Luiz Felipe Monteiro (EBP/AMP)[1] “Me apaixonei pela primeira vez”. Sem mais. Assim, B. começa esse…
Corpos Afetados
Analícea Calmon AME (EBP/AMP)[1]
Para tratar dos afetos em relação ao corpo, remeto-me ao seguinte enunciado de Lacan, no Seminário 20: “O real é o mistério do corpo falante; é o mistério do inconsciente”. E para começar a elucidar esta frase, recorro a uma interrogação de Graciela Brodsky, em seu livro Pasiones Lacanianas:
– Qual é a novidade do corpo falante?
Sabemos que o ponto de partida da construção da psicanálise foi o corpo falante, quando os sintomas conversivos das histéricas começaram a ser interpretados por Freud. Tal interpretação consistia em traduzir a linguagem corporal, configurada no sintoma, num texto desconhecido para o sujeito.
Desde essa época, vemos que, no campo da Psicanálise, tanto para os analisantes quanto para os analistas, os corpos não param de falar. E este corpo que fala se interpreta. Lacan, no início do seu ensino, acrescenta, à referência freudiana ao corpo das histéricas, o sofrimento do obsessivo no pensamento, lembrando que se pensa também com o corpo.
Numa referência à psicose, Lacan comenta a “surra de Joyce”, no Cap. X do Seminário 23, a partir de uma confidência feita pelo próprio James Joyce em Retrato de um Artista quando Jovem. No livro, ele conta que tomou uma surra, mas que não guardou rancor porque tudo se esvaiu como uma casca. O comentário mostra que a relação de Joyce com o corpo é tão imperfeita quanto a dos neuróticos, o que faz pensar que não há, nos seres humanos, relação perfeita com o próprio corpo. É possível entender tal imperfeição evocando o saber.
Enquanto Freud ensina que o que não se sabe sobre o que se passa no corpo, que é alheio, tem a ver com o inconsciente; para Lacan, o que se sabe ou não sobre o que se passa no corpo depende da localização do significante. Além disso, Lacan mostra que a relação de Joyce com o corpo tem a ver com a imagem confusa que temos do nosso corpo. Este ponto remete à vertente imaginária do corpo, proposta por Clotilde Leguil[2], ao apontar o desassossego do neurótico em ter um corpo que responda à demanda social, oferecendo-o ao olhar do Outro, sem a marca da castração. Por outro lado, na atitude de Joyce, ao constatar que o assunto da surra se solta como uma casca, não aparece a marca da castração.
Tal vertente imaginária das paixões do corpo, segundo Lacan, implica um afeto, podendo daí se depreender a relação do corpo com o afeto. Incluindo o saber nesta relação, Graciela Brodsky vai dizer que quem tem um saber sobre o seu corpo são os esquizofrênicos que, a exemplo de Schreber, sabem que há um corpo que se transforma e os órgãos podem se perder ou não funcionar. Os neuróticos, ao contrário, nada sabem de seus corpos e nada querem saber.
É a esta relação peculiar com o corpo que Lacan chama de afeto. Sobre isso, a referência a Joyce, que não experimenta nenhum afeto quando lhe dão uma surra, vai suscitar maior precisão do que chamamos de afeto. O primeiro passo é distinguir o afeto de sentimentos e emoções. Quando se diz que algo é afetado, significa que afetar é produzir um impacto sobre algo. É o que Lacan diz, no Seminário 10, sobre a angústia, definindo-a como um afeto que não engana, o que a distingue dos sentimentos, que mentem.
É sabido que há palavras que afetam o corpo fazendo rir ou chorar, o que faz supor haver um registro no qual os pensamentos têm uma incidência direta sobre o corpo, sem mediação. Como exemplo, temos o fenômeno psicossomático, que implica uma irrupção do pensamento no real do corpo, afetando-o na forma de uma lesão, justamente porque falta a mediação simbólica.
No último ensino, Lacan define o sinthoma como um acontecimento de corpo resultante do significante de alíngua, que afeta o corpo, produzindo gozo. Assim, dá a ver que o significante é o que afeta e o que é afetado é o corpo, que se faz ressoar no silêncio das pulsões, em direção às paixões do ser e do falasser.