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Dos afetos às paixões. Das paixões do ser às paixões da alma.

Fátima Sarmento[1]– AME (EBP/AMP)

Sobre os afetos

Para Freud, o afeto é formado da mesma maneira que um ataque histérico – ambos são precipitados de experiências traumáticas muito antigas que deixaram restos, traços e respingos. Se o pedido de análise passa por querer libertar-se do sofrimento causado pelas “palavras feridas” que repercutem no corpo, não há como pensar a análise fora da experiência afetiva. Nessa direção, Lacan, em uma conferência proferida em Bruxelas, em 1977, (1) ao se expressar sobre o inconsciente, admite que “o afeto é feito do efeito da estrutura, do que é dito em algum lugar”. De maneira muito precisa ele reconhece que foi guiado pelas histéricas e o que lhe chama a atenção nos Estudos sobre a Histeria é que “Freud chega a desembuchar que é com as próprias palavras da paciente que o afeto se evapora”. Lacan quer saber se o afeto se areja ou não com palavras, uma vez que “alguma coisa sopra com as palavras, torna o afeto inofensivo, sem engendrar sintoma, quando a histérica começa a narrar esta coisa em relação à qual ela se assustou”. No dizer de Lacan, se a histérica se assustou, é porque causamos medo a nós mesmos.

Nos seus “Artigos sobre Metapsicologia”, Freud mostra uma recusa à ideia do afeto ser uma expressão inconsciente, considerando que a operação do recalque incide somente sobre as representações. O afeto, não sofrendo a ação do recalque, se desloca, se move, fica à deriva, podendo ligar-se a um outro significado. Disso deduz-se que quando uma representação é recalcada se produz sempre um substituto. O medo de Hans pelo cavalo ilustra o deslocamento do afeto de uma representação recalcada. Se o recalque só incide sobre o significante e o afeto é sempre transformado, a presença do recalque sugere um traço de afeto ligado ao significante. Vale ressaltar que nesse momento da elaboração freudiana há uma perfeita vinculação entre inconsciente e recalque.

No texto O inconsciente Freud distingue o afeto da pulsão. A pulsão só adquire o estatuto de afeto ao se associar ao objeto que lhe confere uma representação. O afeto é aqui definido como descarga pulsional associada ao elemento representativo. Para Vieira e outros (2) a pulsão só afeta a percepção se receber uma representação da linguagem, cujos elementos se organizam, numa lógica independente do discurso da consciência.

No avanço da teoria, na passagem da primeira para a segunda tópica, Freud irá separar o conceito de recalque do conceito de inconsciente. Se o inconsciente e o recalcado fossem da mesma ordem, tudo se resumiria em recalque e retorno do recalcado. Ao declarar que “todo o recalcado é inconsciente, porém não todo o inconsciente é recalcado”, Freud amplia o campo do inconsciente – há algo inconsciente que excede a categoria conceitual do recalcado. Freud irá necessitar de outros conceitos para concluir que inconsciente e recalcado não são sinônimos. O conceito de sintoma enquanto satisfação pulsional e a construção do fantasma “Bate-se numa criança” seguem nessa direção de pensar o inconsciente além do recalque.

A partir dessas elaborações (discutidas nos seminários de formação como preparação para a nossa Jornada) não se pode falar que não existe afeto inconsciente. O afeto de fato não é recalcado, mas ele pode ser inconsciente.

Na conferência já citada, Lacan critica a ideia de representação inconsciente, ao afirmar que   o inconsciente é isto: as palavras fazem corpo e a nossa prática consiste em abordar como as palavras operam. Para ele, isso é mais importante do que saber o que quer ou não quer dizer o inconsciente.

Dos Afetos às Paixões

São quatro os termos que compõem o quadro afetivo: afeto, emoção, sentimento e paixão. Lacan no seminário 10 retoma Freud ao tentar separar o afeto da emoção.  Enquanto o afeto não expressa nada, a emoção é um meio de expressão não só de uma necessidade, mas vai além disso- é da ordem da ação, do movimento, da agitação corporal. O afeto se distingue também do sentimento. Enquanto o afeto se apresenta ligado ao corpo, o sentimento se dirige ao discurso.  Se o afeto engana, o sentimento- mente. Nessa direção, os afetos não se apresentam sempre como índice do real, podem ser enganosos, daí ser necessário verificá-los, quer dizer, remetê-los à estrutura do inconsciente advinda da linguagem.

Ainda no seminário 10 Lacan reserva um lugar precioso para o afeto: a angústia- único afeto que não engana e, esse sim é sinal do real. Para Miller(3) quando Lacan faz da angústia um afeto central, ele retira o afeto da psicologia e avança na direção da relação do sujeito com o Outro. Se o que afeta é o choque de alíngua no corpo, não há palavra para nomear esse afeto. Miller parte para considerar que nos afetos se trata não só do significante e do Outro, mas é necessário incluir um terceiro termo: o gozo. Foi seguindo esse percurso que Lacan, conforme Miller passou da psicofisiologia à ética, do nível do debate das emoções e afetos para o dos afetos às paixões. Assim, Lacan enodou os afetos às paixões, principalmente às paixões da alma.

Das Paixões do Ser às Paixões da Alma

Nos seus primeiros seminários Lacan nos traz as paixões do ser- o amor, o ódio e a ignorância que são paixões da relação do sujeito com o Outro. Aqui, o Outro do simbólico precede e afeta o sujeito que busca um complemento. A partir da década de 70, Lacan se dedica às paixões da alma, tomando como referências os filósofos. No entanto, a passagem das paixões do ser às paixões da alma, conforme Koretzky (4) já estava no horizonte desde o seminário da Transferência no qual Lacan articula a paixão ao objeto parcial, aqui denominado de agálma. É esse objeto precioso que Alcebíades quer de Sócrates. Aqui, o desejo deixa de se ligar apenas ao significante – paixão pelo significante, passando a se ligar claramente ao objeto.  As paixões da alma não se referem mais a relação do sujeito à sua falta e ao seu ser, mas enquanto relativas ao saber concernem ao parlêtre e não ao sujeito. São paixões do a, do objeto “a”. Fazem parte dessa lista: (a tristeza, o gaio saber, a felicidade, a beatitude, o entusiasmo, o tédio, o mau humor.)

Finalmente, as paixões ainda de acordo com Koretzky não são apenas as de alienação ao Outro, mas estão relacionadas ao objeto como resquício, resíduo da operação de separação do Outro. No final de um trabalho analítico o sujeito pode perceber o objeto de seu próprio corpo que ele colocou no campo do Outro.


Notas:

Lacan,J- Considerações sobre a Histeria- Opção Lacaniana- Revista Brasileira Internacional de Psicanálise- Dezembro 2007- Edição Especial n. 50 p. 17-22

Vieira, M. André e outros .Semiologia da afetividade: o afeto que se encerra na estrutura- Psicopatologia Lacaniana- Escola Brasileira de Psicanálise- Autêntica Vol 1- Semiologia-2017. Antonio Teixeira- Heloísa Caldas- (orgs) p.151

Miller ,J.A- A propósito dos afetos na experiência analítica- As paixões do ser-Kalimeros- Escola Brasileira de Psicanálise- Rio de Janeiro-1998.p.47

Koretzky, Carolina- Paixões do ser, Paixões da alma-In: Le cause du desir,n.93. Disponível em: https//www.cairn.info/revue-la-cause-du-desir-2016-2-page-73.htm


[1] Participante do GT: “Uma douta paixão” e os afetos na experiência analítica

Mônica Hage (EBP/AMP) – Coordenadora, Gerardo Arenas (EOL/AMP) – Êxtimo

Participantes: Alice Munguba (IPB), Carla Fernandes (EBP/AMP), Fátima Sarmento AME (EBP/AMP), Graziela Pires (IPB), Júlia Solano (EBP/AMP), Klaus Seydel (IPB), Kleyanne Lima (IPB), Tânia Porto (IPB).

 

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