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Paixões: ligeira magnificação, singular fatalidade

Marcela Antelo[xvii]
AME AMP/EBP

A paixão é um substantivo feminino. Shakespeare chegou a usar a paixão como verbo. Do latim, passio significa sofrimento, derivado do verbo patior, que se enraíza no substantivo masculino grego pathos. Curioso que essa “ação de padecer” dá origem à palavra paciente e à palavra passivo. Só no século XVI começou a ser associada ao intenso e sexual.

O que fazemos das paixões na análise? Supostamente não as exaltamos como os deuses olímpicos (pathopoeia[i]), nem as aborrecemos como os filósofos, nem as demonizamos como os religiosos e sua teologia do martírio, nem as domesticamos como os educadores, nem fazemos apologia como os hedonistas, nem as culpabilizamos como os juristas e, finalmente, não as patologizamos como os psicólogos.

Sim, dirão, falamos da paixão como pathos do falasser, mas não no sentido comum da palavra patologia como desvio da norma, detecção do anormal, e sim focados na potência da sua etimologia, pathos, sofrimento, padecer, ‘ação de padecer’, impressão viva, diz Gaffiot.

Lacan constrói um patema, o patema do falo, um matema da paixão. O Homem dos ratos vociferava a ordem de matar-se por causa das suas paixões selvagens e assassinas. Padecer… um tema, uma ideia, um objeto, uma pessoa, um significante qualquer. Diversos são os nomes das amarras dos afetos. O destino das amarras pode ser o recalque, a denegação, a foraclusão. O destino dos afetos é o abismo da liberdade de circulação e de um perpétuo travestismo.

A psiquiatria chega a descrever ‘estados de paixão’ que podemos ver surgir como fenômenos elementares em certos casos.

A paixão magnifica o que o afeto suscita. Afeto mais um plus que costumamos chamar de gozo. Afeto magnificado de vocação metonímica. Marie-Hélène Brousse lê: “Freud passou da emoção ao afeto, Lacan distinguirá o afeto da paixão, cuja potência obedece à metonímia”[ii].

No sonho de apenas uma cena em que Borges conta sobre o alegre assassinato dos deuses, em “Ragnarök” de O fazedor, recolhemos uma aproximação possível da paixão: “uma ligeira magnificação [que] alterava as coisas”[iii]. O crepúsculo dos deuses obedecia à suspeita de que eles não sabiam falar e essa descoberta espalhou sofrimento para todos.

Bruscamente sentimos que jogavam sua última carta, que eram teimosos, ignorantes e cruéis como velhos animais de presa e que, se nos deixássemos ganhar pelo medo ou pela compaixão, acabariam por nos destruir. Tiramos os pesados revólveres (de repente houve revólveres no sonho) e alegremente demos morte aos deuses.

Se padecermos uma ligeira magnificação das coisas que acontecem entre o corpo e o seu gozo, nós a tratamos. Como acontecem muitas coisas entre o corpo e o seu gozo, as paixões são plurais por vocação.

Lacan dá uma lista, barroca, diz Miller[iv], de exemplos de como goza o falante, no momento em que compara o analista com o santo sitiado de paixões e não com o sábio, paradigma da inteligência emocional.

Pegando o fio que Marcus André soltou recentemente na Bahia – a psicopatologia das paixões cotidianas –, pensei em trazer para o nosso congresso, que já começou neste meio virtual, uma experiência que Samuel Beckett chegou a nomear de paixão, a preguiça, e que declarou ser a mais poderosa entre elas. O pop star do século XVII, Francisco de La Rochefoucauld, citado por Lacan no Seminário 10[v], sobre o pathos do amor como paixão da alma, escreveu que a preguiça era a mais incógnita de todas as paixões.

De todas as paixões a preguiça é a que menos reconhecemos em nós mesmos. É a mais ardente e a mais maligna de todas, ainda que a sua violência seja imperceptível e que os seus danos se escondam. Se observarmos com atenção o seu poder, notaremos que ela se torna sempre mestra dos nossos sentimentos, dos nossos interesses e dos nossos desejos. Ela é a rêmora que tem a força para fazer parar os maiores navios, é uma bonança mais perigosa nos assuntos importantes que os obstáculos e as furiosas tempestades. O repouso dado pela preguiça é um feitiço secreto da alma, que pára de repente as lutas mais inflamadas e as resoluções mais obstinadas. Enfim, para se dar uma verdadeira ideia desta paixão, é preciso dizer que a preguiça é como um estado de beatitude da alma, consolando-a das suas perdas e ocupando o lugar de todos os bens.[vi]

Lacan – não sei se tinha lido essa máxima – diz algo semelhante sobre a preguiça na aula sobre a dissolução imaginária no Seminário 3, As psicoses, quando pretendia penetrar a essência da loucura achando que havia nisso uma loucura:

No entanto, não é que o trabalho seja fácil. Por que? Porque, por uma singular fatalidade, todo empreendimento humano, e especificamente os empreendimentos difíceis, tendem sempre a uma recaída por causa deste algo de misterioso que se chama a preguiça.[vii]

Singular fatalidade. Preguiça, acontecimento capital do corpo. O gozo como tal. Miller se pergunta o que quer dizer o gozo “como tal”. Diz que é uma cláusula que abunda em Lacan e entre os lacanianos, mas que nem sempre se distribui com rigor. “O gozo como tal quer dizer algo absolutamente preciso: o gozo como tal é o gozo não edípico, o gozo concebido como subtraído de, como fora da maquinaria do Édipo. É o gozo reduzido ao acontecimento do corpo”[viii].

Algo na preguiça foi tirado de mim. Desta forma o sinto. O gozo deve ser recusado para ser atingido na escala invertida da lei do desejo. E se não for recusado?

O corpo é o lugar do Outro. A angústia tem a ver com o seu desejo. Na preguiça o corpo aparece sitiado por um Outro que não deseja nada. Um corpo com um Outro sentado sobre o tesouro do seu gozo. Dimensão epistêmica.

Incógnita, paixão secreta da alma, imperceptível, seus danos se escondem. Faz parte do não sabido, do Unbewusst freudiano, o não sabido que pode ser sabido, como dizia Marcio Peter[ix], ou do l’une bévue como como insabível, incabível, impossível de se saber? Umbigo do sonho. Recalque primário. Não há delivery do objeto aqui.

Resgato, pois, a familiaridade da paixão da preguiça com a paixão da ignorância. O próprio La Rochefoucauld distinguiu, na sua psicopatologia da ignorância, três classes: não saber o que deveria saber-se; saber mal o que se sabe (duas versões da nossa crassa ignorância) e, a terceira, saber o que não deveria saber-se (talvez aqui pudéssemos situar a nossa docta, ignorar o que se sabe).

Segundo Sainte-Beuve, que faz o prólogo ao livro Máximas, sua doce preguiça acabou por liquidá-lo. A estrela de La Rochefoucauld era um “não sei o quê em tudo”, uma criatura não toda. “As Máximas pertencem a esse gênero de coisas que não se ensinam, e lê-las diante de seis pessoas já é um excesso”, diz La Rochefoucauld em Autorretrato.

A ignorância é a paixão fundamental, afirma o argumento que convoca este congresso. Podemos pensá-la como ‘dar uma mancada?’, tradução coloquial para L’une-bévue proposta por Márcio Peter.

Marcus André Vieira dizia que na paixão da ignorância há um saber: “Eu já sei”. Não é um déficit. A preguiça chega ao consultório como um saber que o ser sabe. “Eu me conheço: sou preguiçoso e para isso não há remédio.” Semana passada escutei uma precisão: “A minha preguiça é um fato”.

No caso da preguiça misteriosa, os pacientes nos dão um banho de atualidade, nessa época de imperativos avessos à estratégia de «não dizer, não ver, não se mover, não saber[x]» que faria as delícias de Bartleby.

Um banho de atualidade, disse Lacan no Seminário 4, -falando da novela de Françoise Sagan- tem “por efeito a ativação da perspectiva sobre aquilo que se faz, e sobre o que se deve estar pronto para escutar, às vezes, dos seus pacientes”[xi].

Estamos prontos para escutar este algo misterioso?

O litoral da preguiça

Moro onde começa o Litoral da preguiça. Assim se chama a área geográfica. Segundo o poeta, o mistério vem de longe, de “quando se amarrava os cachorros com linguiça”[xii]. [13] Que ladeira é essa?

A Ladeira da Preguiça, situada no centro histórico de Salvador, Bahia, guarda na memória de quando chegavam os barcos cheios ao porto da Enseada da Preguiça; os escravos descarregavam e subiam a ladeira, com sessenta quilos, no mínimo, nas suas costas. Conta-se que a elite que morava nos casarões gritava: “Suba preguiça, suba!”.

O significante se difundiu, ficou colado nos corpos. Os nordestinos continuam limpando as nossas latas de lixo. Os mesmos amos continuam etiquetando essências, mesmo que a preguiça como sintoma os tenha definido[xiii].

O escravo, se seguirmos Lacan, sabia de outra forma: “O saber vale justo quanto ele custa, ele é custoso (beau-coût), ou gustoso, pelo que é preciso, para tê-lo, empenhar a própria pele, pois que ele é difícil, difícil de quê? – menos adquiri-lo do que de gozar dele.”[xiv]

Então, há um certo saber ali com a ladeira que deve ser resgatado nestes tempos de demonização dos nordestinos, dos índios, do conhecimento, da sexualidade infantil…a lista é infinita, o Brasil a padece a cada dia.

Creio que certa vindicação da preguiça é necessária na dimensão da política[xv]. O candomblé, o dandismo, se ergueram contra a invenção delirante do capital e situam o ócio entre as ocupações capitais do ser falante. Em tempos do império do deus Google se faz necessário vindicar a preguiça, assim como Borges vindicou a ignorância enciclopédica de Bouvard e Pécuchet. Miller formula uma entusiasta vindicação quando elogia os mendigos hoje transformados em preguiçosos: “Se deveria honrar o preguiçoso”.[xvi]

O valor clínico da preguiça se declina. Pode ser aguda, paroxística, episódica, crônica, pode ser um sintoma ou uma característica de carácter. Para Santo Tomás cada paixão tinha uma dimensão formal e uma dimensão material. A dimensão formal tem a ver com o apetite da sensibilidade, neste caso, nulo; a dimensão material é dada pelo corpo e a maneira deste ser afetado. Neste caso, inerte.

Preguiçoso não é um diagnóstico. O fato de que Lacan chamasse a atenção sobre o mistério da preguiça tal como La Rochefoucauld o fez, me provocou para insistir em que não devemos entregar a preguiça à cruzada de coaches que invade a Terra. Urge orientar-se na sua dimensão clínica. Transclínica como todas as paixões.


*Texto parcialmente publicado no Boletim Um por Um do Conselho da Escola Brasileira de Psicanálise, por ocasião do seu XIII Congresso de membros sobre “O jogo das paixões na experiência psicanalítica”, São Paulo, 12 a 15 de abril de 2019. Publicado na Correio n.82, São Paulo, out. 2019. p. 105-112. Em espanhol em: Factor a, Revista digital de Psicoanálisis de la Nel, Año 1, n. 2, 2019 e em “Dossier: Pasiones contemporâneas”. IN:  El Psicoanálisis, revista de la Escuela Lacaniana de Psicoanálisis, n. 37, Madrid, abril 2021.


[i] Gaffiot, Félix, (1934) Dictionnaire Illustré Latin-Français, Hachette. Disponível em: http://micmap.org/dicfro/search/gaffiot/patior
[ii] Brousse, Marie-Hélène, «Affectés du langage». Editorial, La Cause du désir, n. 93, «Affects et passions». Paris: Navarin Editeur, 2016. p. 4.
[iii] Borges, Jorge Luis, “Ragnarök”. In:  Jorge Luis Borges. Obras completas. v. 2. Buenos Aires: Sudamericana, 2011. p. 194-195.
[iv] Miller, Jacques-Alain,[1986] «Les affects dans l’experience analytique». La Cause du désir, n. 93, «Affects et passions». Paris: Navarin Editeur, 2016. p. 109.
[v] Lacan, Jacques, O seminário, livro 10, A angústia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 198.
[vi] La Rochefoucauld, Francisco de, [1665] Reflexiones y máximas morales.  México: Factoría Ediciones, 2000. Máxima 290 nas primeiras edições; a partir de 1789, faz parte das Máximas suprimidas sob o número 558. p. 90-91.
[vii] Lacan, Jacques, O seminário, livro 3, As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. p. 106.
[viii] Miller, Jacques-Alain. O Ser e o Um (Inédito) Aula del 2/3/2011. Paris: Orientation lacanienne III, 13.
[ix] Souza Leite, Marcio Peter, “L’une-bévue: ¿um nome para o inconsciente lacaniano?”. Aqueronta, n. 16, 2002. Disponível em: http://www.acheronta.org/acheronta16/unebevue.htm
[x] Brousse, Marie-Hélène, “Uma minoria oprimida”. Opção lacaniana on-line, São Paulo, ano 6, n. 16, mar. 2015. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_16/Uma_minoria_oprimida.pdf
[xi] Lacan, Jacques, O seminário, livro 4, “A relação de objeto”. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 432. Utilizamos aqui uma tradução livre da versão em espanhol. El seminario, libro 4, “La relación de objeto”. Buenos Aires: Paidós, 2008. p. 421.
[xii] “Ladeira da preguiça”, música composta por Gilberto Gil em 1971 a pedido de Elis Regina.
[xiii] Miller, Jacques-Alain. Com a colaboração de Eric Laurent. Texto estabelecido por Graciela Brodsky. O Outro que não existe e os seus comitês de ética. Interessante para este ponto a moral política que Miller introduz. Buenos Aires: Paidós, 2005, p.374.
[xiv] Lacan, Jacques. O seminário livro 20. Mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques Alain Miller, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p.130.
[xv] Algo nesta vertente foi abordado por Romildo do Rêgo Barros na discussão onde o presente texto foi lido.
[xvi] Miller, Jacques-Alain. 2011. [Em linha]. Signo de amor. Disponível na página https://www.pagina12.com.ar/diario/psicologia/9-163348-2011-03-03.html. Tradução livre: “Hoje se trata mal às bocas inúteis. Pois bem, é o contrário: as bocas inúteis são muito úteis. Se consagram a se fazer presente no buraco; um buraco com direitos sobre aqueles que os têm, sobre aqueles que estão esgotados. É um convite para que estes se descompletem”.
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