isso não se amarra “tão naturalmente”. É o Ego constituído por sua escrita que lhe permite se enquadrar (e este termo enquadramento ganha aqui toda relevância), articular algo da experiência de corpo. A famosa cena de quando é surrado e o corpo sai como uma casca revela a precariedade de tal amarração. Seria por isso mesmo que Lacan se utilizaria do significante Ego. Afinal a amarração de Joyce, seu enquadramento, não se dá narcisicamente, no espelho, como nos acostumamos a pensar a partir do narcisismo e do Estádio do Espelho.
Lembra-nos Lacan que a pèreversion é por ele assim nomeada inspirado pela intuição de Freud, que constitui o inconsciente a partir do amor ao pai. Joyce nos mostra um caminho distinto em que a amarração do imaginário ao real e ao inconsciente não se constitui borromeanamente[9]. Daí a afirmação lacaniana de Joyce ser desabonado do inconsciente.
Enfim…
A troca dos espelhos pelas telas mostra como o avanço do imperativo do consumo e seus gadgets acabam por triunfar sobre o objeto a. Resta, como em Hamlet um aprisionamento escópico, não ao i(a), mas às imagens simulacro produzidas pela técnica. Haveria então uma redução do sujeito ao objeto gadget. Tal perspectiva nos remeteria novamente a Lacan no Seminário 10 e suas referências à melancolia e à mania.
No lugar do retorno do objeto na melancolia (ou de sua sombra como assinala Freud) no mundo determinado pelo imperativo do consumo, há um triunfo de outra ordem. No mundo das telas, onde o semblante dá lugar ao simulacro haveria um triunfo da defesa sobre o objeto, como assinalado por Lacan, como o que caracteriza a mania. O objeto a é mantido mascarado, desconhecido, fora da cena não em função da janela narcísica, ou seja, do i(a). A representação também sai da cena. Esse rechaço do objeto se faz pela presença dos objetos da técnica, nas imagens produzidas tecnologicamente como oferta incondicional de gozo. Estaríamos não mais diante da mania enquanto metonímia infinita dos significantes, mas do consumo incoercível dos objetos da técnica.
Desaparecem as janelas e as bordas. Mania e melancolia se confundem ainda mais. Tal leitura permite-nos jogar uma luz sobre a grande prevalência do diagnóstico de transtorno bipolar, disseminado pelo DSM 5, e que domina a psiquiatria contemporânea.
A identificação à imagem toda ou a queda como seu resto, acontecem em continuidade cada vez mais acelerada, num deslizamento constante que desconhece o furo. O declínio da função fálica, seja como suporte imaginário narcísico, seja como verificador do furo, não nos franquearia a todos nós uma falha contingente do nó borromeano, uma paixão transestrutural do simulacro caracterizada pelo Φ0?