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Um Caminho para o Inconsciente Real

Clara Valverde Melo[1]
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Núcleo da Política da Nova Juventude

O sujeito é definido como representado por um significante junto a outro significante. Lacan definiu o sujeito do inconsciente como falta-a-ser, um sujeito sempre barrado, submetido à fala, que não encontrará nunca sua representação derradeira. Essa é a definição do sujeito no primeiro tempo do ensino de Lacan.

O termo de Lacan parlêtre, lido por nós como falasser, substituirá o inconsciente de Freud, propõe uma nova conexão entre as palavras e as coisas, bem como ao analista uma orientação pelo real. O falasser traz a ideia de que só há ser porque há fala e, ao mesmo tempo, ele goza, pois há gozo na fala. No que concerne ao real, esbarramos na noção de causa. O real é causa. Cito Lacan:

“a partir do fazer semblante do objeto pequeno a, ou seja, do que nomeio a propósito do que o homem se coloque no lugar do lixo que ele é – pelo menos aos olhos de um psicanalista, que tem uma boa razão para saber disso, pois ele mesmo se coloca nesse lugar. É preciso passar por esse lixo decidido para, talvez, reencontrar alguma coisa que seja da ordem do real.” (O Sinthoma, p. 120).

Lacan afirmou que o Real é uma invenção dele, ao passo que o diferencia da instância do saber renovada por Freud, o inconsciente. Esse Real do qual ele fala não condiciona a realidade, “há aí um abismo, estamos longe de assegurar que seja transponível” (O Sinthoma, p. 128), é o desprovido de sentido, pois o campo do sentido é distinto dele.

E tem algo nas paixões que é de um Real irredutível. As paixões do falasser orientam, portanto, para o impossível, o impensável, o ilegível do Real, que não são nada mais que o sem sentido da vida, como tantas coisas que parecem absurdas, aquelas que são difíceis de ver ou falar. Paixões em desacordo com a vida, de certa forma destrutivas, que nos levam a pensar nossa prática, não apenas pela via da lógica, mas a partir de uma ética, já que por vezes o analisante pode não encontrar palavras para descrever o indizível do que se viveu, como no testemunho de Debora Rabinovich em seu passe.

Pode-se pensar o falasser como é a relação do sujeito com seu corpo? Lacan nos diz no seminário 23 que a relação que o falasser tem com seu corpo é a crença: “O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora todo instante” (p. 64). Nas palavras de Marcus André Vieira, é preciso dar muita consistência ao corpo para que ele possa sustentar esse ser. Para a Psicanálise, trata-se de criar um corpo falante a partir de uma relação com o inconsciente ali onde havia o silêncio da pulsão de um corpo que não falava a ninguém. Seria, então, uma travessia da paixão do corpo à paixão do significante?

Em minha leitura, entendo que o sujeito do significante, da falta-a-ser, se apoia a posteriori no falasser, ambos articulados com o corpo. Falar do falasser não é falar em oposição ao ser, eles estão articulados sob a égide da transferência, não é uma dicotomia, assim como não é dicotômica a primeira clínica de Lacan com relação às outras. Toda análise, em um certo sentido, é um tratamento das paixões, primeiramente das paixões do ser. Se a Psicanálise é a clínica do singular, do caso a caso, do um a um, as paixões seriam como um rastro do singular do falasser.

O passe de Clotilde Leguil, “Um Novo Amor, um Amor que Faz Ponto de Basta”, apresentou enfaticamente a fertilidade de uma análise como um caminho para o inconsciente real, presente sob o modo da evidência, inconsciente que se lê, mas não se interpreta mais. É o que é, não o que se explica. Lembro-me das palavras de Clarice em “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres”: “O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma benção estranha como a de ter loucura sem ser doida. Era um desinteresse manso em relação às coisas ditas do intelecto, uma doçura de estupidez”. O que uma análise pode fazer, portanto, é ser um encontro com o real que põe fim à busca pelo sentido. Volto à Clarice: “Compreender era sempre um erro – preferia a largueza tão ampla e livre sem erros que era não entender. Era ruim, mas pelo menos se sabia que se estava em plena condição humana”.


LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

LAURENT, E. As Paixões do Ser. EBP-BA, 2000.

LEGUIL. C. O novo amor, um amor que faz ponto de basta. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise Nº 87.

MILLER, J. A. A palavra que fere. Opção Lacaniana Nº 56/57.

RABINOVICH, D. Apaixonada pelo amor. Arteira Revista de Psicanálise Nº 9.

VIEIRA, M. A. O real da paixão. Opção Lacaniana, Nº 31


[1] Participante do GT: As paixões na experiência analítica: manejos e arranjos

Sônia Vicente AME (EBP/AMP)- Coordenadora; Marina Recalde AME (EOL/AMP) -Êxtima

Participantes – Analícea Calmon AME (EBP/AMP), Clara Melo (IPB), Ethel Poll(IPB), Luiz Felipe Monteiro (EBP/AMP), Maria Luiza Miranda (EBP/AMP), Rogério Barros(EBP/AMP), Samyra Assad(EBP/AMP) e Waldomiro Silva Filho.

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