Gabriel Racki – Psicanalista, membro da EOL e da Associação Mundial de Psicanalise
Boa noite, é com enorme prazer que agradeço a José Lachevsky e a toda a Diretoria da Seção La Plata por este convite.
O NÃO-TODO COMO BÚSSOLA
As Jornadas de La Plata e as noites da Diretoria introduzem uma questão que não deve ser tomada como óbvia. Nelas, o termo não-todo, que vem das fórmulas da sexuação para nomear um modo de inscrição do ser falante na sexuação, está junto com o analista, com a psicanálise. Isso é um pulo e, apesar de não ser óbvio, já sugere um fio condutor. Estão investigando (e me alio a isso) e aproveitando ao máximo da convergência entre analista e o modo no qual se nomeia uma inscrição na vida sexuada, que não é o para todos fálico.
Apenas operamos com intuições iniciais a respeito dessa temática, mas isso já soa bem orientado. O ser falante, por tendência, – podemos dizer desde as primeiras formulações de Freud – arma uma defesa contra a representação sexual irreconciliável, ou, nos termos de Lacan, contra o parasitismo fálico. Podemos dizer que o ser falante habita, se estrutura, se sexua, padece, ao ritmo do hackeio do gozo fálico e de sua tendência a engendrar um todo defensivo. Então, é um corolário quase natural que se estude a incidência analítica, não a partir do próprio espaço onde o ser falante monta sua defesa, mas da zona enigmática nomeada como não-todo.
Se exigimos permanentemente de nós mesmos, como comunidade, renovar a posição do analista frente aos discursos contemporâneos, soa com uma lógica muito clara e bem orientada que – o que vem sendo estudado como o habitat subversivo do analista, seja no avesso do discurso do mestre, ou contra a voz imperativa do supereu em relação ao pseudo discurso capitalista –, façamos um esforço para nos aproximar, também, ao não-todo. Como modo de interpelar, de pôr em questão[1] (este é um termo exato do Seminário 20, capítulo VIII) o que se inscreve na função Φx como tendência de fi de x ao todo.
É assim que compreendo o tom da investigação clínica, epistêmica e política que a Diretoria de La Plata está propondo. O não-todo, subjetivamente, terá sua dimensão de delícias, bem como de angústias, mas pretende investigá-lo como um operador clínico e tomá-lo, talvez, como uma bússola crucial do último ensino, para a incidência do analista na clínica, na Escola e na polis.
ALGUMAS VERDADES E INTUIÇÕES INICIAIS
Proponho apresentar cada mínimo viés do não-todo:
- Não tomar o não-todo como moderação: para dissipar intuições rápidas que a gente pode associar ao não-todo, o primeiro é não tomá-lo como uma moderação. O não-todo não deve ser confundido com uma versão mais psicológica de moderação, de temperança, esse é um perigo que foi muito trabalhado por Jacques-Alain Miller[2], por exemplo, no Seminário El partenaire-sintoma. Não confundir o não-todo com incompletude, com totalidade amputada, pois não se trata da incompletude que sempre tem como pano de fundo a ilusão de completude. Não se trata do exercício de dizer aos analisantes: “não-todo, modere-se, não se exceda, não transgrida tanto”, não se trata disso.
- O não-todo implica outro regime que não a castração e o todo: o sentido analítico é outro regime de funcionamento, se tomarmos o funcionamento subjetivo com o motorzinho exceção-todo – como um modo de resumir várias aulas do Seminário 20 – como o parlêtre trata o um incessante fálico, a pulsão de morte, o empuxo ao um, mais por meio da castração atribuída a algum agente, ou efetuada pelo próprio sintoma e seus efeitos de falta e o empuxo à “ficção do todo”, para se defender. O que Lacan[3] abre em Mais ainda, é que a mulher, com sua inscrição não-toda, permite pensar um outro regime.
São intuições difíceis de romper e por isso é que lhes proponho repassa-las em alguma medida. Inclusive, em De la naturaleza de los semblantes [4], Miller se refere ao não-todo como sendo outra coisa que não a falta e enfatiza que, pensar que isso é descompletar o todo, despista. Quando Lacan propõe o não-todo, está em jogo outra coisa que não a falta e seus tampões. Trata-se de uma lógica não edipiana, uma lógica que subtrai a medida que dá a exceção. Outra boa maneira de Miller dize-lo em De la naturaleza de los semblantes[5] é que não-todo implica outro baile, que não o baile falo-castração. A castração calça ao gozo, entretanto, é um calçado que baila mais ou menos com o gozo, pois é um calçado que machuca os pés. Acrescenta, ainda, que para Lacan o sujeito feminino está mal nessa dança, não lhe calça. E conclui com a mesma pergunta que a Diretoria está propondo: até que ponto a teoria analítica deve ser discutida para ser consequente com esse novo regime esboçado por Lacan?
Miller, assim, nos contagia com a pergunta sobre se, provavelmente, com esse novo regime, toda a teoria analítica não deveria ser discutida. É uma questão clínica crucial, o analista cai numa inevitável tentação transferencial, já que somos todos humanos feitos com essa fôrma, a de dançar com o falo-castração. E, diante dos excessos da pulsão, tendemos a nos posicionar no lugar de agente da castração. De fato, creio que experimentamos essa tensão todos os dias com cada analisante, o que confere, efetivamente, toda a relevância à investigação do não-todo.
Como um modo de orientar a política do sintoma, a pergunta que a gente pode fazer-se é: como orientar essa construção do sintoma a partir de um regime propriamente analítico e não de uma reprodução do “regime pai-agente de castração”? A vinheta que será apresentada por Mariano Peiró, possivelmente nos permitirá conversar sobre isso, mas de antemão podemos afirmar: na posição interpretativa, não é o mesmo estar atento à escuta e, deste lugar, propor o veto à ficção defensiva todista; outra coisa é situar-se no não e na proibição.
Continuidade lógica entre a “greta de gozo” e o não-todo: Tomo outra intuição primeira de uma indicação de Miller[6], em Un esfuerzo de poesía, no último capítulo, no tópico intitulado “A era pós-paterna”[7]. Segundo ele, desde O Seminário 17, Lacan vem formulando desvencilhar-se do lastro do pai e a proibição, para orientar o lugar do analista.
A partir daí, o que entranha uma regulação é o próprio funcionamento discursivo do gozo. Há uma greta por onde se perde gozo, que Lacan nomeia de mingua ou entropia, que está no próprio funcionamento. A tramitação do gozo pela cadeia significante tem um efeito de repetição e furo, entranha uma perda progressiva ao funcionar, e não necessita de um pai que proíba. Contudo, no último ensino isso se desloca para o furo do ser falante, ou seja, a ausência de relação sexual. Há, portanto, um fio condutor entre a perda de gozo promovido pelo funcionamento do discurso e a perda pelo furo da relação sexual.
O elo lógico seguinte é que esse furo implica a não relação entre o gozo fálico e o Outro gozo, se existisse. Esse é outro hiato para o gozo fálico. Assim, a genealogia freudiana de Deus se desloca do pai à mulher. Assim, No despertar da primavera[8], a noção pai nada mais é do que um nome possível da Deusa Branca que permanece outra em seu gozo.
De fato, é interessante tomarmos essa linha para indagar o advento da categoria não-todo: a partir do que chama entropia de gozo, no Seminário 17[9], para nomear um modo de tramitação de gozo, sem o pai que proíbe. O não-todo vinculado à Deusa Branca e ao despertar a outro gozo. Logo, situamos por diversos vieses, um tratamento do gozo fálico parasitário mais ligado ao despertar do sonho todista e a certo enodamento de Outro gozo ao funcionamento do sintoma, que à proibição.
O NÃO-TODO COMO OPERADOR DEVE SE LIGAR AO INFINITO
No complemento do capítulo 8 do Seminário 20, encontramos algumas páginas preciosas para interrogar o não-todo e alcançar todo o seu potencial como operador clínico, com uma ênfase crucial: somente adquire essa relevância associado ao infinito. Leio para vocês um parágrafo que está nas páginas 139-140, no qual Lacan aborda algo que trabalharam na última noite, isto é, a diferença entre o não-todo e a exceção. Nele, ressalta que esse não-todo se torna equivalente à exceção apenas quando se trata de um mundo finito, só que podemos nos deparar com o contrário, com o infinito. “Quando digo que a mulher é não-toda e que é por isso que não posso dizer A mulher, é precisamente porque ponho em questão um gozo que, em vista de tudo o que serve na função fálica (Φx), é da ordem do infinito”[10].
Faço um comentário passo a passo deste parágrafo: primeiro, na lógica aristotélica clássica, o não-todo equivale à exceção. Em ambos casos se objeta o universal todo. Lacan faz uma dupla discussão nesses parágrafos, e sempre por razões clínicas, com elementos da lógica mais moderna na qual a exceção não contradiz, mas sustenta o todo. Um segundo passo é a equivalência entre a exceção e o não-todo, que é somente no mundo aristotélico da esfera fechada e do conjunto finito, mas lidamos com outra coisa se introduzimos o infinito. Então, concluímos que Lacan está falando de um não-todo ligado ao conjunto do infinito. Aí, já não é mais o regime fálico do tratamento exceção-todo. O não-todo ligado ao infinito põe em questão um gozo que se inscreve na função fálica.
Eu gosto desse parágrafo pela forma como destaca a definição não-todo de um modo muito operativo, coloca em questão o gozo que se inscreve na função fálica, e diante disso postula, no final do capítulo, que esse não-todo ligado ao infinito tem como consequência uma existência indeterminada. Algo como, se dissermos que não todos os patos são brancos e nos pedirem para situar os patos, a resposta do não-todo, dessa lógica do não-todo, seria: bem, não sei, estará por aí, andará por aí, não é necessário precisar sua existência.
Então, este capítulo termina com Lacan dizendo, nos parágrafos finais, que essa existência indeterminada, é realmente muito mais próxima ao que fazemos na clínica, que não é analítica, a menos que incite a um dizer com valor de verdade. O analisante deve experimentar um certo “toque de verdade” no que diz, mas é sempre uma meia verdade, meio dita, não fechada. Assim, termina este capítulo: fazendo a experiência analítica convergir muito mais ao não-todo, à indeterminação, ao que não fecha, à verdade meio-dita e à mulher, do que à aspiração de produzir uma fórmula algorítmica do analisante.
Para terminar essa questão e passar ao ponto final, quero ressaltar que vou “mal dizer” um pouco: “introduzam um pouco o infinito”, é a orientação clínica que emerge desses argumentos. Em todo caso, se quiser que a experiência clínica não tome a inclinação de uma aspiração filosófica aristotélica, que ela não se torne uma pergunta aristotélica que se enderece ao ser, se quiserem evitar a tendência a se asfixiar numa bolha fechada e totalista do ser, introduzam um pouco de infinito… nos diz Lacan, nestes parágrafos. Depois, se quiserem, se Christian assim o desejar, posso fazer alguma diferenciação entre o infinito atual e potencial, a partir de um texto de Deleuze.
VENTILAÇÃO AFETIVA
Para finalizar, neste quarto ponto vou propor a fórmula de ventilação afetiva que advém da minha dedicação deste ano ao Enapol, ao tema do amor, mais especificamente ao amor de transferência, e, assim, tentar aplicar esse quantor não-todo ao amor, como fundamento do inconsciente. O que o torna muito mais humilde do que qualquer ideia de inconsciente enquanto uma grande estrutura subjacente a desvelar. Logo, a relação de transferência é de afeto e, como tal, não pode ficar achatada somente à redução a uma fórmula mínima do sujeito, nem a amar o outro por seu prestígio, nem como agente da castração. Ao contrário, esse amor é a primeira coisa que Freud captou como o que emerge na transferência, nesse encontro entre os corpos. Nesse sentido, indagamos a orientação não-todo, não apenas em relação ao amor, mas como um modo de repercussão sobre o corpo. Para isso, vou propor-lhes três pontuações finais.
Na última aula do Seminário 21, a aula 15 em 11 de junho de 1974, Lacan[11] define o “não todismo”, com o seguinte comentário: à mulher “lhe fica um pedaço de seu gozo corporal”. Aqui, o afeto não-todo no corpo… [continua alguns parágrafos adiante], “[…]uma mulher conserva um pouco mais de ventilação em seus gozos. Ela está menos furada do que essa relação com o inconsciente que o homem tem”. Nessa mesma aula, ele havia definido a relação do homem com o inconsciente como feita de um saber desarmônico, parasitário, irritante, que estende suas raízes para longe do corpo. Esta última aula culmina com a conhecida explicação de que “quem não está enamorado do seu inconsciente erra”.
Nesse momento, chegamos a essa definição do amor ao inconsciente, ou seja, se enamorar por um inconsciente menos furado. Isso ventila o parasitismo fálico, é um modo de dizer, a experiência do inconsciente não é apenas o tom puríssimo de revelar uma verdade, ela está acompanhada de afetos. Ora, sabemos de afetos muito angustiantes, mas também de gozo, ou regozijo, quando conseguem ventilar um pouco o todo fálico.
No Seminário 24[12], destaco dois pontos muito breves, uma é da aula Palavras sobre a histeria, de 15 de fevereiro de 1977, onde Lacan traz outra definição bem humilde da prática “a questão é saber se, sim ou não, o afeto se ventila com palavras, se algo sopra com essas palavras, que torna o afeto inofensivo, ou seja, que não gera sintomas”[13]. Então, observem que quando se afasta um pouco das pretensões de equiparar a prática analítica à ciência, a definição singela e humilde que fica. A prática consiste em ventilar o afeto com palavras para que não gere sintomas.
Mais adiante, nesta mesma aula, ele afirma: “o que nossa prática revela é que o saber inconsciente tem uma relação com o amor”[14]. Portanto, nossa prática não revela nenhum grande tesouro reprimido, apenas revela uma relação de amor com o saber inconsciente. Assim, ventilar o afeto das palavras, é o que, ao invés das palavras gerarem sintomas, como uma pura maquinaria de substituição pulsional, as palavras se orientem a uma relação de amor ao saber inconsciente.
Finalmente, na penúltima aula desse Seminário, em 10 de maio de 1977, intitulada “O impossível de aprender”[15], Lacan avança mais um passo para explicitar essa relação de amor ao saber inconsciente. Ali, ele retoma exaustivamente o que trabalhou no Seminário 20 acerca do inconsciente como enxame de uns. Um deserto, como “um pacote de uns” que não se dirigem ao Outro, mas afetam o corpo. Como deles se engendra um saber? Essa é a pergunta que Lacan está se fazendo nessa aula. Como, de um pacote de uns que afetam o corpo, como se engendra um saber, diz ali. Então, vem a frase equívoca que dá título ao Seminário “O não sabido que sabe é o amor”. Assim, o amor aparece definido como o que arma uma ligação de saber, disso que são uns sozinhos, não é o amor dirigido ao Outro, como aqui o enfatizou. O amor é como uma faísca que acende uma ligação de saber a partir dos uns sós. Isso produz um “sentimento do Um”, diz Lacan ali, onde há pura multiplicidade e enxame. Marie-Hélène Brousse comenta isso “como uma energia do corpo, sem localização, que capta o ser falante como um em sua existência global”[16].
Aqui, a prática da psicanálise não situa o amor, nem como amor ao Outro que sabe, nem por amar ao agente da castração, nem como um agregado ou algo mais estrutural que o amor. O próprio inconsciente como saber equivale ao amor, o que também pode ser designado como ventilação, “é uma invenção não todista, porque não tem como pano de fundo um saber todo inscrito previamente em algum Outro e porque repercute como gozo no corpo, o gozo ou entusiasmo de se inventar algo, ao mesmo tempo que se veta algum universal”[17].
Assim, para finalizar, o esforço de pensar a psicanálise na era do declínio do semblante paterno, ou conforme Miller chama época do “Um-dividualismo Moderno” (neologismo na contracapa do Seminário 19), implica também deixar-se levar por este esforço de Lacan em aproximar a práxis a um inconsciente que não é uma estrutura prévia, inscrita, de linguagem, nem estruturada pelo Édipo. Mas que o inconsciente é o amor de inventar-se algo com o analista, o amor como gozo dessa invenção, a partir dos traumas da língua. Uma invenção não todista, mais ventilada para viver e se enlaçar ao Outro, de um modo um pouco mais satisfatório.