Fernanda Otoni Brisset[1] Em As paixões religiosas do parlêtre lemos, com É. Laurent, que há…
Analistas apaixonados
Gerardo Arenas[1]
Em seu Seminário 17, Lacan observa que não falta a Yahvé nenhuma das paixões destacadas pelo budismo, e que isso é revelado pelo seu discurso, cuja forma é a do discurso do mestre. A seguir, ele contrasta o que acontece com isso na análise, dizendo que “o único sentido que se pode dar à neutralidade analítica, é a não participação [do analista] nessas paixões”.[2] Então, se amor, ódio e ignorância fossem as únicas paixões próprias do falasser, o analista deveria ser um verdadeiro desapaixonado. É isso que realmente acontece? Será, em contrapartida, um ideal a alcançar, um mero status ad quem da formação do analista? Ou, pelo contrário, existem paixões que não devem faltar nele?
Três propostas de Lacan sugerem descartar a primeira destas opções. Uma delas encontra-se no Seminário 14, outra deriva-se de “A terceira”, e a última aparece na “Nota italiana”.
Em A lógica do fantasma, Lacan comenta que, em seu ato mesmo, o analista não está a serviço exclusivo do discurso analítico (que ele chama de discurso da verdade), pois ao mesmo tempo é afetado pelos efeitos do discurso (universitário) que pode prevalecer nas instituições psicanalíticas e que o levam a retocar a sua interpretação, procurando aí também “fazer-se reconhecer no plano do saber”.[3] Portanto, pelo menos dois discursos podem se compor no analista, com os resultados distorcivos que tais composições costumam ter,[4] e isso dará origem a uma paixão análoga àquela paixão que Descartes chamou de “irresolução”.[5]
A segunda proposta surge de extrair as consequências da economia dos gozos que Lacan propõe em “A terceira”. Aí ele propõe considerar a infinita variedade de gozos acessíveis aos corpos falantes como combinações de três gozos básicos que podem ser aumentados ou reduzidos, mas de tal forma que a soma deve permanecer constante.[6] Isso nos permite superar o preconceito que inclina a acreditar que o analista não goza no seu ato (aliás, isso tem sido apontado como uma das consequências de certos ensinamentos do passe),[7] e dificilmente encontremos gozos não vinculados a alguma paixão. Em particular, uma vez que a experiência analítica procura reduzir os gozos que competem com o gozo da vida (para que esse floresça em conformidade), a paixão predominante terá de estar em sintonia com esse gozo.
E deixei para o final a referência à “Nota italiana” porque nela Lacan especifica qual é essa paixão, que não pode faltar no analista: o entusiasmo.[8] Em consequência, atuar como analistas não nos torna anjos. O analista desapaixonado nada mais é do que um falso semblante, e o grande desafio que nos resta é agir de tal forma que o entusiasmo e as outras paixões que nos habitam não nos impeçam de ser dóceis à singularidade de nossos analisantes na direção de cada tratamento.