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“Da emoção ao afeto” – Patricia Bosquin-Caroz AME(ECF/AMP)

Tradução: Luiz Mena (EBP/AMP)

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Os recentes avanços de J.A. Miller com relação ao último ensino de Lacan permitem reconsiderar o afeto em psicanálise sob um novo ângulo. Desde que ele foi entendido como efeito de verdade de um significante recalcado, a partir da Metapsicologia de Freud, ou do Seminário da Angústia, de Lacan, o afeto se apresentava como enganador, sempre derivado, desancorado, deslocado. Por outro lado, como efeito real de gozo, ele faria signo do golpe no corpo por lalíngua, “afeição (afeto) marcante da língua sobre o corpo”[1]. De todo modo, que ele seja efeito de verdade ou efeito de gozo, Lacan não visará jamais o afeto fora da relação do sujeito ao significante, ou do falasser à lalíngua. Assim, a tomada do afeto em psicanálise não se apreende imediatamente e se diferencia radicalmente de uma “fenomenologia das emoções”[2], como diz Miller.

O afeto e a verdade

Partamos da conferência que Miller pronunciou em Gand em 1986, publicada sob o título “Os afetos na experiência analítica”. Como ele sublinha, sempre foi criticado o fato de a psicanálise ser uma iniciativa intelectual, deixando o afetivo de lado. O campo da fala e da linguagem seriam somente de ordem intelectual. Trata-se, diz ele, de um preconceito que daria espaço ao afeto enquanto acesso direto e autêntico à verdade. O afeto testemunharia um acesso imediato à verdade.

A abordagem de Lacan é outra, na qual o corpo afetado não seria uma garantia da verdade. Levando em conta essa questão do afeto no Seminário da Angústia, Lacan se distancia de uma concepção do afeto se referindo a uma expressividade natural, espécie de dado imediato, translinguístico.

O afeto é enganador, a não ser a angústia que, ela, não engana sobre o real em jogo. O afeto engana, porque ele é desarrimado do significante que o representa, que está recalcado, inconsciente. O afeto parte à deriva, diz Lacan: “Nós o encontramos deslocado, louco, invertido, metabolizado, mas ele não é recalcado. O que é recalcado são os significantes que o amarram.”[3]

Lacan, sublinha J.A. Miller, está nessa questão perto de Freud, de sua teoria do recalque presente em sua metapsicologia. Em seu texto “O inconsciente”, Freud distingue o registro da representação do fator quantitativo, que não pode jamais ser recalcado. A propósito da pulsão, ele afirma não somente que ela não pode, como tal, se tornar objeto da consciência, mas que “no inconsciente ela não pode se encontrar representada por nada além da representação”[4]. Freud estende esse entendimento às sensações, aos sentimentos e aos afetos. Seus representantes (ou significantes) seriam recalcados, enquanto que seu fator quantitativo se deslocaria, partiria à deriva, se ligaria a um outro significante diferente desse do começo, que permaneceria inconsciente. Nesta perspectiva freudiana, os afetos e os sentimentos corresponderiam a processos de descarga, “dos quais as manifestações últimas são percebidas como sensações”[5]. Lacan, assinala Miller, está próximo de Freud quando diz que os afetos enganam e que eles não valem como garantia de verdade, como o Outro do Outro, segundo a ideia de que o afeto diria a verdade.

Levantar a questão

Por que então se interessar pelo afeto, posto que ele é tão pouco confiável? É aí que Miller, a partir de sua leitura de Televisão, nos introduz a uma distinção útil entre o afeto e a emoção:

Sem dúvida – diz Miller – trata-se, no afeto, do corpo, dos efeitos de linguagem sobre o corpo, esses efeitos que eu enumerei de corte, de desvitalização, de esvaziamento do gozo, quer dizer, de “outrificação” do corpo. E isso que Freud chama de separação da cota de afeto e da ideia, torna-se para nós a articulação do significante e do objeto a. A orientação lacaniana comporta então a distinção das emoções, do registro animal, vital, em seu aspecto de reação ao que existe no mundo, dos afetos enquanto são do sujeito.[6]

Também, precisa Miller, Lacan aumenta o nível da questão quando ele passa do debate das emoções e afetos para este dos afetos e paixões. O debate concernindo o afeto se desloca então da psicofisiologia à ética, quer dizer, das relações do sujeito com o gozo. Em Televisão, Lacan faz da tristeza uma falta moral “que só se situa, em última instância, a partir do pensamento, ou seja, do dever de bem dizer ou de orientar-se no inconsciente, na estrutura”[7].  Lacan arranca a tristeza do registro emocional para fazê-la um negócio de saber que inclui a relação que o sujeito tem com o significante para tentar cernir o que não pode se dizer, como explica Miller: “Quando o saber é triste ele é impotente em colocar o significante em ressonância com o gozo”[8]

A tristeza, tal como a definiu Lacan, é relativa a este acordo do significante e do gozo. Ela é então assunto de saber. Quando significante e gozo ressoam, produz-se o gaio saber relativo ao bem dizer. Constatamos frequentemente que o fim da análise está ligado ao entusiasmo que acompanha a travessia ou o fechamento do horror de saber. Lacan evoca, em outro lugar, a “satisfação”[9], tantos termos que significam que o afeto acompanha os movimentos de uma análise até o fim e que ele concerne sempre a relação do sujeito ao significante. Como Lacan formula em Televisão, para abordar as paixões, trata-se de passar para o corpo afetado pela estrutura. “Assim, o afeto chega a um corpo, cuja propriedade seria habitar a linguagem.”[10]

Percussão da língua sobre o corpo

Que o significante seja considerado em sua articulação S1 – S2, para os efeitos de sentido que ele libera, ou que ele seja apreendido como desarticulado do S2, isolado como significante sozinho tendo um impacto de gozo, o afeto não se deixa ler em seu imediatismo. Como efeito de verdade, ele precisa de um deciframento dos significantes que são a ele ligados e, como efeito de gozo, ele exige somente o acontecimento de língua, acontecimento traumático, seja fechado, cernido para além do inconsciente revelação. O fenômeno do afeto não fala de si mesmo. No entanto, a concepção do traumatismo articulado aos efeitos de percussão de lalíngua sobre o corpo, tal como Miller extraiu do último Lacan, permite abordá-lo sob um novo ângulo. O que não significa que devemos tomar o afeto como simples “expressão natural” e “translinguística” do corpo falante que todo mundo compreenderia graças a uma “coalescência (contração) do significante e do significado”[11]. Mesmo nessa nova perspectiva, o afeto não seria “a voz do corpo”, sua expressão natural, mas signo de um efeito de gozo correlativo à marca significante, à letra, sobre o corpo falante.

Em uma experiência analítica, somos conduzidos a colocar o acento sobre a implicação do significante no afeto e, segundo a expressão de Lacan sublinhada por Miller, de “verificar o afeto”[12]. Assim, na mais clássica apreensão deste, trata-se de emitir a verdade recalcada e, na concepção de afetação do corpo por lalíngua, trata-se de isolar a marca traumática.

Ao final de uma análise, alguma coisa se identifica, se espreme, do registro disto que marcou o falasser – este que fala e é falado – realçando um aquém do sentido, a saber, do impacto ou do choque das palavras sobre o corpo, “percussão” das palavras sobre o corpo[13]. Tal como Lacan o concebe a partir do Seminário 20, o corpo aqui não é para ser entendido enquanto corpo especular, mas enquanto substância gozante, e o significante como tendo efeitos de gozo. Desde então, o acontecimento traumático teria que ser apreendido como um acidente contingente, abrindo-se à “incidência da língua sobre o ser falante (…) a afeição essencial torna-se “a afeição marcante da língua sobre o corpo”[14] e “o sinthome um circuito de repetições que se libera a partir de um acontecimento de corpo”[15], que faria dessa marca puramente contingente um “não cessa de se escrever”, seja “uma reiteração desta marca primeira que não cessa”[16]. O que ajuda a entender o que Lacan, em seu seminário 20, anuncia assim: “Lalíngua nos afeta primeiro por tudo o que ela comporta de efeitos que são afetos”[17].

Isso, porém, não quer dizer que a análise prescinda do sentido e da busca pela verdade. Como lembrou Miller em seu curso “Coisas de fineza”, “trata-se na análise de fazer verdade (…) disto que faltou fazer verdade – os traumatismos, o que fez buraco, isto que Lacan chamará mais tarde troumatismo. Trata-se de fazer chegar o discurso ao que não foi possível e tomar posição”[18].

Entretanto, Lacan fará valer que o impacto do traumatismo de lalíngua não é tanto a procurar do lado dos efeitos de sentido, mas do lado dos efeitos de gozo. No seminário “L´insu que sait…”, à prevalência da função da verdade, Lacan substitui o “enrolamento da língua”, o “caldo de cultura”, o “caldo da linguagem”[19].

A apreensão do afeto deve ser situada tendo em vista esses dois movimentos na análise, mas o que interessa, no final da experiência, seria mais a maneira na qual o corpo se goza do significante que percutiu e imprimiu nele um modo de gozar singular. Isolar uma marca traumática implica sua redução significante, mas também sua redução libidinal. Miller, em “O parceiro sintoma”, faz referência ao texto de Freud “Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, a paranoia e a homossexualidade”, para evocar o fator quantitativo, “a quantidade de investimento libidinal que as estruturas ou as formulações neuróticas são capazes de atrair”, e que não é, em nenhum caso, previsível, determinada, programável. Diz Miller que “Freud fazia uma disjunção forte entre a articulação e o investimento. Uma articulação fantasmática (…) de natureza patogênica, mas que não age. E, em um dado momento, pelo efeito de um superinvestimento, isso se coloca a agir… então, é uma revolução na economia libidinal.”[20]

No passe, trata-se de “desinvestir as articulações patogênicas” depois de ter obtido sua redução significante e a redução do fator quantitativo à contingência, ao encontro, ao cessa de se escrever. Nos testemunhos do passe, esse desinvestimento libidinal se formula de maneiras bastante variadas: desapego, desativação… poderíamos até falar em “desafeição”. Mas o passe não é um processo de desinvestimento libidinal do lugar nocivo, pois a libido é indestrutível, ela não pode ser contrariada, erradicada, o que deixa aberta a questão do saber-aí-fazer com o investimento libidinal ou aquela da “reconfiguração” do gozo. O último ensino de Lacan abre uma perspectiva para a psicanálise, nós não nos orientamos mais sobre a linguagem, mas sobre lalíngua, “concebida como uma secreção de um certo corpo, e que se ocupa menos dos efeitos de sentido que ele tem desses efeitos que são afetos (…) O sinthome é o afeto enquanto irredutível ao efeito de sentido”[21].

A propósito das emoções e do afeto, retorno sobre meu passe

A fala analisante encontrava-se duplicada pelas lágrimas, revelando um afeto de tristeza relutante ao trabalho analítico. A travessia do fantasma sacrificial articulada ao amor pelo pai morto não havia mudado em nada. O sujeito do gozo restava atraído por uma força obscura. O amor estava dramatizado. A paixão amorosa intensa, carregada, acabava por prejudicar o conjugal. Duas interpretações iam orientar a cura sobre a tomada de consciência desta carga afetiva localizada no lugar do amor. A primeira – “Não é ele que você ama, mas suas lágrimas” – anunciava a segunda – “Você é a primeira glutona de emoções que eu encontro na clínica!”

O analista havia imitado um morcego insaciável, que colocava na boca tudo que podia. É verdade que não faltavam ocasiões (significantes) para que o afeto de tristeza estacionasse e alimentasse, sem que o sujeito soubesse, a pulsão que a sustentava secretamente. Mas o que teve finalmente razão desse modo de gozar oral conectado sobre o humor “melancoliforme”, foi o isolamento da marca traumática de lalíngua, denominada “desenvoltura”. A redução “da afeição marcante sobre o corpo” ao choque da voz materna e seus efeitos de afeto, o deixar cair, iria “retornar em efeito de criação”[22]: a implicação e o engajamento de minha voz na Escola. E hoje? Agir, ainda. Para “arrancar da angústia sua certeza”[23], como diz Lacan no seu seminário da angústia.


[1] Miller, J.-A. “A experiência do real na cura analítica”. Curso proferido no Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII, aula de 09/06/1999, inédito.
[2] Miller, J.-A., “Os afetos na experiência analítica”, p.109.
[3] Lacan J. “O seminário, livro 10, A angústia”. Paris : Seuil, 2004, p.23.
[4] Freud, S. “O inconsciente”, Metapsicologia. Obras completas, v.XIII. Paris : PUF, p.218.
[5] Idem, p.220.
[6] Miller, J.-A. “Os afetos na experiência analítica”, p.109.
[7] Lacan, J. “Televisão”, Outros Escritos. Paris : Seuil, 2001, p.526 (p.44)
[8] Miller, J.-A. “Os afetos na experiência analítica”, p.110.
[9] Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. Outros Escritos. Paris : Seuil, 2001, p.572.
[10] Lacan, J. “Televisão”, Outros Escritos. Paris : Seuil, 2001, p.527 (p.46)
[11] Miller, J.-A. “Os afetos na experiência analítica”, p.103.
[12] Lacan, J. “Televisão”, Outros Escritos. Paris : Seuil, 2001, p.524.
[13] Miller, J.-A. “O ser e o um”. Curso proferido no Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII, aula de 25/05/2011, inédito.
[14] Miller, J.-A. “A experiência do real na cura analítica”, aula de 09/06/1999, inédito.
[15] Miller, J.-A. “A criança e o saber”. La petite Girafe, n.1, Paris : Navarin, 2011, p.19.
[16] Miller, J.-A. “Coisas de fineza em psicanálise”. Curso proferido no Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII, inédito.
[17] Lacan, J. “O Seminário: livro XX, Mais, ainda. Paris : Seuil, 1975, p.127.
[18] Miller, J.-A. “Coisas de fineza em psicanálise”. Curso proferido no Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII, aula de 18/03/2009, inédito.
[19] Lacan, J. “O Seminário: livro XXIV, “L´insu que sait de l´une-bévue s´aile à mourre”, aula de 19/04/1977, inédito.
[20] Miller, J.-A. “O parceiro-sintoma”. Curso proferido no Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII, aula de 06/05/1998, inédito.
[21] Miller, J.-A. “Peças soltas”. Curso proferido no Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII, aula de 15/12/2004, inédito.
[22] Lacan, J. “Dos nossos antecedentes”. In Escritos, Paris : Seuil, 1966, p.66.
[23] Lacan, J. “O Seminário, livro X: a angústia”. Paris : Seuil, 2004, p.93.
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