Gerardo Arenas[1] Em seu Seminário 17, Lacan observa que não falta a Yahvé nenhuma das…
Amo em ti algo que é mais do que tu
Fernanda Otoni Brisset[1]
Em As paixões religiosas do parlêtre lemos, com É. Laurent, que há sempre no laço social um mesmo princípio de ilimitação[2]: isso que não cabe em forma social alguma – um pedaço ambulante, um excedente do qual o sujeito não cessa de tentar se separar – um gozo mau. Afinal, o gozo é um mal, dirá Lacan: (…) é um mal porque comporta um mal ao próximo. (…) Isto tem um nome – é o que se chama além do princípio do prazer.”[3]
Neste fato reside a raiz do fundamento do laço social, pois o crime fundador não é o assassinato do pai, mas a vontade de assassinato daquele que encarna o gozo que eu rejeito.[4] Logo, o laço social surge como uma resposta à suspeita de um gozo real que existe ilimitado e que escapa sem se deixar reformar. Essa coisa inapreensível – o ensino de Lacan a precisa: é o objeto a, semblante que advém da falta a ser.
Assim sendo, só existe paixão por isso que só a-parece, de soslaio, um para-ser, o ser na lateral[5]. Seguindo esse fio, diria que uma paixão sempre se passa entre dois, pois há sempre Um e Outro, o Um e o a minúsculo[6], pois o Outro é sempre uma furada e não poderá nunca ser tomado como se fosse UM. Por esse furo se verifica, topologicamente, como o Outro se duplica – em furo e a – ora em sua inconsistência S (A/) ou com o que nele se agalmatiza com aparência de ser (petit a).
Se no Seminário 1, Lacan apresenta os afetos como paixões do ser que emergem da falta a ser – por exemplo: o amor que emerge na fenda entre simbólico e imaginário; o ódio, da hiância entre imaginário e real; e a ignorância, do furo entre real e o simbólico –, a partir da segunda clínica, Lacan não falará mais de paixões do ser. Ele anuncia que a paixão de verdade, esse afeto de que a experiência da psicanálise dá provas de sua insistência, é a paixão pelo objeto a. Eu te amo, mas, porque inexplicavelmente amo em ti algo que é mais do que tu – o objeto a minúsculo, eu te mutilo.[7] No final de seu ensino, Lacan confirma que, se tivermos a experiência desta presença insondável do objeto a, temos de admitir que o que chamamos de paixão é uma articulação do inconsciente com o real do gozo[8].
A paixão é, desde então, a expressão irredutível da presença substancial de uma perda original cuja ausência inaugura, a cada vez, no corpo falante que a experimenta, um princípio de ilimitação. Em uma análise, trata-se de fazer desse toque de real um instante que favoreça uma nova forma de contar a ficção que brota da falta a ser, uma aposta de que, nas voltas da aventura analisante, possa por fim se contar de uma forma inédita e criativa isso que se reativa nas espécies de insistência do pathos, isso que não cessa de não se escrever, esse mais além do princípio do prazer que não se sossega jamais.