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Fictícios

Luiz Felipe Monteiro (EBP/AMP)[1]

Me apaixonei pela primeira vez”. Sem mais.

Assim, B. começa esse período de dez escutas.  A paixão a fez sentir-se bem e, ao mesmo tempo, a pegou pelo avesso. É quando, meio confusa, B. começa a dizer como emagreceu e como isso é contraditório para ela.

As pessoas dizem que eu pareço feliz só porque eu fiquei magra”. Não é o caso dela não estar bem, é que tal felicidade não passa exatamente pelo olhar do outro e pela demanda por um corpo magro.

Tal sutileza parece ter um efeito de surpresa para B. Essa surpresa aparece quando não sabe por que chora. Esse corpo que chora é fora de uma coordenada, e isso a intriga.

Então eu pergunto: e a paixão?

B. fala apenas de uma forma lateral. Seu corpo, porém, dá testemunho de alguma marca; ela continua a chorar até que encerro.

Na escuta seguinte, fala não saber por que vem e, logo em seguida, emenda “eu poderia comer essa garota no almoço”.

“Mas por que no almoço?” eu pergunto. “é só um desejo, não é uma paixonite”. Corto aí, escuta que não durou cinco minutos.

Passa-se duas semanas e B. não aparece. Foi um risco encerrar tão rápido. Restava apostar que a transferência negativa esteja a serviço do trabalho de análise.

Na terceira semana B. manda uma mensagem e pede um horário para mais uma escuta. Diz que ficou sem saber o que dizer, mas ficou sem vir não pela paixonite.

Neste meio tempo, a paixonite sumiu sem dizer nada. B. está muito triste, não quer nada, tão pouco falar. Até que se pergunta: “aquilo tudo era só curiosidade?

Para minha surpresa B. pede mais uma escuta dois dias depois e diz não saber por que continua chorando. “eu acho que eu não poderia amar mais alguém do que eu a amo. É como se eu conhecesse ela em uma outra vida”.

Nessa hora, não hesito em lembrar Freud em três ensaios sobre a sexualidade quando diz: “todo encontro é um reencontro”. Digo para vir no dia seguinte.

Mas eu a vejo no fundo da minha mente o tempo todo como uma febre como se eu estivesse queimando viva, como um sinal. Será que eu passei do limite?

É somente aí que me dou conta de como essa paixão que a pega e arrasta é uma espécie de assinatura difícil de ler como própria.

Ela não sabia como enquadrar este signo, mas também não queria abrir mão dessa ranhura. Talvez, ela não pudesse mesmo. Suas queixas continuavam…

Cara, eu sou a melhor de todas? Deus, eu odeio isso. Todo o meu amor e paciência nunca são valorizados”.

Depois de uma semana sem vir, retorna dizendo que ela deu um basta e disse a sua paixonite que sentia muito, mas que ao fim, ela contou uma mentira. “L’amour de ma vie” … suspirava e ria em nota irônica.
Silêncio e corte.

Na semana seguinte manda uma mensagem dizendo que preferiria estar jantando numa lanchonete que ir para a sessão: “enquanto eu não estiver, não leia as minhas mensagens”.

Na semana seguinte, chega 20 minutos atrasada.  “Bittersuite”, assim ela descreve como se sente, fazendo uma espécie de ato falho com a suíte onde estava hospedada sozinha nos últimos dias. E logo fala não estar conseguido dormir apesar de lembrar de um sonho.

Ela estava no saguão e estava de joelhos fora do meu corpo assistindo de cima”. Repete o quanto sente falta da amiga. E ao fim ela volta a dizer: “O amor é tão agridoce”. Bittersweet, eu digo ao despedir.

Última escuta:

Agora estou envergonhada, eu te contei uma mentira”. Nada do que disse aqui era realmente verdade. Tirei tudo do último disco de Billie Eilish. Cada sessão que vim foi um trecho de uma música do disco. Fui simplesmente recortando.

Hit me hard and soft[2]. Eu Disse rindo ironicamente.

– Estava me divertindo fazendo você achar que eram minhas aquelas palavras.

– E não eram?
– “Eu tento viver em preto e branco, mas eu sou blue”.

Foi então que ouvi pela primeira vez B. falar do pai e seus olhos azuis. Azuis e distantes. As lágrimas insistentes cederam lugar à falta de sono, não consegue dormir mais do que 3h00 por noite. Diz não saber se quer continuar porque não sabe falar de si sem que seja com as mentiras dos outros.

Eu não digo nada e B. também não.

E com um sorriso e uma fala leve, levanto e digo: “sim, mas quando posso ouvir a próxima?”


[1] Luiz Felipe é participante do GT que tem como coordenadora Sônia Vicente AME (EBP/AMP) e Êxtima Marina Recalde AME (EOL/AMP). Os demais participantes são Analícea Calmon AME (EBP/AMP), Clara Melo (IPB), Ethel Poll(IPB), Maria Luiza Miranda (EBP/AMP), Rogério Barros(EBP/AMP), Samyra Assad(EBP/AMP) e Waldomiro Silva Filho.
[2] Hit me hard and soft é o título do disco lançado em 2024 pela cantora norte-americana Billie Eilish. Todas as aspas são cortes traduzidos de letras do disco.
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