Analícea Calmon AME (EBP/AMP)[1] Para tratar dos afetos em relação ao corpo, remeto-me ao seguinte…
Cada Segundo Conta
Graziela Pires- IPB
Pensar as paixões do ser e as paixões da alma, integrando-as à cultura contemporânea, revelou-se um desafio, não só pela complexidade do tema, mas também porque essa provocação parece cintilar em cada janela que se abre no cotidiano, presente em todo lugar e, ao mesmo tempo, em nenhum. Para compor este texto, escolhi me inspirar na série O Urso, que acabara de assistir, ainda sob os efeitos do entusiasmo que as várias camadas de sua narrativa me despertaram. A série se revelou como um mosaico construído a partir da fotografia, dos sabores, das trilhas sonoras e dos personagens, que vão se revelando ao longo dos episódios em tons de azul, uma marca que se repete como um efeito que afeta profundamente ao longo das temporadas.
A série O Urso nos convida a observar como as paixões, conforme Lacan as define, se entrelaçam com as exigências da cultura contemporânea. Segundo Lacan (2003), as paixões do ser — amor, ódio e ignorância — não se limitam a emoções fugazes, mas tocam o que há de mais estruturante na subjetividade. Elas emergem, por exemplo, quando vejo alguém como a peça que completa minha busca por plenitude, no amor; ou como a fonte de todos os problemas, cuja eliminação parece necessária para que tudo se resolva, no ódio; ou ainda quando acredito que essa pessoa detém o conhecimento essencial que preciso desvendar, na ignorância. Mais adiante, Lacan aborda as paixões da alma, ou paixões do falasser, que não giram mais em torno do ideal de completude ou da busca de sentido no outro ou no mundo. Elas dizem respeito à impossibilidade de alcançar essa completude, envolvendo afetos como a angústia e o entusiasmo, que estão relacionados à experiência do real, ao furo no campo do sentido e à necessidade de lidar com o gozo que atravessa a fala.
Diferentemente das paixões do ser, que têm um caráter transferencial, as paixões do falasser dizem respeito à relação do sujeito com sua própria condição de ser incompleto, de ser de linguagem, afetado pelo encontro com o real e pelo fracasso das tentativas de estabilizar o sentido. Na série, essas paixões aparecem nas relações afetivas conturbadas, especialmente nas dinâmicas familiares e profissionais, onde os personagens enfrentam o impossível de suas demandas.
Lacan, como nos lembra Marcus André Vieira (2024), aponta que a paixão tem uma dimensão real que não se esgota na lógica do imaginário, como ocorre com as emoções. As paixões envolvem um ponto de excesso que escapa ao sentido comum, movendo os sujeitos para além do que é visível. Em O Urso, essa dimensão se manifesta nas exigências impostas aos personagens: a busca incessante por sucesso, reconhecimento e a luta para escapar dos fantasmas do passado. Carmy, o protagonista, é conduzido por uma paixão de ser que não consegue satisfazer, o que reflete a prisão do sujeito contemporâneo ao imperativo cultural de superação e excelência. Esse movimento revela a tentativa constante de tamponar a falta, que inevitavelmente o leva a confrontar o vazio.
Essas exigências culturais, descritas por Jacques-Alain Miller como parte do “discurso capitalista”, transformam o desejo em um imperativo. O sujeito moderno não só deseja, mas é compelido a desejar sempre mais, a buscar continuamente um “algo a mais” que nunca se completa. Isso cria uma lógica de esgotamento em que as relações afetivas, como vemos em Carmy e sua equipe, estão sempre à beira do colapso. A paixão, aqui, não é apenas uma busca pelo Outro, mas uma luta contra o vazio que o desejo não consegue preencher.
Na clínica psicanalítica, como nos lembra Miller (1998), o papel do analista é justamente permitir que o sujeito encontre um modo de lidar com essa paixão sem se perder no turbilhão das exigências do Outro. No contexto do falasser, as paixões representam formas de lidar com o furo no campo do sentido, que é o real. A maneira como o sujeito se posiciona diante desse furo define se ele cai nos “pecados” (tristeza, falsa alegria) ou alcança as “virtudes” (entusiasmo, gaio saber). Na cultura contemporânea, em que a performance é central, o sujeito é constantemente confrontado com um “superego feroz” que exige sucesso ininterrupto. Isso reflete as relações que se desdobram na série, onde o fracasso não é permitido e a vulnerabilidade se torna um luxo. A paixão, então, se torna uma força destrutiva, levando o sujeito a uma relação ambígua com o Outro, em que amor e ódio se misturam.
Esse movimento é exemplificado pela chef Andrea Terry, que, ao observar os detalhes nos diários de viagem de seu pai, nos quais ele repetidamente escrevia “cada segundo conta”, utiliza essa frase como um norte. Ela se empenha em garantir a perfeição de seu restaurante, mas eventualmente opta por fechá-lo e oferece um jantar de despedida para seus parceiros de jornada. Nessa ocasião, numa conversa com Carmy, ao agradecer o aprendizado ao lado dele, ela diz, entusiasmada: “Eu aprendi muito. Aprendi que quero dormir mais, quero ir mais a Londres, quero festa e conhecer pessoas”. E ele lhe responde: “Viver, não é?”, apontando para um novo fazer onde, de fato, cada segundo conta.
Ao final, O Urso nos oferece uma alegoria das paixões que regem nossa cultura. A psicanálise lacaniana, ao destacar a dimensão do real e do impossível, nos alerta para os efeitos de tomar essas exigências como um fim absoluto, advertidos do gozo dos segundos.