Coordenadora: Mônica Hage (EBP/AMP)
Colaboradora: Fátima Sarmento (AME EBP/AMP)
Êxtimo: Gerardo Arenas (AME EOL/AMP)
Relatores:
Fátima Sarmento (AME EBP/AMP)
Julia Solano (EBP/AMP)
Participantes:
Alice Munguba (IPB)
Carla Fernandes (EBP/AMP)
Graziela Pires (IPB)
João Klaus Seydel (IPB)
Kleyanne Lima (IPB)
Tânia Porto (IPB)
GT 2: Uma “Douta Paixão” e os afetos na experiência analítica
Introdução
O tema dessas Jornadas, As Paixões do Falasser, nos conduziu a interrogar sobre o fazer e o que ocorre do lado do analista. Caberia falar em paixão do lado daquele que conduz uma análise? Essa pergunta encontra sua base de origem no Seminário 1, quando Lacan (2009) apresenta as paixões do ser em jogo em uma análise – amor, ódio e ignorância – e já anuncia o que está do lado do analista: “no analista também convém considerar a ignorância” (p. 316).
Em As paixões do ser, Laurent (2000) introduz o tema destacando sua presença ao longo do ensino de Lacan, situando-o originalmente como o deslocamento de um dos termos mais difundidos na Psicanálise desde Freud – o afeto. Os afetos, conforme definidos por Freud (2010), “correspondem a processos de descarga, cujas expressões finais são percebidas como sensações” (p. 87). Seguindo a via freudiana, pode se dizer que o afeto e a ideia, ou seja, afeto e representação (Vorstellung), se encontram em aparente oposição. Freud indica que, embora se fale de amor ou ódio inconscientes, existe uma diferença no funcionamento do mecanismo psíquico dos afetos em relação às ideias inconscientes. Enquanto a representação é recalcada, o afeto se desloca, fica à deriva, desorienta.
Ao declarar que todo o recalcado é inconsciente, porém não todo o inconsciente é recalcado, Freud (2010) acaba por ampliar o campo do inconsciente, indicando que há algo inconsciente que excede à categoria conceitual do recalcado. Os afetos, à deriva, podem ser inconscientes e se caracterizam pela estrutura de deslocamento, articulando-se a um significante. É nesse ponto que Lacan aponta para as paixões, ultrapassando a premissa da oposição entre afeto e representação, chamando atenção para a proposição de que não há ideia – não há representação ou representante da representação – sem que haja a presença de um afeto (Laurent, 2000).
Para Lacan (2003a), “o afeto vem a um corpo cuja propriedade seria habitar a linguagem” (p. 526). É efeito do impacto de lalangue, que produz marcas de gozo. Os afetos surgem “por não encontrar alojamento” (idem) e podem enganar ao se ligar a um significante, produzindo um sentido. À exceção da angústia, afeto que não engana, pois é sinal do real. Miller (1998) sustenta que o ensino de Lacan comporta orientações, e a orientação quanto a isso é saber se o sujeito se deixa guiar, no que tange ao afeto freudiano, pela emoção, pelo sentimento ou pela paixão. Lacan ultrapassa o debate acerca dos afetos na perspectiva de uma economia energética, destacando as paixões, que passaremos a comentar para circunscrever a pergunta que norteia este trabalho. As paixões, em uma análise, estão do lado do analisante e atualizam-se sob transferência.
Vale destacar que, em seus primeiros Seminários, Lacan nos traz as paixões do ser: o amor, o ódio e a ignorância, que são paixões da alienação do sujeito ao Outro. Aqui, o Outro do simbólico precede e afeta o sujeito, que busca um complemento à falta-a-ser. A partir da década de 70, Lacan (2003b) se dedica às paixões da alma como paixões do objeto a, relacionadas à separação, ao Um. Fazem parte dessa lista: a tristeza, o gaio saber, a felicidade, a beatitude, o entusiasmo, o tédio e o mau humor.
E no que se refere ao analista? Caberia falar em paixão? Para percorrer essa questão abordamos inicialmente as paixões do ser – amor, ódio e ignorância – situando o que se passa na experiência analítica do lado do analisante, bem como o lugar desde onde opera o analista. Recorremos ao testemunho de passe de Oscar Ventura (2020) como peça fundamental para fazer uma leitura da mutação das paixões no parlêtre no dispositivo analítico. Seguindo uma orientação para circunscrever o tema de trabalho, consideramos imprescindível, para discutir a paixão da ignorância, interrogar a diferença quanto ao saber do analista e do analisante.
Na condução de uma análise, cabe ao analista ignorar o que sabe como condição para que o saber do analisante possa advir. A pesquisa nos conduziu a investigar a função do analista no dispositivo analítico, partindo do lugar do analisante, onde se localiza a paixão da ignorância, até a passagem a analista.
O amor, o ódio e a ignorância na experiência analítica
As paixões do ser funcionam como uma trança composta de amor, ódio e ignorância, sendo concebidas, no primeiro ensino de Lacan, como ligadas ao ser e à sua falta. Vale lembrar que essas paixões se inscrevem a partir da definição do sujeito do inconsciente como falta-a-ser.
No Seminário 1, a partir do esquema do “diedro”, cada paixão é situada na tripartição simbólico, imaginário e real (Lacan, 2009). O amor, situado entre o simbólico e imaginário, vela o real através da ilusão da completude. O ódio, situado entre o imaginário e o real, oculta o simbólico através da imaginarização do real, que se apresenta como força destruidora. Já a ignorância, situada entre real e simbólico, oculta algo do imaginário.
Essas três paixões são tomadas pela via da transferência e consideradas por Lacan com referência à função do significante. É justamente em torno dessa função que as paixões se manifestam na clínica das neuroses durante a análise. No centro está a demanda, mirando o objeto da satisfação, embora o alvo seja a falta-a-ser, através das suas três figuras: 1) o nada no amor, que se constitui como a paixão da histérica; 2) o ser do Outro no ódio – a paixão do obsessivo é o ódio, ele precisa do Outro para destruí-lo; e 3) o indizível na ignorância, que se ignora e que se busca. Essa última é a paixão do neurótico. Há, nesse contexto, um aparente paradoxo: a posição natural do humano é não querer saber de nada. No entanto, o neurótico, na sua busca pelo saber, protege-se do horror ao se apaixonar pelo sentido, permanecendo, portanto, na paixão da ignorância. A expressão “Deus quis assim” revela que o apaixonado entrega a Deus o seu destino. Isto está em conformidade com Lacan (2003d) na sua “Carta de Dissolução”, na qual afirma que o sentido é sempre religioso, pois remete ao Nome-do-Pai, remetendo, portanto, a Deus. Em função disso, Lacan precisou ir além do Édipo para retirar a psicanálise da religião, substituindo o amor ao pai pelo amor ao sinthoma.
Em seu primeiro ensino, em “Direção do Tratamento e os princípios do seu poder” Lacan (1958/1998) esclarece que, nas tentativas feitas pelo sujeito para que algo venha tamponar sua falta-a-ser, a ignorância da falta no Outro está aí situada. Aqui, Lacan estabelece uma íntima relação entre a falta-a-ser e o próprio campo em que se desenrola a paixão do neurótico: “o que é assim dado ao Outro preencher, e que é propriamente o que ele não tem, pois também nele o ser falta, é aquilo a que se chama amor, mas são também o ódio e a ignorância” (p. 633). As neuroses ocorrem devido a um “não querer saber nada disso”, ou seja, por causa do recalque de um saber sobre a castração. Da experiência do real, o sujeito se defende. Assim, o recalque indica que não há desejo de saber; o que prevalece é o horror ao saber. Só a partir da histerização do discurso é que o Sujeito suposto Saber (SsS) se instalará, e o amor se dirigirá ao saber.
No avanço do ensino de Lacan (1985), a questão do ser passa por uma mudança de perspectiva a partir da teorização do gozo, formalizada no seminário 20. A expressão “Há Um” sinaliza que não se trata mais do ser e da falta-a-ser, uma vez que, como enfatiza Miller (2011), em relação ao gozo não se pode dizer o que ele é, não se pode fazê-lo ser, pode-se apenas constatar a sua existência, ou seja, dizer que ele existe. A referência ao Um sozinho, conforme Miller, destitui o analista do “poder criacionista que a interpretação do desejo lhe confere” (Miller, 2011, inédito). Essa destituição é homóloga à constatação da existência, no percurso da análise, de um elemento que, para Miller (2011), “não se pode fazer ser”: o gozo.
No lugar do Outro do simbólico, temos o real do Outro que provoca ódio, provoca horror. O passe de Oscar Ventura pode servir para ilustrar que, de todas as paixões, o ódio é, sem dúvida, a paixão mais difícil de se reconhecer e admitir. Em uma sessão, referindo-se ao momento de seu nascimento, o analisante diz ao analista: “e então eles me têm, eu nasci” (y entonces me tienen, nazco)” (Ventura, 2020, p. 174). A declinação da voz do analista devolve o significante me tienen nazco fazendo ressoar o significante me tienen asco: “eles têm nojo de mim”. Vale dizer que a intervenção do analista permitiu trazer o significante insensato que estava do lado de fora, mas que perturbava a cadeia, para dentro do dispositivo, abalando o equívoco.
Isso possibilitou um momento de destituição do Outro. O analisante desligou-se do que o mantinha enlaçado ao Outro – a tristeza materna. Conseguiu se liberar e ter acesso ao gozo encapsulado na identificação, que era o alimento privilegiado do ódio. Isso foi possível mais pela via da transferência real do que pela via do amor ao saber. Em função disso, o analista não deve perder de vista os semblantes sob os quais o analisante tenta se refugiar para disfarçar o real do ódio.
Esse testemunho de passe ensina que o discurso analítico é o único que dá tratamento ao gozo, ou seja, é o único que reduz o Outro a seu real. Ensina, ainda, que a verdadeira dimensão do traumatismo é a da palavra que fere. O sujeito adoece de um dizer que ressoa em seu corpo, deixando marcas. Nessa direção, Naveau, (2015) admite que o nome da ferida é o impossível de dizer, e a função do analista é esvaziar os enunciados dos quais o sujeito padece. Nesse passe, fica evidente que, através do viés do equívoco, foi possível liberar o que se realizava como um gozo ignorado pelo próprio sujeito no sintoma. Finalmente, a possibilidade de operar sobre o sintoma vem do fato de haver equívoco entre o som e o sentido. O sintoma se presta a uma leitura, justamente porque ele se caracteriza como um nó de equívoco da língua.
Declinações da posição do analista: semblante, desejo e presença
Vimos, através do passe de Ventura (2020), que não há outra maneira de tratar o real a não ser pela via do semblante. No exercício da prática analítica, duas modalidades de semblante merecem destaque: o analista como semblante de objeto a e de saber. No Seminário 20, Lacan (1985) estabelece uma equivalência entre o objeto a e o semblante, afirmando que “o analista é aquele que, ao pôr o objeto a no lugar de semblante, está na posição mais conveniente para fazer o que é justo fazer, a saber, interrogar como saber o que é da ordem da verdade” (p. 129).
Vejamos o funcionamento dos semblantes no discurso analítico:
Nesse discurso o gozo do parlêtre, o a, cobre um saber que é sua verdade e o sujeito põe-se a trabalhar para produzir um S1 que fale da sua singularidade. O analista no Discurso analítico, se dirige ao outro tomando-o como sujeito, interrogando-o sobre o gozo que causa seu desejo, de modo que, ao final, o analisante invente o que fazer com esse gozo. Neste sentido, este discurso é libertador, amplia as possibilidades ao parlêtre. Ao fazer semblante de objeto, o analista vai permitir ao analisando escrever aí o seu fantasma. Ao operar nessa posição, o analista apontará para o lugar da perda. O desejo do analista, enquanto desejo de obter a diferença absoluta, permitirá a produção do S1 desarticulado do S2. Ainda que todos os discursos permitam um freio ao gozo, considerando que eles estão inscritos na estrutura da linguagem, o discurso analítico é o único que dá tratamento ao gozo.
Voltando ao passe de Ventura (2020), ao final da experiência analítica, o analisando pôde fazer algo mais digno: ao reconhecer o gozo estrangeiro como seu, ele deixa de atribuir essa responsabilidade a um outro. Essas considerações apontam para uma direção – no discurso analítico, o objeto a, no lugar de agente, é um semblante idôneo para tratar o gozo. No entanto, o analista deve sustentar o vazio, não se identificar com o semblante, mas fazê-lo funcionar. Para isso, é preciso, conforme indica Tizio (2009), saber usar o objeto sem sê-lo, porque se o analista fosse esse objeto, perderia a idoneidade para tratar o gozo. O analista não deve, portanto, se converter em um objeto além da conta, em um semblante ostentado.
No avanço da teoria, Lacan isolou um uso do semblante próprio ao Discurso analítico, no qual o sinthoma tomará o lugar de a. Samuel Basz (2010) trata da legitimidade de situar o analista sinthoma como agente do discurso. O sinthoma ao tomar valor de a no Discurso do analista, amplia as possibilidades para o tratamento, uma vez que permite ao analista acolher as singularidades e tratar o real por meio do enodamento como suplência.
No que se refere ao saber, em A Terceira, Lacan (2011) anuncia que “não há um discurso sequer no qual o semblante não comande o jogo” (p.21), e que o discurso analítico, portanto, não escaparia a essa regra. No coração da operação analítica o semblante de saber se presentifica. Isso porque o ato analítico implica que o analista aparente um saber. A questão em jogo é o uso que ele fará deste semblante. E aqui Lacan faz um alerta para o perigo da “enfatuação do analista”, convidando-o a manter uma relação com o semblante de saber distinta da enfatuação. A chave para isso é que ele possa manter a sua posição de ignorância renovada. Freud já anunciava essa ideia ao insistir em recomendar aos analistas que tomassem cada novo caso como se não tivessem aprendido nada com os anteriores.
Do lado do analisante, podemos arriscar dizer que a análise consiste eminentemente em uma modificação da relação com o saber, na medida em que o saber, primeiramente suposto ao Outro, ao final, é do próprio analisante, que sabe fazer com seu gozo. Essa passagem do saber que vai do Outro ao Um, é operada pelo desejo do analista. O testemunho de passe de Oscar Ventura permite elucidar essa formulação. Foi partindo do endereçamento ao analista no lugar de Sujeito suposto Saber sobre a verdade, que o analisante pôde cernir o gozo fantasmático que se ligava à sua relação com a militância política. Lutava na militância sustentado na lógica da posição de “aparição com vida”. Segundo Ventura (2020): “nessa análise, pude entender que a política era, no meu caso, a própria luta pela vida, a minha” (p. 173). Isso recobria um real em jogo, um semblante que pôde ser tocado, permitindo situar as coordenadas mais primárias do fantasma a partir da operação do Discurso do analista, de um vazio no lugar da suposição de um saber sobre a verdade.
De acordo com Arenas (2016), a função do saber do analista se modifica ao longo da cura. Desde um saber fazer e fazer saber no início, passando por um “saber ser a” no meio, até um “saber desser” no final do processo analítico. O operador que permite essa passagem é o desejo do analista, na medida em que se orienta pelo real. No passe que trabalhamos, podemos situar que, sustentado na posição de semblante no discurso, o analista se fez produzir como objeto a. E “fazer-se produzir implica justamente ser produzido pelo analisando”. (Cottet, 1998, p.70).
O lugar vazio do desejo do analista permite relançar a causa no processo da análise, mesmo que, ao final, se desvele para o analisante o vazio dessa causa. Para Lacan, “É na medida em que o desejo do analista, que resta um x, tende para um sentido exatamente contrário à identificação, que a travessia do plano da identificação é possível.” (LACAN, 1995, p. 270). O desejo do analista, portanto, configura-se como esse x, que se apresenta em cada caso, e que só pode emergir na medida em que o analista se esvazia do seu próprio ser, recusando a posição de suporte identificatório para o sujeito.
Lacan (1992) traz a seguinte questão em uma perspectiva lógica: o que será que o analista precisa para ocupar esse lugar? Entendemos que é preciso orientar-se pelo vazio de saber em relação ao objeto a. O analista banca o objeto a que foi destacado da série de cenas do parlêtre para circunscrever seu modo de gozar e direcioná-lo ao desejo e à invenção. O analista está presente em sua ausência “por meio de sonhos de transferência, como destinatário das formações do inconsciente. Mas ele também está presente com seu corpo [en corps] no próprio cerne da experiência analítica” (Leguil, 2023, p.113).
A presença do analista encarna algo do gozo, “a parte não simbolizada do gozo” (Miller, 2018. p. 18). Trata-se de uma presença, em corpo, como caixa de ressonâncias do corpo do analisante. O analista faz ressoar com a voz o que ressoa da materialidade da letra, o que pode produzir um efeito de corte no funcionamento repetitivo do modo de gozo, cernindo-o, nos diz Leguil.
No testemunho do passe de Oscar Ventura, a presença do analista encarnada como objeto voz, permitiu perfurar os semblantes que recobriam o real, tendo como efeito a inscrição do desejo do analista no analisante, a posição de colocar o corpo a trabalho para objetar. Segundo Ventura (2020), “fazer objeção ao todo de maneira radical é o fundamento político mais ético que eu já conheci. E se posso nomear, uma das causas pelas quais o desejo do analista se inscreve em mim é esta” (p. 174). Assim, não se trata apenas de, do lado do analisante, supor um saber sobre o que se simboliza do gozo, mas também do confronto com uma presença que tenha incidência sobre o que não é simbolizável: o objeto a.
No caso de Ventura é possível afirmar que o ato do analista, sob a forma da declinação da voz, possibilitou o enodamento dos três registros: real, simbólico e imaginário. Isso acontece na medida em que o analista opera através da leitura da lógica da posição subjetiva do analisante, perturbando o efeito de sentido. Com isso, toca o real. Desse modo, é a lógica, não o saber, o que deve guiar o analista em seu ato. Lacan (2023, p.269) provoca, “Qué saben ustedes? En qué meten sus narices?” alertando os analistas que eles só têm que lidar justamente com a estrutura lógica da posição subjetiva do analisante. É isso que o analista deve saber. Por isso, podemos dizer que a lógica está articulada ao desejo do analista. Assim, o analista não deve guiar o sujeito a um saber, mas sim “nas vias de acesso a esse saber” (Lacan, 2023b, p. 317).
A douta ignorância: uma douta paixão?
Diferente do Budismo, que entende a ignorância como uma paixão em virtude de sua prática meditativa, para a psicanálise, só é possível conhecê-la através de uma experiência (Lacan, 1997). A ignorância, para Lacan, não é tomada como um déficit. Muito pelo contrário, ela tem a ver com o saber.
É por se engajar na pesquisa da verdade que o sujeito se situa na dimensão da ignorância, e pouco importa se o saiba ou não. Estabelece-se, assim, uma relação dialética quanto à ignorância, uma vez que “é somente na perspectiva da verdade que ela se constitui como tal” (Lacan, 2009c, p.193). A ideia de Lacan, nesse momento, é que “se o sujeito não se coloca em referência com a verdade, não há ignorância” (idem). Então, o que faz a ignorância existir é justamente sua relação com uma verdade a ser atingida, uma pesquisa do analisante no curso de uma análise. É interessante pensar que a ignorância, então, surge da própria situação analítica.
Em Variantes do tratamento-padrão, Lacan (1998) traz que “a ignorância não deve ser entendida como uma ausência de saber, mas, assim como o amor e o ódio, como uma paixão do ser, uma via pela qual o ser se forma” (p. 360). Ele discorre sobre a formação do analista, apontando que, ao longo desse caminho, o analista deve reconhecer em seu saber o sintoma de sua ignorância. Ao tomar o não-saber como o “fruto positivo da revelação da ignorância”, fica claro que há uma distinção entre não-saber e negação do saber. Lacan (1998) indica que o analista deve “ignorar o que ele sabe” (p.351), apontando para o fato de que “a análise só pode encontrar sua medida nas vias de uma douta ignorância”(Idem, p. 364).
A expressão “douta ignorância” foi tomada do cardeal Nicolau de Cusa, que dizia que “nenhum outro saber mais perfeito pode advir ao homem, mesmo ao mais estudioso, do que descobrir-se sumamente douto na sua ignorância, que lhe é própria, e será tanto mais douto quanto mais ignorante se souber” (DE CUSA, 2008, p. 117). Segundo Miller (2011), a douta ignorância implica uma articulação necessária entre o saber e a ignorância; é uma noção, segundo a qual, saber e ignorância não são exteriores um ao outro, mas de que há um ponto, no mais alto do saber, no qual o saber coincide com a ignorância.
É interessante notar como Nicolau de Cusa, por meio de um apólogo sobre o amor, introduz a questão da ignorância. Motivado a apreender e situar o amor a Deus, percebe o caráter infinito deste, e se questiona até que ponto o amor sabe, ou ignora. O amor teria, assim, ao mesmo tempo, uma face de ignorância, e outra de pressentimento de saber pois, se por um lado, só podemos amar o que ignoramos, por outro, seria necessário algum saber para amá-lo.
Nicolau de Cusa (1997), que publica seu ensaio A Douta Ignorância em 1440, defendia a ideia de que tudo que sabemos pode ser melhor e mais completamente sabido. Para ele, o saber é inesgotável, nunca completamente alcançável. O desejo de saber é, assim, inalcançável, mas também correlato da natureza mutável do objeto, que oculta uma precisão inatingível. Contudo, essa imprecisão não é desalentadora, ao contrário, é considerada instigante para que o sujeito vá em frente em sua busca, tentando aproximar-se, o mais perto possível, desse saber. Encontramos aí mais uma afinidade entre a psicanálise e a ideia defendida por Nicolau de Cusa. Uma análise também vai na direção de um objeto impreciso e inefável. Da mesma forma, tal imprecisão não nos é desalentadora; ao contrário, nesse movimento inesgotável e insaciável, reside o vigor da psicanálise, que deve sempre ir mais além. A questão, e é a que nos interessa é em que medida essa sequência seria finita pois, apontando para o infinito chegamos, como em uma análise, ao ponto em que nos deparamos com o impossível de dizer.
Miller (1998), em A proposito de los afectos em la experiência analítica, compara o analista ao santo, como aquele que é sede das paixões, assediado pelas paixões que suscita. Essa aproximação do analista com o santo foi feita por Lacan (2003), em Televisão, para contrapor o analista ao sábio, que não se comove. Esse contraponto entre “santo” e “sábio” nos interessa na medida em que estamos problematizando a questão do saber, sendo importante destacar que o saber que vale em uma análise não se assemelha à sabedoria.
Na aula XIII do Curso “Os signos do gozo”, Miller (1998), ao jogar com as palavras, apresenta uma reflexão interessante. “Passe-ion de la ignorância” (p. 223), diz ele, sugerindo que o passe seja a verificação da paixão da ignorância: será questão de saber se o íon (o átomo) da ignorância está presente no passe” (idem). Segundo Miller, no passe não se pode fazer semblante do ion da ignorância, pois a condição para que surja é que um sujeito tenha experimentado seus próprios limites, isto é, tenha medido onde seu dizer adquire sentido e gozo. Trata-se de um saber que só vale para ele próprio. Constatar ao final de uma análise que se sabe algo, mas que esse algo não existe, trata-se de “uma verdade que se transforma” (idem, p. 226). Verificar a presença desse íon da ignorância no passe é constatar que as palavras já não carregam mais efeitos de sentido como antes.
O exemplo clínico do passe de Oscar Ventura (2020) nos permite fazer essa leitura. A partir de um trabalho detalhado sobre a memória, apontando para a “memória corporal” e a “memória veiculada pelo S e pelo Outro”, ele pôde nos mostrar como essas marcas se perdem, uma vez que “do lado do Outro temos as marcas, as escansões sobre as quais um relato é construído, sobre um pano de fundo que sempre foge”. A experiência da análise “se apoia sobre uma metáfora” (p. 172) do que se inscreve como marca de gozo, uma verdade construída a favor da paixão da ignorância que recobre o furo, a reiteração do Um. Porém isso é destituído ao ser relançado no horizonte o sem sentido, que perturba o efeito de sentido.
É interessante articularmos aqui também com o que estamos trabalhando sobre o afeto. Se o afeto é um efeito do significante, na análise, nos damos conta do tanto que somos afetados pelos traços de memória de tudo que carregamos e que, até ali, estão no inconsciente, ensinando que há buracos no corpo “que alertam o sujeito sobre sua relação com o mais primário da vida e que imprimem um afeto. Uma espécie de tom vital com o qual se anda pelo mundo” (Ventura, 2020, p. 173). A análise permite que esse afeto, possa ser experimentado no corpo de forma mais vivificante.
Embora tenhamos, à primeira vista, a tendência de pensar que o amor conduz a análise, a presença do ódio, enquanto uma paixão “lúcida”, tem um papel fundamental nesse percurso. No testemunho de passe, atravessado pelo ódio contra o analista, o analisante pôde nomear a subjetivação de uma alteridade radical, o que permitiu a inscrição de um efeito de final de análise. O ódio que “poderia captar sobre o gozo do Outro se esvaziava” (Ventura, 2020, p. 176). Neste percurso, ele localiza “uma maneira de fazer funcionar a memória não ficando fixado em uma característica do gozo do Outro” (idem, p. 177), confrontando-se com um “não há” e consentindo com o furo. Trata-se de uma invenção. No litoral entre esquecimento e memória, passa a experimentar uma “verdadeira alegria”, atravessado por “ventos de vida”. Lacan aponta para o entusiasmo no final da análise, onde o que se dá é que o Outro não existe e o saber ex-siste, com a condição de construí-lo e inventá-lo.
Em Televisão (2009), quando Lacan aborda as paixões da alma, aponta para o gaio saber no final de uma análise. Propõe o gaio-saber ou gaio issaber [gai sçavoir] para lembrar que “essa emoção alegre é sempre a de um saber que vem junto” (Viera, 2024, p. 10), entretanto, esvaziado dos efeitos de sentido. O gaio saber seria, assim, correlativo ao impossível de dizer, um impossível de saber. O saber alegre permite uma passagem da impotência ao impossível: do saber impotente, porque não há significante para nomear isso, à impotência elevada à dignidade de uma impossibilidade. E, se é impossível, só resta inventá-lo. Dito de outro modo, “o saber alegre é uma consequência direta do bem dizer em análise” (Monribot, 2010, pg. 41).
Podemos concluir que a passagem de analisante à analista permite uma modificação, uma mutação, na paixão da ignorância. Não se trata de ignorar algo que está lá, ou seja, partir do princípio de que existiria um saber a ser alcançado, mas de defrontar-se com um “não há”. Por isso, Lacan fala em invenção de saber, “um outro nome para a paixão da ignorância” (Miller, 1998 pg. 222), pois não se trata de um saber a ser descoberto. Há que se tomar a ignorância como um conjunto, contendo dentro um espaço vazio para que se possa inventar o saber. Esse “não há” é o verdadeiro sentido da paixão da ignorância. Como diz Miller, “É aceitar sofrer de um não há” (Idem, p. 230). O final de análise, entretanto, não é sem certa satisfação, ao iluminar como um relâmpago, “a noite da ignorância” (Monribot, 2010, p. 43).
Momento de concluir
Partindo da pergunta sobre a paixão do analista, e da afirmativa de Lacan (2009) de que no analista também convém considerar a ignorância, o trabalho nos permitiu aprofundar sobre o tema das paixões, traçando uma distinção entre a paixão da ignorância, do lado do analisante, e a ignorância necessária, e particular, ao analista – uma douta ignorância. Por outro lado, nossa investigação nos conduziu a supor que há um saber do lado do analista: saber sobre a lógica de cada caso, ao mesmo tempo em que é preciso encarnar um vazio de saber para que advenha o objeto a na experiência da análise.
Pudemos verificar, através do testemunho de passe de Oscar Ventura, como uma experiência de análise permite uma mutação na paixão da ignorância. O exemplo clínico evidencia que essa paixão dizia respeito a um gozo que havia sido ignorado pelo sujeito, encobrindo o ódio.
Na passagem de analisante à analista, o parlêtre, desembaraçado agora da paixão da ignorância, pode aceder a uma posição mais livre frente ao saber, uma posição de douta ignorância ou, quiçá, uma “douta paixão”. Esse trocadilho, criado pelo nosso êxtimo, Gerardo Arenas, nos permitiu brincar um pouco com as palavras, sugerindo que o percurso de uma análise possibilita uma certa mutação frente ao drama das nossas paixões. Tal mutação aponta para o que se decanta no final de uma análise: o entusiasmo. É essa a paixão que não pode faltar ao analista, destaca Lacan (2003e). “O analista desapaixonado nada mais é do que um falso semblante, e o grande desafio que nos resta é agir de tal forma que o entusiasmo e as outras paixões que nos habitam não nos impeçam de ser dóceis à singularidade de nossos analisantes na direção de cada tratamento” (Arenas, 2024).
Referências:
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ARENAS, G. Lógica, saber y deseo del analista. In: El Psicoanálisis: Revista de la escuela lacaniana de Psicoanálisis. n. 43, 2016. Disponível em: https://elpsicoanalisis.elp.org.es/numero-43/logica-saber-y-deseo-del-analista/
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ARENAS, Gerardo. Analistas apaixonados. In: Jornadas da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Bahia, 2024. Disponível em: https://ebpbahia.com.br/jornadas/2024/analistas-apaixonados/. Acesso em: 06 out. 2024.
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BASZ, Samuel. Discurso. In: Scilicet Semblantes e Sinthoma. Escola Brasileira de Psicanalise- VII Congresso da Associação Mundial de Psicanálise- Paris, 2010.
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COTTET, S. O psicanalista objeto a. Publicado originalmente em: Cottet, Serge. Estudos Clínicos. Salvador: Fator, 1988, p.69-80
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DE CUSA, Nicolau. A douta ignorância, Por Boaventura de Souza Santos: “A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal”, em Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, 2008.
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FREUD,S. O Inconsciente. In: Obras Completas12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. P.87
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LACAN, J. –Seminário 1: Os escritos técnicos de Freud(1953-1954). 2009a. Rio de Janeiro: Zahar. P. 316.
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