Coordenadora: Sônia Vicente (AME EBP/AMP)
Êxtima: Marina Recalde (AME EOL/AMP)
Relatores:
Samyra Assad (EBP/AMP)
Rogério Barros (EBP/AMP)
Participantes:
Analicea Calmon (AME EBP/AMP)
Clara Melo (IPB)
Ethel Ferreira Poll (IPB)
Luiz Felipe Monteiro (EPB/AMP)
Maria Luiza Mota Miranda (EBP/AMP)
Waldomiro J. Silva Filho (UFBA)

GT 3: A paixão na experiência analítica: manejos e arranjos
O inconsciente e o corpo
O corpo falante foi o ponto de partida da construção da psicanálise, quando os sintomas conversivos das histéricas começaram a ser interpretados por Freud. Tal interpretação consistia em traduzir a linguagem corporal, configurada no sintoma, em texto desconhecido para o sujeito.
Desde essa época, vemos que, no campo da Psicanálise, tanto para os analisandos, quanto para os analistas, os corpos não param de falar. Esses corpos que falam são interpretados. Lacan, no início do seu ensino, acrescenta, à referência ao corpo das histéricas, o sofrimento do obsessivo no pensamento, lembrando que se pensa também com o corpo. Sabemos que há palavras que afetam o corpo fazendo rir ou chorar, o que faz supor um registro no qual os pensamentos têm uma incidência direta sobre o corpo, sem mediação. É o que Lacan[1], por exemplo, nos diz sobre a angústia, definindo-a como um afeto que não engana, o que a distingue dos sentimentos que mentem.
Fazendo um paralelo com os corpos afetados das histéricas de Freud, evocamos a surra de Joyce, tal como Lacan[2] a comenta, a partir de uma confidência feita pelo próprio Joyce[3] em Retrato do artista quando jovem. Ele conta que tomou uma surra, mas que não guardou rancor porque tudo se esvaiu como uma casca. Isso mostra a relação imperfeita de Joyce com o seu corpo, tanto quanto a relação das histéricas, o que faz pensar que não há relação perfeita com o corpo. Quem tem um saber sobre o seu corpo, como diz Graciela Brodsky[4], são os esquizofrênicos que, a exemplo de Schreber, sabem que há um corpo que se transforma e que os órgãos podem se perder ou não funcionar. Os neuróticos, ao contrário, nada sabem de seus corpos e nada querem saber.
Mas a referência a Joyce, que não experimenta nenhum afeto quando lhe dão uma surra, vai suscitar uma maior precisão do que chamamos de afeto, que se distingue de sentimentos e emoções. Quando se diz que algo é afetado, significa que se produziu um impacto.
Enquanto Freud ensina que o que não se sabe sobre o que se passa no corpo, que nos é alheio, tem a ver com o inconsciente, Lacan nos mostra que a relação de Joyce com o corpo tem a ver com a imagem confusa que temos do nosso próprio corpo. Além disso, o que se sabe ou não sobre o que se passa no corpo depende da incidência do significante.
O conceito de parlêtre
O termo de Lacan parlêtre, lido por nós como falasser, substitui o inconsciente de Freud e propõe uma nova conexão entre as palavras e as coisas, bem como, ao analista, uma orientação pelo real. Parlêtre traz a ideia de que só há ser porque há fala e, ao falar, se goza, indo assim, além da fruição do ser, em direção a uma ex-sistência.
Em outras palavras, desde a origem há uma carga de paixão, choque pulsional que amarra a vida ao corpo, o que conduz, logicamente, a dizer que a paixão do parlêtre carrega as Paixões do Ser. Freud[5] já acenava para isso ao falar da primeira experiência de satisfação.
Com o conceito de parlêtre, o gozo não se encontra mortificado pelo significante. Nessa perspectiva, a linguagem opera a partir dos efeitos de alíngua, efeitos do que afeta e atravessa o corpo. Trata-se de um acontecimento traumático, contingente, cujo traço inaugura um troumatisme[6] – marca primitiva de uma língua no corpo. Essa marca fora do campo do sentido, que introduz o vazio inerente ao trauma inaugural da língua no corpo, estará presente, de algum modo, no entanto, em cada elemento da língua, sob a forma de uma ressonância dessa marca.
Isso nos permite pensar o parlêtre a partir da sua relação com o gozo e o corpo. Lacan nos diz que a relação que o parlêtre tem com seu corpo é a crença: “O parlêtre adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante”[7]. Trata-se de criar um corpo falante a partir de uma relação com o inconsciente ali onde havia o silêncio da pulsão de um corpo que não falava a ninguém.
Podemos, então, dizer que o percurso de uma análise supõe as voltas da paixão do corpo e da paixão do significante. Se Lacan define o sinthoma como resultante do significante que afeta o corpo, vê-se, então, que o que afeta é o significante e o que é afetado é o corpo – acontecimento traumático, contingente: troumatisme.
De toda forma, Lacan chama de afeto a relação peculiar do corpo com sua imagem confusa. E, “Quando não sabemos que nome dar a esse sujeito que não se relaciona com os significantes, e sim com o corpo, o chamamos de parlêtre”[8].
Logo, abordar a paixão endereça ao enodamento significante e à substância gozante sob a orientação do real que é “o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente”[9]. Nessa perspectiva, o real do gozo é nossa orientação, sendo, portanto, tomado como causa.
Frente a essa temática, escolhemos nos dedicar à experiência analítica, já que, no percurso de Lacan, a orientação é dada pelo real. Se a psicanálise é a experiência do um a um, a paixão é como um rastro do singular do parlêtre. Para ilustrar os manejos e arranjos frente a essa paixão, utilizaremos mais adiante dois testemunhos de Passe – de Deborah Rabinovich e de Clotilde Leguil –, enfatizando respectivamente a ignorância e o amor, sem excluir o ódio, que é estruturalmente a eles inerente.
Assim, a paixão do parlêtre será o ponto a ser alcançado neste percurso que se inicia pelas Paixões do Ser, a partir do qual trabalharemos a paixão do falasser, onde reside a lógica do Um.
Devemos dizer que é importante frisar que não se trata de uma evolução entre as Paixões do Ser e as do parlêtre, se pensarmos a topologia entre o início e o fim de análise.
Pontuações sobre as Paixões do Ser
O tema das paixões conduziu Freud ao seu primeiro tropeço clínico, a descoberta do inconsciente, e, por conseguinte, a um novo caminho de sua prática, que denominou psicanálise. Trataremos, primeiramente, das Paixões do Ser – amor, ódio e ignorância –, correlativos lacanianos da elaboração do sujeito do inconsciente na transferência. Elas concernem às paixões da relação com o Outro, paixões de alienação, inscritas em um momento da teorização lacaniana do sujeito do inconsciente enquanto falta-a-ser. Essas paixões então referem-se à busca, no Outro, daquilo que poderia dar estofo à falta[10].
Nisso, o desejo, como demanda incondicional de ausência ou de presença, evoca a falta-a-ser sob três figuras: o nada, que constitui o pano de fundo da demanda de amor; o ser do outro, que se quer anular no ódio; e o indizível, que aponta a ignorância, o horror ao saber sobre a castração, onde o desejo se perfila. Não quero saber nada disso é a frase em que a estrutura se manifesta, ou seja, o recalque radical.
Quanto ao saber, é interessante destacar que, nessas três formas da paixão, ele é constituído a partir do encontro com o Outro. Do lado do analisante, podemos nomear o amor como suposição de saber, o ódio como dessuposição de saber e a ignorância como não querer saber. Do lado do analista, que opera como suporte da paixão transferencial, a transferência é o que sustenta essa relação com o saber na sua articulação com o Outro.
Amor:
O amor, na experiência analítica, é a transferência. Uma pungente definição, elaborada por Freud, com base nos fenômenos passionais encontrados em sua prática clínica, razão pela qual o significante paixão foi frequentemente utilizado por ele para caracterizá-la. A prática da interpretação suporta a paixão sob transferência.
Freud, ao se dar conta desse laço, se deparou com um par de contrários: o amor e o ódio. Em seu texto “Nossa atitude para com a morte”,[11] ele nos diz que, ao trabalharmos com esse par, somos obrigados a manter desperto o amor e a renová-lo para protegê-lo do ódio que, por trás dele, está à espreita.
Lacan[12], traduz essa pontuação, criando o neologismo amódio, uma enamoração feita de amor e ódio (hainamoration), introduzindo-o na experiência. Como falar é em si um gozo, lembra que não se conhece nenhum amor sem ódio. Assim, quanto menos se odeia (hait), menos se é (est)[13]. Consequentemente, menos se ama.
No entanto, ressaltamos que, em relação ao par analista-analisando, a teoria freudiana da transferência tenta demonstrar que o que se estabelece vai além de uma relação imaginária. O amor surge como efeito da transferência por sua promessa de alcançar um saber sobre o ser, e querer ser amado sustenta o avanço da análise pelos caminhos da verdade, do simbólico. Se o amor na transferência se dirige ao saber, inversamente o saber fracassa ao dirigir-se ao amor, porque dele nada se pode saber, só temos palavras.
Dessa forma, o discurso do amor é clinicamente articulado à falta do significante no Outro, S(A), lugar de onde o sujeito demanda ao perguntar: “você me ama?”, “o que você ama em mim?”. Tenta-se, assim, fazer passar algo do indizível ao dito, implicando aí a dimensão do impossível. Se o ser do sujeito é definido como falta-a-ser, as palavras de amor tentam fazer suplência à relação sexual que não existe.
O amor, como paixão cega cujo engodo se reflete na desilusão, faz perceber que dois não fazem um. O sofrimento amoroso é um meio privilegiado de saber que se alimenta de uma falsa reciprocidade: máscara de um duplo narcisismo, cujo efeito faz transparecer, no excesso da paixão, o ódio ao amado.
Ódio:
O ódio, assim como o amor, está ligado à transferência principalmente na sua dimensão imaginária e funciona também como motor e obstáculo à fala. Tenta destruir o ser do Outro, pois o falasser não quer saber da sua falta-a-ser. As palavras de ódio, as injúrias, são a solução para se fazer ser. Dizendo de outro modo, a injúria é o que se consegue dizer quando falta o significante para nomear o que existe de ser do Outro.
A lógica da qual o ódio procede expressa uma relação de si com o Outro como objeto de ódio (estranho) e a Alteridade que nos habita (íntimo). Isso denota uma tensão entre o estranho e o íntimo. Referimo-nos ao que foi nomeado por Lacan como Outro gozo. Outro, porque não é susceptível de nenhuma subjetivação, só podendo ser reconhecido pelos seus efeitos.
O ódio é, assim, consequência do Outro gozo, que o faz surgir – paixão lúcida, que repousa na imputação ao Outro não somente de ser diferente, mas de obter, por astúcia, uma parte indevida de gozo, índice de uma privação. Nada se faz mais estrangeiro do que a interioridade. Esse é o paradoxo do infamiliar, como o impossível de suportar por atingir o ser.
Queremos ressaltar que o ódio a si resulta de uma recusa, de uma rejeição (Austossung) do que é, ao mesmo tempo, familiar e estranho – acontecimento que se manifesta sempre sob o regime da intrusão e expulsão. O objeto eleito da experiência do infamiliar, que nos habita é a paixão da ignorância.
Ignorância:
Lacan, nos seus Escritos, traz:
O analista, com efeito, só pode enveredar por ela [refere-se à formação] ao reconhecer em seu saber o sintoma de sua ignorância […]. A ignorância, de fato, não deve ser entendida aqui como ausência de saber, mas, tal como o amor e o ódio, como uma paixão do ser, à semelhança deles, uma via em que o ser se forma […]. O fruto positivo da revelação da ignorância é o não-saber, que não é uma negação de saber, porém sua forma mais elaborada, um sintoma.[14]
O analista não existe, mas um analista pode, levando a ignorância até seu ponto sintomático, preservar esse furo que, se fosse preenchido, o tornaria um robô. É interessante esse modo de enunciar que o analista deve “virar-se com” para não cair na enfatuação. Afinal, é preciso manter a ignorância para sustentar a posição do analista. Do lado do sujeito, tomar a ignorância como um sintoma pode ser pensado também como um tratamento no percurso analítico, cuja extração de saber se liga à forma mais elaborada da ignorância.
Lacan toma o saber como correlato da ignorância. Se a verdade não é o saber, ela é, propriamente, o não saber. O discurso analítico se situa na fronteira sensível entre a verdade e o saber, ponto em que está preparado o terreno para se levantar a bandeira do não saber. A ignorância, não sendo um contraponto ao saber, e sim a sua forma mais elaborada, toca o sintomático. É o traumático o que nos mostra o “não sei” do Passe de Deborah. Ela localiza precisamente o tratamento que deu ao “não sei”, enlaçando-o ao necessário e ao impossível – giro a partir do qual ela pôde se encontrar com esse “não sei” que marcou sua vida.
A paixão da ignorância no parlêtre: o passe de Deborah Rabinovich[15]
Vamos partir de uma cena que situa o que se fixa em termos da relação sexual que não existe, e também inaugura seu empuxo ao que não cessa de se escrever, produzindo assim o sofrimento neurótico: “Domingo de manhã. Momento tranquilo, agradável. Somente eu e minha mãe. Ela se arrumava em frente ao espelho do seu banheiro. Eu a observava. Uns raios de sol entravam pela janela. Toca o telefone. Naquela época, eram fixos. Tive que ir ao seu quarto para atender. Ainda não haviam levantado as persianas. O quarto estava às escuras e com a cama ainda desfeita. Levanto o telefone. Aí a irrupção do inesperado. Uma voz feminina me diz: ‘Olá Deborah! Sou a namorada do seu pai’”.
Diz Deborah: “Esse chamado me fraturou. Como todo trauma, foi totalmente aleatório. Um acontecimento acidental, um touché. Frente a esse imprevisto, uma resposta. Mas minha mãe estava ali e perguntou quem era ao telefone. E, de pronto, respondi: “não sei, ninguém”. A partir de então, nada voltou a ser como era. Fiquei determinada por dois momentos: a chamada e a resposta que dei à minha mãe”.
Nos testemunhos anteriores, Deborah havia conjugado esses dois momentos em uma cena traumática. Agora, a primeira parte implicou o impossível. A segunda, o necessário. Através da resposta, o sujeito ficou fixado na ficção. Lacan se refere a isso em “O Aturdito”, escrevendo “ficção” com “x”, fixão. O que em francês remete a “fixo”, fixion, “uma fixão do real, ou seja, do impossível que o fixa pela estrutura da linguagem”[16]. Deborah havia ignorado a ficção à qual se fixou. Ela, então, diz: “No entanto, o escrevi uma e outra vez sem respiro. À pergunta da minha mãe: ‘Quem é?’, respondi: ‘Não sei, ninguém’”.
Esse “não sei”, com o tempo, foi ganhando mais e mais amplitude. Começou na escola, desde o primeiro ano. E seguiu continuamente. Não houve tese de doutorado, nem publicação, nem aula que viessem aplacar esse sentimento subjetivo. Eram formas de se dar uma volta a mais ao necessário, ao “não sei”.
O final teve a ver com o começo. Depois de muitíssimos anos, na saída da análise, ela encontrou a entrada transformada. A primeira demanda havia se concretizado, quando, aos treze anos, tirou uma nota abaixo do esperado. Na porta de saída também estava o “não sei”. Não cessa, mas mudou seu estatuto. Isso surgiu nos dois últimos sonhos que relatou ao analista. Foram as duas últimas sessões.
A penúltima: “Ali, algo do meu sintoma se escreveu de outro modo. Escreveu-se com a leitura, que, ao despertar, fiz desse sonho. Mais precisamente, uma imagem desse sonho. Um rinoceronte. Li, como indica Freud na ‘Interpretação dos sonhos’, quando ele fala do rebus, ou enigma em imagens. Para essa leitura quase instantânea, creio tê-la feito antes mesmo de abrir os olhos – usei o castelhano da minha língua materna e o francês, língua da minha última análise. O rinoceronte se distanciou da sua imagem, que, no entanto, após esse sonho, me interpela. O rinoceronte tornou-se escrita, e com essa escritura, uma nova leitura. O ‘ri’ (de ‘riso’ em francês, do qual tirei o ‘t’ mudo que carrega nesse idioma). O ‘noce’ foi o ‘não sei’, com ‘s’, aquele que me adormeceu[17] desde sempre. E o ‘ceronte’ tornou-se ‘zero honte’, que significa ‘zero vergonha’. Embora esteja longe de ficar em zero, também é certo que está longe dessa inibição que tanto me angustiava e me impedia”.
O último sonho: “Na sala de espera da minha analista somos apenas duas pessoas. Ela, atraente, ruiva, de um país onde se fala outra língua, nem castelhano, nem francês, e eu. Sobre a mesa, um telefone ocupa o lugar das flores que sempre gostei de ver ali. Ela me pergunta, enquanto me mostra o telefone, como se chama essa parte que estão escritos os números. Olho, penso e digo: ‘não sei’. E não sei em nenhum idioma. Acordo tranquila, nem ela, nem eu, e em nenhum idioma! Como podem ver, o ‘não sei’ é ainda atual. No entanto, situar o impossível alivia a impotência”.
Esses fragmentos podem ser lidos como o modo pelo qual ela tenta situar o impossível com o qual se confronta ao final, que Deborah localiza em sua própria leitura: “nem ela, nem eu, e em nenhum idioma”, o que alivia a impotência. Podemos acrescentar: a impotência que implicava a via do saber pela vertente epistêmica, essa tentativa neurótica desesperada que nada aplacava. Esse saber não se encontra nos livros. Havia ficado fixa nessa ficção, fixa a um falso “não sei”, localizando e se encaixando exatamente em sua histeria e sustentando a pergunta: como se é mulher? Essa foi uma cena estruturante para ela, marcando o ritmo da sua inibição. Esse tratamento dado em sua análise lhe permitiu precisamente situá-lo em relação ao impossível: nem ela, nem a Outra, nem ninguém pode ter essa resposta. Ela sai dali com a decisão de se apresentar ao Passe.
A paixão do parlêtre: o amor no passe de Clotilde Leguil
Já o testemunho de passe de Clotilde Leguil remete ao equívoco inerente à marca de uma língua no corpo – o equívoco da existência entre o O (zero) e o UM – e elucida o que seria esse “farrapo de discurso”[18]. A partir daí, se coloca uma “alternância mínima disso que pode vir a ser, […] esse efeito mínimo de duas letras que se enlaça ao gozo e introduz toda a topologia”[19], que nos permite, por sua vez, observar como o final de um percurso conduz ao início ininterpretável da aquisição de uma língua.
O sinthoma aí já surge como algo que vem reparar esse furo da linguagem a partir de um ponto que não se pode imaginarizar, ou seja, um traço que não faz par. O acento recai, portanto, sobre um “fazer”. Amar, então, esse sinthoma, amar essa singularidade, é um arranjo que exigiu muitas manobras e indicou um novo amor.
Clotilde é a primeira filha entre seus irmãos e, como tal, era-lhe destinado o lugar de ser um ídolo, idouly na língua francesa. Curiosamente, o nome da primeira irmã da família paterna, Iduli, traz uma homofonia entre os termos em francês. Trata-se da primeira irmã paterna que faleceu quando bebê, ao ingerir uma água (d’eau) insalubre, cuja sonoridade da pronúncia em francês equivale a “ô”. Essa morte sempre foi algo silenciado, apesar de sabida, tornando-se um imperativo, algo que não deveria ser contado, tal como um zero, e que, forçosamente, não deveria existir. Paradoxalmente, uma existência é colocada em questão, sob a forma de um segredo a ser mantido na família.
Nesse contexto, uma interpretação orientada pelo real joga com a matéria sonora equívoca que, por sua vez, remete à opacidade do gozo[20] (d’eau e “ô”). Desse modo, a interpretação colocou em evidência a irrupção contingente de uma letra através de um equívoco sonoro, favorecendo a leitura dessa escritura mínima, um equívoco que indexou, portanto, o UM.[21]
Podemos dizer que o encadeamento simbólico, em torno do qual tudo girou e que teve o comando do significante “a primeira”, mesclou a morte em vida, sob a forma de um “desejo asfixiado”. “A primeira” como filha e a morte da primeira irmã do pai compuseram, para Clotilde, parte da trama simbólica sintomática, a partir da qual poderia se situar uma verdade não dita que sofreu uma desconstrução.
Desconstrução, evidenciada em um sonho que trouxe, enfim, um ponto de basta na busca de sentido: em uma cidade estrangeira, ela perdia sua própria filha, que lhe respondia, do fundo de um bueiro, “estou aqui”. Foi aí que algo que ela sempre soube, mas não queria saber, se tornou um enigma e uma surpresa ao mesmo tempo. Nesse momento, tem uma lembrança encobridora: seu pai, enquanto fazia para ela a contagem dos seus cinco irmãos, mencionou o nome da sua irmã falecida. Sua mãe se irritou e perguntou: “É preciso contar a primeira perdida?”. O trauma se transformou em enigma da relação com a morte no discurso materno.
A irrupção do gozo articulado a esse significante-mestre, “a primeira”, como o eco de um dizer no corpo, demostrou a união entre surpresa e enigma. Logo, ela ressalta um “eu estou aqui”, ao parafrasear a filha perdida no bueiro que o seu sonho produziu. A filha perdida ganhou existência a partir do que se enumera, do que se pode, enfim, contar. Poderíamos, então, dizer que, na filha perdida, havia uma existência contraposta a um fundo de inexistência.
Na contingência provocada pelo sonho – “eu estou aqui” – foi possível trazer os significantes que se articulam em torno de uma escritura, que carregam entre si a marca do traço traumático pelo equívoco sonoro da letra matemática em torno desse ô/zero/água. Essa letra sempre a mesma, assim sucedendo: letra “o” do seu grupo sanguíneo, o “O” que falta na palavra dénuement (“privação”, “indigência”) para se transformar em dénouement (“desfecho”), a partir de uma escansão que o analista lhe faz: dé-noue-ment.
Essa letra matemática, “O”, demonstrará o “fio de ouro do gozo”, como diz Clotilde, por demonstrar em sua função ser sempre a mesma e, com isso, “suas afinidades com o registro do real” [22]. Se o desfecho da sua análise foi marcado por um desapego do sentido, isso favoreceu morder a substância gozante, conjugando aí o corpo falante.
Outro sonho: seu pai deixa um número de telefone num pedaço de papel e lhe entrega. Lê-se aí a escritura: 0 – 1. Dessas duas letras – o “O” contingencial da história da água ou o zero, e o 1 do significante-mestre “a primeira”, este que “bateu”, afetou seu corpo e em torno do qual tudo girou – emergiu o fato de que o traumatismo do seu encontro com a língua estava aí. Ao se destacar o 0 do 1 trazido no sonho, acedeu-se ao inconsciente real, este que se lê, que se coloca mais além da verdade paterna e é, portanto, ininterpretável, ou seja, “não há nada mais para se ver desse lado”[23]. Extrai-se, então, o efeito de gozo na oposição desses dois termos, quando esse Um se torna a letra que marcou a sua língua, sob a forma de uma ex-sistência.
Tornou-se decisivo encontrar esse 0 (zero) que antecede ao Um do traço paterno articulado simbolicamente para dar lugar ao desfiladeiro significante que visava o sentido. Ou seja, antes de ter um sentido, esse traço simbólico teve um valor de gozo que repercutiu no corpo como eco de um dizer. A letra articulada ao significante não era mais casada com um significado, mas com um efeito de gozo. Assim, para Clotilde, seu final de análise implicou articular a letra (O) ao significante (Um), como efeito de gozo, não mais como esse significado se fez quando “a morte” e a “primeira” se imiscuíam. Ser a primeira e ao mesmo tempo perdida trouxe o que ela não conseguia nomear: sua relação com o gozo.
Nomear o trauma, por fim, articulou o traço simbólico e o valor de gozo, ou seja, um nome indica a forma em que o parlêtre é afetado pela língua e introduz o vazio do sentido que conduziu ao desfecho da análise. Reconhece-se aí a parte do semblante que toca o real, agora disjunto de uma consequência. Isso diz do real como impossível, restando apenas “a estranheza do que pode se dizer do amor ao inconsciente tal como ele é lido”[24].
O que foi desamarrado com a montagem inerente ao que deveria prevalecer de forma superegóica e essencial do significante-mestre – “não se contar a primeira perdida” – foi reatado de outra forma em relação à vida e à morte, ao se dispensar a verdade do pai. Houve uma queda do sentido que um significante mestre instituiu. Isso revelou um “fundo de indeterminação”[25] e, por conseguinte, fez com que restasse uma nova relação com o vivo, uma nova relação com o inconsciente. Entrevê-se aí o que “deixaria um resto ex-sistente, […] a virada da suposição para a ex-sistência”[26],[27]. O parlêtre está submetido à lógica do Um.
Clotilde experimenta um novo amor, ela passa a amar o que de mais singular existe em um parlêtre. Como dissemos, esse novo amor como uma paixão do parlêtre contou com a indeterminação inerente à língua a partir de uma primeira escritura. Isso transformou sua relação com seus analisandos, ao oferecer aí o seu corpo através da satisfação pela escuta da existência singular de cada um deles. A solução que lhe adveio foi dirigida ao seu próprio ofício e à feminilidade, que lhe permitiu amar um homem, separando-se assim da “família superegóica”. Ela passa a amar o seu sinthoma, que faz um ponto de basta, após o deslizamento de uma varité[28].
Se disso advém um corpo poético, sua função implicará a revelação de que “a linguagem não é significação, mas ressonância, e evidencia a matéria que, no som, excede o sentido”[29]. Tal como a letra matemática 0 e o número Um, demonstraram. Para Clotilde, uma letra tocou seu corpo, fazendo dele um corpo poético, se podemos assim dizer, sob o tom do eco de um dizer ao som vazio de sentido que precipitou a marca de uma língua.
Conclusão
Nas Paixões do Ser, como aponta Koretzky[30], o Outro é o locus da causa significante do sujeito. Amor, ódio e ignorância são as paixões que dão forma ao ser, a partir do apelo por um complemento, sob a ilusão de sutura da falta-a-ser. Entretanto, como Koretzky adverte, a despeito da paixão do significante, busca-se no Outro a paixão do objeto parcial. Nessa perspectiva, as Paixões do Ser têm articulação indissociável com a paixão do falasser. O véu do amor, do ódio e da ignorância são revestimentos simbólicos que mascaram a paixão pelos objetos parciais. Desse modo, a paixão liga-se a um objeto contido, supostamente, no Outro, como nos apresenta Miller[31] em seu curso Extimidade.
Pista como essa já encontramos na própria apreensão lacaniana no seminário A transferência,[32] quando aborda o apaixonamento de Alcebíades por Sócrates, nos fazendo ver que, mais além do saber, a paixão se revela a partir do agalma – objeto precioso, contido no Outro. Ao deslocar da paixão pela via do significante à busca apaixonada pelo objeto, em um só giro, inclui-se, sobre as Paixões do Ser, a paixão do parlêtre, dando à alma o seu nome próprio: objeto a.
A paixão, assim, não concerne apenas à alienação ao Outro, mas reporta, igualmente, ao objeto como resíduo, resto da operação de separação. O objeto resto, ao final de análise, corresponde à mesma parte de si perdida e colocada sobre o campo do Outro. O percurso de uma análise leva à inconsistência do Outro, apontando que a repetição da busca pulsional pelo objeto encontra, no corpo, enquanto Outro, a satisfação.
A paixão do falasser faz pensar especialmente na travessia da fantasia, porque diz respeito às formas como se vive a pulsão. Atravessada a fantasia no percurso analítico, há uma transformação do estatuto do Outro, que passa a ser meio de gozo – corpo, a quem não se pede mais garantia, pois “se está sozinho no palco do mundo”[33]. Não se busca domesticação ou equilíbrio, mas, a partir do ato e da autorização de si, retira-se as consequências pela responsabilidade no mundo.
Sem expectativa, mas não sem paixão, o final de uma experiência de análise torna evidente a fruição de gozo que atravessa os corpos, em um mundo construído já sem as garantias e desgraças das paixões do Outro, paixões do significante.
Isso implica que a paixão primária não é atravessada pela falta, nem seu estofo é suposto no Outro, mas pela ética que conduz ao ato, sob a responsabilidade radical do próprio modo de gozar. Evidenciamos aqui a paixão do falasser, que, no dispositivo analítico, subsume as Paixões do Ser, apontando ao Um, esse traço que marca o exílio da relação sexual. Nos dois passes apresentados, vimos como, no final do percurso, aparece um encontro com a língua que favoreceu uma nova forma de ignorância e amódio.