Marcelo Magnelli (EBP/AMP) Estamos nos aproximando do nosso encontro, então, não deixe de acompanhar nosso…
Afeto e paixão: um diálogo com uma canção de amor
Camila Abreu Costa
Associada ao Instituto de Psicanálise da Bahia
Parte da Nova Política de Juventude-Escola Brasileira de Psicanálise
Começo com a palavra entusiasmo, que ultimamente tem me atravessado. É com este significante, que também atravessa o corpo, que tentarei desenvolver algo que passe pela escrita. De antemão, aviso-lhes que não pretendo falar de amor. Este significante representa nada mais que uma linda letra de música do Caetano Veloso.
Lacan, no seminário 10, situa a angústia como um afeto. Certamente boa parte da comunidade analítica já ouviu a frase: “A angústia é um afeto que não engana”. Lacan, neste mesmo seminário, lembra-nos que ele não só se interessa em falar dos afetos, como considera importante um diálogo, chegando a formular a ideia de que o afeto não é recalcado, bem como Freud já havia sinalizado. “Podemos encontra-lo enlouquecido, invertido, metabolizado, mas não é recalcado. O que é recalcado são os significantes que o amarram” (p.23). Talvez, possamos articular as palavras de Lacan em muitas frentes, dentre elas, de que a angústia não nos deixa enganar, pois é um afeto que incomoda, o sujeito fica meio destrambelhado, perdido, algo por essa via.
Há uma música de Caetano Veloso, chamada “Canção de amor”. E ela diz assim:
Saudade, torrente de paixão
Emoção diferente
Que aniquila a vida da gente
Uma dor que não sei de onde vem
Deixaste meu coração vazio
Deixaste a saudade
Aos desprazeres aquela amizade
Que nasceu ao chamar-te, meu bem
Nas cinzas do meu sonho
Um hino então componho
Sofrendo a desilusão que me invade
Canção de amor, saudade
Saudade.
A intenção em trazer a música foi de caminharmos um pouco com a arte, mesmo que possamos nos embaraçar com ela em algum ponto. Caetano fala de emoção, e claro, emoção não é o mesmo que afeto e nem o mesmo que paixão. Ao menos, não para a psicanálise. Vamos passear um pouco pelo livro “A ética da paixão”, do Marcus André Vieira.
Em um trecho, ele nos traz que a emoção está mais próxima da inibição e da comoção. No entanto, as emoções, paixões e afetos estão numa mesma série, que é a dificuldade de agir, de avançar em direção ao gozo. A emoção seria mais uma “agitação de corpos”. Este termo, o Marcus André retoma de Lacan e acrescenta que a emoção está mais ligada a representação da busca de sintonia do indivíduo com o mundo.
Caetano Veloso cantando a palavra “emoção”, pode estar falando do que chamamos, aqui, de “afeto”. Seria um afeto diferente que aniquila a vida da gente? Uma dor que não sei de onde vem?
Quando o cantor diz: “Saudade, torrente de paixão”, o que interessa é saber o que seria saudade para ele. O que ele sente e interpreta? Apostaria, minimamente, que uma das paixões de Caetano é a música, por exemplo. Como as paixões revelariam a singularidade de cada um?
Exste um grande debate sobre as paixões e o que compartilho aqui não é uma verdade, mas um “lapso” de possibilidade de articulação. Lacan, em Televisão (1973), retoma uma questão importante: Os afetos são uma descarga de adrenalina quem envolvem o corpo? A partir deste questionamento, ele traz que o inconsciente estruturado como linguagem permite verificar, com mais seriedade, o afeto. Situa, então, o afeto como deslocado e que comparece a partir de uma representação.
Seguindo por esta via, salienta que as paixões da alma são nomeadas de modo justo desde São Tomás de Aquino e Platão, que as situa segundo o corpo: Cabeça, coração etc. Trata-se, aqui, de uma lógica que passa pela filosofia. Por outro lado, para abordar esta questão, teríamos que pensar o corpo como estrutura, diz Lacan. Aqui, nesta lógica, as paixões não passam pela relação com o Outro.
Graciela Brodsky, em Pasiones Lacanianas (2019), mais precisamente no capítulo “Lo indecible”, traz outras elucidações sobre o tema das paixões, articulando que no ensino de Lacan, nos primeiros seminários, ele apresenta três paixões do ser: amor, ódio e ignorância. Quando falamos das paixões do ser, estamos no terreno das paixões do “falta a ser”. Graciela, ajuda-nos a perceber que as paixões do ser e as paixões da alma, são ideias diferentes a serem discutidas.
O ponto escolhido para este escrito, talvez tenha mais a ver com as paixões do ser, a partir da sua relação com o Outro. No “Seminário sobre a carta roubada (Escritos)”, Lacan se utiliza de uma analogia interessante. Ele diz: “a paixão do jogador não é outro senão uma pergunta feita ao significante” (p.44). As paixões estão associadas a cadeia significante de cada um. Talvez seja este o pulo do gato! Sobre as paixões, embaraços e quereres de cada um, não conseguimos acesso se o interlocutor não ousar se expor na linguagem endereçada a um Outro. Será a análise uma possibilidade de endereçamento e construção das nossas paixões?
Emoção, afeto e paixão: do que trata a psicanálise? Talvez seja um eco no qual pode surgir uma pesquisa futura. Parafraseando Caetano Veloso “nas cinzas do meu sonho, um hino então componho, sofrendo a desilusão que me invade”. E essa desilusão chamaria de “não saber”. Ao mesmo tempo que traz entusiasmo, é desconcertante, angustiante, alguma coisa que não sei dizer. O querer saber, entretanto, traz um movimento, uma dança. Uma paixão? Um amor? Que fiquem os rastros e os ecos…
Referências
- G (2019). Pasiones lacanianas. Olivos: Grama Ediciones.
- Lacan, J (2005[1962-63]). O Seminário, livro 10:a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
- Lacan, J (1998[1958]). “O seminário sobre a carta roubada”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p.44.
- Lacan, J (2003[1973]). Televisão. In J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar.
- Viera, M. A (2001). A ética da paixão: uma teoria psicanalítica do afeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.