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O um não está mais aqui. O levaram1

Sérgio de Mattos

A frase que constitui o título desse trabalho parece tão atual que poderia ser tomada como uma possível variação do sintagma “Outro que não existe”, ou da expressão “Modernidade líquida”. Entretanto, ela pode ser encontrada em muitos cantos místicos dos séculos XVI-XVII, cantos que inauguram o relato desta perda do Um, e a história de seus retornos a outro lugar e de outras maneiras.

As características do século XXI parecem propícias à irrupção do gozo feminino e a nos conduzir a uma investigação de seu paradigma: a mística. O declínio dos enquadres tradicionalmente ordenadores de nossa civilização ocidental abrem-se para uma estranha homologia entre a mística, gozo feminino e contemporaneidade, e entre eles se produzem ecos. Em todos estes casos podemos apreciar certa ruína do simbólico, sobretudo se nos acercarmos das configurações místicas dos séculos XVI e XVII, quando se abandona o universo medieval e passa-se à modernidade deixando marcas nas subjetividades e na construção dos corpos.

Neste período, ao mesmo tempo em que a mística se desenvolve e decai na Europa surge uma erótica, não por uma coincidência. As duas se referem a certa nostalgia da desaparição progressiva de Deus como único objeto de amor.

A partir do século XIII (amor cortês), uma lenta desmistificação religiosa parece acompanhar-se de uma progressiva mitificação amorosa. O Uno muda de cena. Já não é mais Deus, mas o outro, e em uma literatura masculina, a mulher. A palavra divina se substitui ao corpo amado, que escapa do mesmo modo que Deus, que se desvanece.

A experiência feminina resistiu melhor à ruína simbólica do que a masculina que considerava “A Presença” como uma vinda do Logos, enquanto a feminina atesta uma presença que se separa do Verbo. O Verbo mesmo deve nascer do vazio que o espera.

Assim era a teologia dos renanos do século XIII e do século XIV. Sobrevive, entretanto, em Juan de La Cruz, um intelectual que se tornou muito escolástico. Mas, já com ele e com Tereza de Ávila (mais “moderna” que ele) e depois dele, o modo de sentir e perceber a experiência toma formas físicas, relativas a uma capacidade simbólica do corpo mais do que uma encarnação do Verbo. Esta maneira de sentir acaricia, fere, recorre a toda gama de percepções, chega a alcançar extremos que são ultrapassados. Deus “fala” cada vez menos, contudo vão se traçando mensagens ilegíveis sobre um corpo transformado em emblema ou em memorial gravado pelas dores do amor. A palavra fica fora deste corpo, escrito, mas indecifrável, para o qual um discurso erótico começa a buscar palavras. Como explica Michel de Certeau, enquanto a eucaristia (lugar central desse deslocamento) fazia do corpo uma efetuação da palavra, o corpo místico deixa de ser transparente ao sentido, se opacifica, se converte na cena muda de um “eu não sei”, que o altera, um país perdido igualmente estranho aos sujeitos que falam e aos textos de uma verdade. Cito Tereza de Ávila:

Dir-se-ia que o Esposo que está na sétima morada, onde reside – fala por um

modo sem articular palavras. Toda gente que está pelas outras moradas – isto é os sentidos, a imaginação e as faculdades – não ousam mexer-se…

Aqui não há capacidade humana capaz de vislumbrar um fenômeno como este,

nem comparação que sirva para explicar.[2]

Tereza vive uma tensão entre o corpo falante – entregue ao Outro para que fale por si – e a ordem da escritura. Entre seus êxtases, saídas de si, sonhos e loucuras e a escritura pedida e controlada por aqueles “homens de grandes letras”, confessores, conselheiros, teólogos, que opinavam sobre seus escritos e que como guardiões encarregavam-se de lhe manter nos limites e lhe ajudavam a voltar à ordem e a lutar contra os desvios. Seus livros são o produto desta luta.

Neste contexto onde Deus para de falar com palavras, mas o corpo fala de Deus, no interior daquilo que pode ser chamado de misticismo ibérico[3], vemos surgir o lugar da ação na vertente mística, em que se destaca o deslocamento dos corpos como possibilidade de compreensão da alteridade, valorizando a dimensão da solidariedade e fraternidade nas relações sociais. Alia-se a uma prática contemplativa um ativismo ético de intervenção no mundo. Os contornos dessa vertente do misticismo sublinham a importância de qualidades intrínsecas excepcionais que singularizam o sujeito na busca da santificação como elementos de transformação do mundo. Foi este misticismo disseminado em regiões do antigo Império Português que como no caso do Brasil, ofereceu uma matriz de organização da subjetividade que combinava práticas de ascese e ação.

No umbral da modernidade, assinala-se um fim e um princípio. Sua literatura especialmente os escritos dos místicos oferece caminhos a quem “pede indicações para perder-se” e busca “como não regressar”.

Chegando a este ponto do quadro acima exposto, caberia daqui por diante colocar algumas questões para avançar.

Por exemplo: Em que medida o gozo feminino e o gozo místico se recobrem? Certamente nem todas as mulheres são místicas, existem também homens místicos, além do mais nem todo gozo feminino é necessariamente lido como um encontro com Deus. Há, entretanto, coordenadas comuns, ligadas a essa instância para o infinito, e o chamado de Deus para este encontro. Instância aqui entendido como insistência, pedido urgente e repetido e foro.

Outras questões: O que as homologias aí presentes podem nos servir para entendermos certos aspectos da contemporaneidade? Haveria hoje também bons caminhos para um digno “perder-se”?

Em que podem servir para entendermos a subjetividade e os corpos em nossa época? Nesse contexto entendendo que a palavra erosão, no sentido grego “morder fora”, pode nos servir para pensar um tempo, que como o nosso, talvez extinga uma erótica, como “arte de viver” o desencontro sexual, ameaçada por um desgaste produzido pelas novas tecnologias do corpo e as políticas identitárias. Podemos dizer que ambas mordem fora da questão crucial: onde está o gozo feminino?

Outra pergunta: Que elementos podemos obter daí que nos sirva para ajudar-nos na direção do tratamento diante deste gozo sem forma, ilimitado que perturba as mulheres e os homens? Neste caso quem seriam estes “homens letrados” de hoje? Estaríamos nós psicanalistas entre eles?

E por fim, será que uma questão importante da nossa contemporaneidade não seria uma variante atualizada das perguntas, que surgem na mística dos séculos XVII-XVIII: O que é um corpo? Onde ele está? Onde está o um?

Enfim, que corpo queremos e como fazê-lo com alguns limites, de maneira a estar melhor nessa dimensão ilimitada, silenciosa, quase muda, talvez murmurante, que aos corpos permanece convocando?


Texto originalmente publicado no Boletim Outras palavras, n.14 do 1 de setembro de 2012 do XIX Encontro Brasileiro do Campo freudiano. Agradecemos ao autor sua amável autorização.

[1] A frase título, eu a retirei excelente livro de Michel de Certeau, “A Fábula Mística. Séculos XVI-XVIII”. Rio de Janeiro. Forense. 2015., no qual através das informações oferecidas por este historiador, baseio este trabalho.
[2] Santa Teresa de Jesus. Castelo interior ou moradas. Paulus. SP. 1981, p. 144.
[3] Gonçalves, Margareth de Almeida. “Misticismo e subjetividade feminina na época barroca”. Teixeira Faustino (Org.) Nas teias da delicadeza, Itinerários místicos. Paulinas. SP. 2006.

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