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O discurso capitalista e o impossível

Fabián Fajnwaks
Psicanalista, AME, membro da Escola de Orientação Lacaniana ( EOL) e da Associação Mundial de Psicanálise

Tomarei o discurso capitalista como variante do discurso do Mestre. Não é que não haja discurso do Mestre. Este faz um retorno, nos últimos tempos, na demanda, por exemplo, de um retorno à soberanía das nações, na Europa, com o Brexit; a ascensão dos líderes neoconservadores, como Trump, Bolsonaro no Brasil, e um personagem como Éric Zemmour aqui na França – mas trata-se de líderes sintéticos, diríamos, inclusive, de semblantes, já que sua potência se encontra emoldurada pelo verdadeiro Mestre que hoje são os mercados. O Mestre manda de maneira limitada, tentando regular hoje os efeitos do fluxo contínuo de capital nas finanças e nos mercados, mas também o fluxo de populações de emigrantes, o fluxo de votos. Isso também quer dizer tentando governar em um mundo no qual tudo flui agora, fluxo que não é outro senão o do gozo, ali onde o que Lacan chamou “discurso capitalista” não é mais do que um circuito que, diferentemente dos outros quatro discursos que estão sendo apresentados nesta Jornada da Seção Bahia, não apresenta uma impossibilidade, quer dizer, um freio ao gozo. Ou seja, não é um verdadeiro discurso, estritamente falando, nos termos de Lacan, já que o que define um discurso, cada um deles, é constituir-se como barreira ao gozo.

Se não há impossibilidade, tampouco há corte, nem perda no discurso do capitalista. Se há falta, é uma falta instrumentalizada para oferecer objetos que não cobrem, ainda que parcialmente, a falta do sujeito. Constatamos que é mais um continuum de gozo gerado pela circulação entre os quatro termos que estruturam o discurso. S1 e S2 não aparecem separados, onde haja um sujeito que possa se deduzir, como por exemplo no discurso do inconsciente – outro dos nomes que Lacan dá ao discurso do Mestre –, do reenvio de um significante ao outro. Os dois significantes que constituem a estrutura mínima para que haja um discurso, S1 e S2, aparecem holofraseados, soldados, formando parte do circuito mais geral a que se agrega o laço do sujeito barrado ao objeto (a), o que dá sua formalização ao fantasma fundamental e à participação do sujeito, a partir desse fantasma, nesse circuito. Essa solidificação, esse congelamento, é o que dá o estilo de debilidade mental do sujeito nesse discurso: lembremos que não temos muita opção entre a debilidade mental e a loucura, como assinalava Lacan.

Os zumbis, que aparecem no início desse magnífico teaser que abre esta Jornada e esta conferência, e que agradeço a Marcela Antelo, evocavam essa dimensão de debilidade mental presente no sujeito, tão contemporânea, que o cinema, por exemplo, o último cinema americano, vem explorando nos últimos anos. Não se trata tanto da presença da mortificação que o significante introduz no sujeito – um fato de estrutura –, mas do redobramento dessa mortificação nos mortos-vivos que são os zumbis, que são os sujeitos contemporâneos, justamente por essa dimensão de debilidade mental que produz a solidificação do S1 e do S2, e certamente a foraclusão do sujeito que justamente essa relação produz.

A debilidade aqui é de estrutura: é o próprio discurso que estrutura um sujeito que não necessita falar para aceder a algo, a uma parte de seu ser, que acredita encontrar no objeto que vem complementar sua falta em ser ao nível do seu fantasma fundamental, outorgando-lhe por aí algo de seu gozo, mas certamente nada de sua verdade.

Existe, poderíamos dizer, no discurso do capitalista um uso de S1 e S2 separados, mas em nenhum caso no laço que conhecemos como produzindo um sujeito no intervalo entre ambos, o que nos permite apontar que essa produção de holófrases gera, então, uma foraclusão do sujeito. O S1 pode ser instrumentalizado para designar comunidades identitárias, o que dá a ação na contemporaneidade às identity politics, políticas identitárias, no social, nas quais se busca fazer reconhecer uma especificidade segregada, ou ainda autossegregada, que busca ser reconhecida como tal. É isso o que as comunidades de gozo buscam hoje fazer valer, colocando na frente delas um S1 que recobre, muitas vezes – não sempre, mas muitas vezes –, um modo de gozo particular:

S1
_________

(a)

Elas reconhecem aqui o valor da insígnia, elucidado por Jacques-Alain Miller de maneira magistral, em seu magnífico curso Ce qui fait insigne[1]. As comunidades LGBTQIR+, porque novas siglas se acrescentam cada dia, como sabem, nesse enxame de significantes-mestres funcionam desse modo. As reivindicações woke também se inscrevem nesse registro, no qual o que se reforça é a identificação do sujeito a um S1 identitário que exige ser reconhecido como vítima. Não estou dizendo que não haja vítimas, mas que o que nos interessa aqui é acima de tudo o uso que se faz do S1 no social. Também encontramos uma instrumentalização que se faz do S1 no mercado, pelo mercado, sob a forma, por exemplo, dos produtos étnicos, destinados a uma comunidade em particular, juntamente com a linguagem publicitária que também manipula a linguagem, reduzindo-a justamente ao seu caráter instrumental.

Do lado do uso do S2, temos o chamado saber científico, muitas vezes produzido por um discurso universitário que aporta sua legitimação aos fenômenos da segregação que têm lugar com o apoio da ciência dentro do próprio discurso capitalista. Como vocês sabem, esse saber universitário, no lugar do agente nesse discurso, se apresenta amputado do significante-mestre que lhe dá sua consistência – o significante-mestre passa ao lugar da verdade no discurso universitário, como devem estar trabalhando –, o que fez Lacan dizer no seu seminário De um discuso que não fosse semblante que “O que é real é aquilo que faz furo nesse semblante, nesse semblante articulado que é o discurso científico”[2], desde que falte nesse discurso o significante-mestre que funciona ali como um real que o saber no discurso universitário escamoteia.

As diferentes crises (econômicas, sociais, políticas e climáticas) estão inclusive inscritas nesse retorno do real, que deve ser distinguido em cada caso, cada real, frente ao rechaço pelos estudos científicos que, na forma de um saber acumulado sob um modo cada vez mais estatístico, quantitativo, é incapaz de prever qualquer uma dessas crises que temos conhecido ultimamente no Ocidente.

Os gadgets vêm para complementar esse saber, e é ali que intervém a linha que vai no discurso do capitalista do sujeito ao objeto, uma vez que a adição a cada um dos múltiplos gadgets existentes no universo encontra seu fundamento no fantasma de cada um dos seres falantes, quando esse fantasma existe.

As tecnociências propõem tudo o que é necessário para extrair essa verdade do ser falante, sem palavras. Ali é onde intervêm o scanner e as promessas do cérebro considerado como um sujeito suposto ao saber, como Éric Laurent dizia divertidamente, há alguns anos, com a fascinação que exerce, hoje, a imagem, algo que também estava presente no formidável teaser do começo.

Por esse motivo, por essa fascinação, os seres falantes podem ser liberados da necessidade de ter que passar pelo desfiladeiro do significante e pela palavra para aceder ao objeto de seus desejos. A debilidade mental também consiste em acreditar que o saber dos seres falantes poderia se acumular em Big Data sob a forma de dados criptografados em linguagem binária e que o trans-humanismo viria a consagrar essa passagem do saber a uma escrita algorítmica, que seria delineada em um neo-Grande Outro de síntese, um grande Outro sem equívocos, já que o cifrado algorítmico não conhece erros, ou acidentes, exceto no caso de algoritmos usados no deep-learning, os algoritmos que podem aprender. Ou que sonham, já que também nos falam de algoritmos que podem sonhar.

Clínica

Passemos brevemente às consequências clínicas dessa produção do mais-de-gozar pelo discurso capitalista. Poderíamos evocar aqui, no lado das neuroses, a acentuação e a expansão do que Lacan chamava, no seminário sobre Joyce[3], de histerias rígidas. Histerias sem pai, sem que justamente o laço entre S1-S2 se recorte em um sintoma para articular um desejo. Trata-se do nó rígido, um nó sem um quarto nó, que sustenta a neurose histérica, determinando-se assim do lado de uma articulação de gozo, mais do que como uma verdadeira questão em relação ao seu desejo. A determinação metonímica, como um desejo metamorfoseado em gozo, não encontra já um significante para se fixar como metáfora, no nível de seus sintomas, uma vez que não apresenta sintomas que não seja a própria deflação do desejo, deprimido, deflacionado, murcho, e que às vezes, um único encontro com o analista consegue reacender, mais além de um significante em particular que permite interpretar a posição do sujeito.

Podemos evocar aqui um livro muito bonito de Philippe Sollers, escritor francês e amigo de Lacan. Ele conta em seu belo livro sobre a amizade que teve com Roland Barthes o quanto o próprio encontro com Barthes, muitas veces, lhe bastava no dia para acender seu desejo[4]. Talvez pudéssemos aplicar a mesma reação no encontro do sujeito de histeria rígida com o analista.

Há um aumento no número de sujeitos que se apresentam no lugar de dejeto, em que o discurso melancólico de autoreprimenda e culpabilidade não acompanha necessariamente essa posição. Podemos verificar que o desmantelamento de instituições que permitiram que esses sujeitos encontrassem, no passado, um lugar de inscrição no social, na forma de um Outro que os abrigava e lhes dava um mais de existência, produz essa dejetização crescente em muitos sujeitos. Sujeitos que encontramos em instituições de saúde, centros de tratamentos médico-psicológicos, centros de tratamento de dependências, e os Centre psychanalytique de consultations et de traitement (CPCT), onde eles existem. Certamente, a queda da ordem simbólica tem contribuído para essa dejetização progressiva, assim como a perda de sustento do Estado a essas instituições; ali onde o Estado ainda está presente, já não se sabe por quanto tempo permanecerá. Senão é na errância, nas ruas das grandes ciudades, onde encontramos esses sujeitos, no metrô, jogados ao seu destino e vendo acentuado seu status de identificação ao objeto (a). Fato que as drogas de diferentes tipos e o álcool vêm reforçar esse estatuto, o que às vezes permite que eles se encontrem com instituições sanitárias e que encontrem a psicanálise ali onde ainda há analistas. Certamente, o próprio sujeito encontra este lugar de objeto dejeto, e ainda que seja necessária certa estrutura psíquica para fazê-lo, não se pode negligenciar que é o próprio discurso que o empurra a ocupar esse lugar de dejeto, ali onde todo individuo é “um proletário, já que não tem com que fazer laço social”, como já anunciava Lacan em sua conferência “A terceira”.

Mônica Hage lembrava justamente que cada discurso é uma maneira de fazer laço social em torno a um impossível, e o que é novo no discurso capitalista é que não há laço social. O laço social se dissolve pela presença disto que todos os discursos excluem: a impossibilidade, presente e gerada pelo próprio discurso capitalista.

O último objeto a ser consumido é o próprio sujeito, por essa circulação nos lugares do discurso capitalista. “O ser humano não é uma mercadoria”, protestam os alterglobalistas, justamente porque podem facilmente, e às vezes muito rapidamente, encontrar-se nesse lugar por um fato que faz ao discurso capitalista, em sua renovação pelo neoliberalismo, que põe o sujeito como sendo o único responsável pela possibilidade ocasional de se franquear uma via.

Excesso – saciedade

Nesta clínica que nos põe em face aos fenômenos nos quais não prevalecem nem o ponto de estofo, nem a metáfora, mas sim arranjos instáveis com a livre circulação de gozo, onde as adições de diversos tipos são como o paradigma das manifestações de gozo sem a “envoltura formal”, lembremos aqui do termo que Lacan usava para falar do sintoma. Nos confrontamos com um par que situa o problema entre dois polos – o do excesso e o da saciedade, e o par da falta e a privação. Trata-se de uma clínica do mais ou do menos, já que o gozo não encontra outra limitação senão, quantitativamente, não tendo mais a mediação simbólica que permite o significante para encontrar um semblante.

As manifestações clínicas das neuroses

As mesmas manifestações clínicas da neurose, que ainda seguem existindo, ultrapassam o estrito marco do significante para acentuar a dimensão do empuxo ao gozo que o Supereu ordena. Nelas, particularmente em algumas formas de histeria nas quais o registro do sintoma não é o que está posto em primeiro lugar, o que aparece é uma deriva do gozo que mascara a dimensão do desejo, que continúa a estar presente, mas, em segundo lugar, um desejo ao qual o sujeito renuncia, evita ou acentua, em uma ênfase que às vezes se transforma em hipomania, na qual se põe em evidência um estado de leve euforia, uma espécie de torrente de pensamentos, sem corte e sem verdadeira articulação, uma verborragia excessiva e uma espécie de autoestima ou grandiosidade excessivas que viram uma espécie de restituição narcisista por parte do sujeito frente a falha do ponto de estofo poder articular um semblante para o gozo.

Certamente, nesse ponto podemos evocar os chamados transtornos de déficit de atenção também se localizam nesse registro, em que o sujeito, especialmente as crianças, para as quais o DSM nas suas distintas versões, sobretudo as últimas, reconheceu esses sintomas, está em uma posição em relação direta ao fantasma materno, sem a mediação paterna que permite apaziguar as coisas. Seu corpo da criança fetichizado, “saturando a falta da mãe”, como escreveu Lacan em “Nota sobre a criança”, traduz essa posição de tomada direta do gozo da mãe sobre a criança. “O pai em fuga”, ou o pai presente, mas degradado no discurso da mãe, por ser um homem caído, sem desejo, “um pai que não assombra”, (é-pater) como o equivocava Lacan. São figuras contemporâneas que acentuam essa posição da criança situada em relação direta com o fantasma da mãe, na posição de objeto de gozo e já não de desejo, do lugar fálico do desejo.

Observemos que nessas posições é um mais-de-gozar que está em jogo, e a questão é: como tratá-lo? É aqui onde o excesso pode esgotar-se por si mesmo, pelo tédio ou pela saturação. Por levar o sintoma ao paroxismo de esgotar-se no circuito do seu gozo, o sujeito pode encontrar uma invenção, algo novo que lhe permita abandonar a posição de gozo em que se encontra. Por esgotamento, por saturação, por saciedade, como outras funções nas quais o gozo está em jogo. Quando Miller falava anos atrás em fazer judô com o sintoma, acho que ele estava falando de algo assim: vencer o sintoma levando-o ao paroxismo, quase o seu ponto final, para produzir algo novo, buscando vencê-lo com sua própria força. É nesse paroxismo que pode aparecer um buraco, uma falta, que o continuo do gozo neste discurso recobre. A questão é poder encontrar o buraco, a falta, a linha de fuga que o gozo vem cobrir. Podemos evocar aqui as próprias terapias comportamentais que se inscrevem neste movimento também buscando levar o sintoma ao excesso, ao cansaço, reforçando-o, mas justamente, o problema dessas terapias que utilizam o mesmo mecanismo de levar o gozo ao fastio mas produzindo mais do mesmo daquilo que se trata de evacuar.

O saber da poeta, da grande Clarice Lispector, nos indica algo disso quando nos fala de produzir a falta, o furo, quando nos conta como encontrou a via da inexpressividade:

[…] como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio[5].

Saber encontrar a linha sub-reptícia então. Abrir um intervalo aí onde há um continuo. Poder encontrar esse espaço, esse buraco, que venha a perfurar o contínuo do gozo.

A fluidez é um significante-mestre desse fluxo de gozo que não encontra ponto de estofo, mas apenas nomeações e enodamentos. A fluidez em seu contínuo, sem cortes, sem escansão significante, evoca a clínica continuísta de Lacan, e poderíamos adiantar que seu último ensino está bem situado para responder aos fenômenos que essa clínica nos apresenta. A fluidez de gênero, certamente, que os sujeitos trans colocam em evidência, e distingo nesse nível os sujeitos transgêneros dos transexuais, mas também a fluidez que outros sujeitos “trans”, como os transespécies, que buscam hibridizar-se com espécies animais, ou o próprio delírio de trans-humanismo, a ideia da transmissão de todo o saber humano ao Big Data, num futuro próximo, são nomes dessa fluidez do gozo que atestamos no discurso que examinamos, onde não há freio à impossibilidade, de onde saem esses “fantasmas inéditos” como Lacan disse em “Televisão”, evocando: “No desatino de nosso gozo, só há Outro para situá-lo, mas na medida em que estamos separados dele”[6]. Já estamos nesta época que Lacan vaticinava em 1974.

Localizo o sujeito transgênero como aquele que tenta encontrar um arranjo com um gozo liberado da borda fálica, que lhe dava uma borda a esse gozo “não-todo”, como Lacan localizava até o seminário Mais, ainda. Como afirma Jacques-Alain Miller em O Ser e o Um, o gozo feminino é “o gozo como tal”, e a sua extensão mais além do não-todo a que a borda fálica o deixava acantonado em Mais, ainda, leva a nomeações de tipo RSI e enodamentos que podem ser abordados a partir da lógica borromeana, presente no último ensino de Lacan. Até o limite da intervenção cirúrgica a que os sujeitos transexuais procedem, podemos deixar a possibilidade aos sujeitos que vivem sua relação com seu corpo e com o gozo, na possibilidade de encontrar o arranjo que lhes convenha com esse real. Recordemos aqui que Lacan dizia, em 9 de abril de 1974, que “[…] o ser sexual só se autoriza por si mesmo e por alguns outros”[7], como, por exemplo, o registro civil, sem saber até que ponto a autorização do registro civil seria necessária para proceder a uma mudança de gênero para aqueles que não vivem de acordo com seu próprio corpo.

Há também o gozo em falta ou ainda, como muitos sujeitos o praticam, uma privação de gozo, para subtrair o mais-de-gozar presente como excesso na civilização atual. Uma subtração de gozo pode ser uma forma de subtrair-se ao excesso de gozo que reina hoje na civilização, um pouco ao modo como o faz a anoréxica, que, frente a um excesso de gozo, subtrai-se ela mesma, ao preço do sacrifício de seu corpo sexuado, para quitar um pouco de gozo ao que ela experimenta como algo em excesso. A questão aqui, acredito,  é como subtrair um mais-de-gozar sem cair na privação, ou em uma dietética do gozo, quando este já não encontra a mediação simbólica que permite limitá-lo. O analista descarita (décharite) o gozo, Neologismo de Lacan, evocando o santo em “Televisão”, ao contrário do rico, que o acumula. Somente assim se pode sair desse circuito: colocando o pst, a peste, como Lacan enuncia em Milão em 1974 onde mais fala do discurso capitalista, através desse funcionamento, para bloqueá-lo. A peste freudiana.

O capitalismo e o amor

O capitalismo “[…] deixa de lado o que chamaremos simplesmente, de coisas do amor”, diz-nos Lacan em “Estou falando com as paredes”[8]. Ele não quer saber nada no sentido da Verwerfung. À sua maneira, e como o discurso do Mestre, do qual é uma variante, quer que as coisas continuem funcionando. O amor como encontro contingente vem bloquear esse funcionamento, abrindo um intervalo para o sujeito no continuo de gozo que circula entre os quatro termos. Os amantes se subtraem do circuito, abrindo espaço para outra coisa que não serve ao circuito em jogo.

A própria psicanálise com a transferência, esse novo amor que ela inventou, sem ser o reverso desse discurso, que não tem reverso justamente porque circula em círculo, vem como que para abrir uma brecha nesse circuito, abrindo, como no encontro amoroso, um espaço para Outra coisa que racha, fissura, escande o gozo, dando lugar ao sujeito ali onde esse circuito o foraclui.

Dizer que o capitalismo foraclui as coisas do amor significa que, em sua aversão à perda ele produz algo que, por exemplo, uma socióloga, Eva Illouz chamou de “não amor” (Unloving). Em um livro muito interessante, afim do tema que nos interessa, —a pesar de não abordar a foraclusão do amor que Lacan menciona, — chamado La fin de l’amour[9], o não amor, ou desamor, está ao serviço de não perder, não amar para não sofrer a perda. Em continuidade com o “amor líquido” de Z. Bauman, as relações onde o fim está como programado, uma espécie de demanda de amor prevenida, no eco de algo como a “obsolescência programada” dos objetos tecnológicos — essa programação que faz com que os telefones celulares e computadores que nos empurram a consumir sejam obsoletos em pouco tempo.

O rechaço por iniciar um relacionamento amoroso, também existem os não-sexo, —as comunidades no-sex, jovens de trinta anos que recusam qualquer relação sexual — anoréxicos do amor. Também há a passagem metonímica de um relacionamento a outro, que Bauman já havia desenvolvido, que introduz um mercado de relações sexuais, não apenas um mercado libidinal, mas todo um comércio em torno do amor que a socióloga Illouz remonta aos anos 1940 em Hollywood e às comédias de recasamento, como já havia estudado Stanley Cavell[10] em seu conhecido e divertido livro, —comentado por Eric Laurent no curso de Miller.

Assim acontece um condicionamento que dá um formato de como deveriam ser as histórias de amor, um pouco à maneira da proposta da pornografia hoje, um formato de como as relações sexuais deveriam ser. O ambiente romântico, a disponibilidade dos amantes e toda uma bateria de objetos que deveriam fazer parte da atmosfera do encontro amoroso, com o acréscimo de especialistas em casos amorosos que intervêm quando algo não funciona, coachs ou conselheiros amorosos, sexólogos: hoje existe todo um mercado construído em torno do amor e seus sintomas. Isso sem falar dos sites de encontro que foram criados, verificando que o laço social hoje está estruturado em torno das redes sociais, o próprio laço social é a rede social sendo que no capitalismo não há laço. O capitalismo dissolve o laço social, atomiza-o: vimos isso com o congelamento de S1 e S2, onde o que se verifica é um isolamento progressivo, em um movimento que conduz a uma esquizofrenização da relação, parcial, fragmentada, já  sem Outro.

Illouz fala de relações negativas, em que o não-amor e o fim programado da relação procuram introduzir a falta ali onde o próprio encontro se encontra saturado pelo gozo. Eu a cito: “A sexualidade e o amor constituem hoje o terreno perfeito para reproduzir o capitalismo de consumo e estimular a aptidão à autonomia e a independência exigidas e praticadas em todos os lugares”[11].

Entrar, comprometer-se com uma relação amorosa, implica, certamente, uma renúncia à autonomia, e um efeito, digamos, de castração, de falta, que não condiz muito com o discurso que enaltece a autonomia e os “self made men and women“. Observemos que este é o mesmo efeito de falta que evocamos há pouco, sobre como a análise pode cortar o continuo do gozo, introduzindo uma nota musical entre duas, um grão de areia entre dois, ou outra cifra entre 1 e 2, para voltar à maravilhosa Clarice. Nessa perspectiva, entrar em análise e comprometer-se com uma relação amorosa implica, muitas vezes, em ambos os casos, uma renúncia ao gozo. Ceder o gozo ao qual o sujeito se apegava para condescender a outra coisa, Outra coisa que indica o lugar do desejo. Nesse caso, verifica-se amplamente o aforismo de Lacan no Seminário 10, “o amor permite ao gozo condescender ao desejo”[12]. Em ambos os casos, temos uma cessão do gozo, o que nos permite lançar luz sobre a proposição de Lacan sobre o santo que “descarita” o gozo: ele não faz caridade, mas sim desperdiça o gozo, fazendo-se o próprio dejeto, o que permite que seja tomado, como o analista, fazendo semblante do objeto (a), de ser tomado como causa pelo desejo de um sujeito. O santo, como o analista, é o desperdício do gozo, este segundo, tendo se desprendido de seu laço fantasmático com o objeto (a), pode, somente a partir daí, encarnar esse objeto para outros, o que indica, para o Lacan de “Televisão”, que a saída do discurso capitalista serpa por essa via, o que não será um progresso se é apenas para alguns. Ele não propõe então a criação de um partido político de analistas, para o “descaritamento do gozo”: essa ação não pode ser coletivizada, exceto por meio de uma análise um por um. Lacan não acredita, neste ponto, em um progresso, pois essa via é limitada. Mas, vamos sublinhar, deixa aberta uma saída, onde não é tanto o amor, mas a relação com o gozo o que permite atravessar o que se apresenta como um horizonte intransponível devido à sua estrutura contínua, sem cortes.

Lacan afirma enigmaticamente naquela conferência em Milão, em 1974, que o discurso capitalista, se consome a si próprio e que está destinado à sua destruição. Não fala de “regulação”, nem de distribuir melhor as riquezas, pois, como já sabem, não acreditava na “justiça distributiva”. Mas ao fazer do capitalismo um discurso, permite deslocar a questão da perspectiva econômica – não sabemos para onde iríamos se o capitalismo fosse destruido, se surgisse um sistema econômico pior, por exemplo, embora seja difícil ao mesmo tempo imaginar algo pior – à estrutura do discurso, e por aí, vislumbrar uma saída mais fácil, talvez, do que as muitas tentativas atuais dos economistas em teorizar mecanismos que permitam uma distribuição mais justa da riqueza.

Lacan acreditava pouco no progresso e se perguntava se a psicanálise não seria um sintoma que, como muitos outros sintomas, se extinguiria, se a Ciência, cúmplice íntima do discurso capitalista, conseguisse varrer o real da superfície do universo. Se essa é uma pretensão da Ciência, é menos certo que terá sucesso, que conseguirá eliminar “a linha sub-reptícia” que Clarice apontava, embora se possa crer no contrário, e embora ela pretenda fazê-lo acreditar. Talvez, para além da própria prática analítica, que, marginalizada nas instituições de saúde e nas universidades se encontra cada vez mais isolada, tal vez seja o discurso do analista que sobreviva ao discurso da avaliação, da performance e, hoje, o da extensão a cada vez mais domínios da vida, à digitalização do saber, em seu cifrado algoritmo. Se “antes da psicanálise, o discurso do Inconsciente se estendia no amor”, como afirma Lacan; se a psicanálise como prática viesse a limitar-se, marginalizando-se, o Inconsciente talvez encontre outros lugares para se manifestar.

Talvez o discurso do analista se desloque para outros lugares: vemos esse fenômeno na Literatura, por exemplo, onde a palavra escrita dá a ler, às vezes, com os bons escritores, um sujeito, o que nos prende à leitura, nos encantando. A ficção vem envolver o real, declinando-o, articulando-o, tal como o faz a palavra de um analisante em uma análise, e ainda depois nos testemunhos de passe dos AE da escola. O que ali se escreve do gozo nos interessa porque testemunha da maneira como um ser falante ou um escritor se arranja com sua parte de gozo inassimilável.

“Da minha parte, cogito loucamente para que haja novos santos assim”[13], disse Lacan em “Televisão”: seguindo seu ensino, tentamos estar à altura de fazer a psicanálise existir para contrabalançar os efeitos funestos da foraclusão do sujeito do discurso do capitalismo e da ciência. Por quanto tempo ainda? Enquanto pudermos: o lema de Antonio Gramsci, que podemos fazer nosso, permanece crucialmente atual – pessimismo das estruturas, otimismo da ação.

Tradução: Milena Nadier (Associada IPB)
Revisão: Marcela Antelo

Conferência pronunciada durante a XXV Jornada da Seção Bahia da EBP e XXI Jornada do IPB, em 17 novembro de 2021. Agradecemos ao autor pela amável autorização.

[1] MILLER, Jacques-Alain. Los signos del goce. Buenos Aires: Paidós, 1998.
[2] LACAN, Jacques. O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. (1970-1971) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. p. 27.
[3] LACAN, J. O seminário, livro 23: O sinthoma. (1975-1976) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 102.
[4] SOLLERS, P. L’amitié de Roland Barthes. Paris: Gallimard, 2015. (Fiction et Cie.)
[5] LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964. p. 98.
[6] LACAN, Jacques. Televisão. (1973) In: LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 533.
[7] LACAN, Jacques. O seminário, livro 21: Os não-tolos erram. (1973-1974) Aula do 9 de abril de 1974.  (Inédito)
[8] LACAN, Jacques. Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011. p. 88.
[9] ILLOUZ, Eva. La fin de l’amour. Enquête sur un désarroi contemporain. Paris: Seuil, 2020.
[10] CAVELL, Stanley. La comedia de la felicidad: la comedia de enredo matrimonial en Hollywood. Buenos Aires: Paidós, 1999.
[11] ILLOUZ, 2020, op. cit., p. 319.
[12] LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: A angústia. (1962-1963) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 197.
[13] LACAN, 1973/2003, op. cit., p. 519.

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