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Um tratamento da ignorância

Marina Recalde[1]

Meu interesse é, fundamentalmente, clínico e foi o que me instigou a ler em Lacan, no Escrito “Variantes do tratamento padrão”, o seguinte: “O analista, com efeito, só pode enveredar por ela [refere-se à formação] ao reconhecer em seu saber o sintoma de sua ignorância (…). A ignorância, de fato, não deve ser entendida aqui como ausência de saber, mas, tal como o amor e o ódio, como uma paixão do ser, à semelhança deles, uma via em que o ser se forma (…)” (…) O fruto positivo da revelação da ignorância é o não-saber, que não é uma negação de saber, porém sua forma mais elaborada. A formação do candidato não pode concluir-se sem a ação do mestre ou dos mestres que o formam nesse não-saber, sem o que ele nunca será além de um robô de analista” (1).

Então, para enveredar-se na formação é necessário reconhecer a ignorância. Não como ausência de saber, senão como sintoma. Isto quer dizer que a formação implica um tratamento da ignorância (ao menos eu o leio assim). Tornar isso um sintoma. Não encontrei em Lacan um tratamento assim sobre as outras paixões do ser.

Entendo então que tornar a ignorância um sintoma pode ser pensado também como um tratamento no percurso analítico. E é a isso que Lacan se refere quando a situa como a forma mais elaborada da ignorância. Esse seria seu fruto positivo, entendo aqui como o avesso da neurose, que insiste em sua negação de saber.

E o que me pareceu incrível, como tratamento dessa paixão, é o que, precisamente, se torna necessário, para não tornar-se robô.

Assim, se pensarmos que toda análise é didática, ou seja, que diz respeito à própria formação analítica, podemos pensar também que um percurso analítico implica um tratamento da ignorância.

Quando Lacan localiza o fruto positivo da ignorância como sua forma mais elaborada, entendo que nessa frase está condensada ou que podemos localizá-la como esse “há do analista” que advém no final. Isto é, não advém O analista (que não existe) mas um analista, esse que pode, levando a ignorância até seu ponto sintomático, preservar esse furo que (se fosse preenchido), o tornaria um robô. Maravilhoso modo de enunciar que o analista deve “virar-se com” e se não o fizer, pode cair na enfatuação, tentação que de vez em quando incomoda, um pouco, a todos. É preciso manter a ignorância para sustentar a posição do analista.

Este fim de semana, escutei da boca de Luis Tudanca uma referência, onde ele destacou um sintagma de Jacques-Alain Miller, que eu já havia lido, mas que me passou despercebido.

A referência foi extraída do livro Cómo terminan los análisis. Paradojas del passe (2). Ali, Jacques-Alain Miller (depois de enfatizar que o discurso analítico não pode sustentar-se com um só) situa a Escola como um conjunto de trabalhadores decididos, entusiastas, analisantes permanentes (no espanhol, analizantes “a destajo”).

Isto é, por um lado o entusiasmo, mas o que impacta é o “permanente” (“a destajo”), uma vez que destaca a dimensão de continuidade em relação ao que se espera de nós, membros de uma Escola. Ser analisante permanente implica, eu acredito, em manter radicalmente aberta essa hiância que nos preserva a nós mesmos e de nós mesmos, inclusive uma vez que constatamos que o Outro não existe. E que nos permite também sustentarmos no discurso analítico, do qual nos servimos, para acompanhar um sujeito em suas próprias voltas e que lhe permitir verificar e sustentar, apaixonadamente – por que não? – que a relação sexual não existe, por mais que nos esforcemos neuroticamente em demonstrar o contrário.

Tradução: Ana Lucia Lutterbach Holck AME (EBP/AMP)
[1] Marina Recalde AME (EOL/AMP) é êxtima do GT coordenado por Sônia Vicente AME (EBP/AMP).Os demais participantes desse GT são Analícea Calmon AME (EBP/AMP), Clara Melo (IPB), Ethel Poll(IPB), Luiz Felipe Monteiro (EBP/AMP), Maria Luiza Miranda (EBP/AMP), Rogério Barros(EBP/AMP), Samyra Assad (EBP/AMP) e Waldomiro Silva Filho.

(1) Lacan, J., Escritos. “Variantes do tratamento padrão”. Buenos Aires, Jorge Zahar Ed. Rio de Janeiro, 1998 p. 360
(2) Miller, J.-A., Cómo terminan los análisis. Paradojas del pase, Buenos Aires, Grama, 2022, p.147
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