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Nora, Joyce e o seu saber-fazer com a arte

Liliane Sales

Se, como nos ensinou Lacan, o amor é que faz suplência à inexistência da relação sexual, “isso significa que o amor toma seu elã a partir de um impossível”, como afirma Pierre Naveau[1]. Assim, de um lado está a perversão masculina; do outro, o enigma feminino. A parceria se dá por um esforço de poesia e que pede coragem. Coragem que leva a um encontro de sintomas e afetos.

O primeiro encontro de James Joyce e Nora Barnacle se fez de maneira despretensiosa: com seus olhos míopes, Joyce vem a descobrir a mulher essencial para a sua arte. Nora é uma mulher jovem, de silhueta elegante, ereta, cabelos castanhos e olhos azuis de olhar translúcido e adoravelmente ignorante.

“Quando ele se aproximou dela, ela lhe respondeu confiante para incentivá-lo a continuar falando […] e por seu sotaque cantante, ele sabia que ela vinha de Galway.”[2] Esse destaque da beleza de Nora e do seu sotaque cantante está no texto de Dalila Arpin. A orelha e a luva – Nora entra pelos seus olhos, ouvidos e, por fim, pelas mãos que o masturbam no primeiro encontro do casal. É então capturado imediatamente pelos elementos olhar e voz.

Desde o início da sua escrita, Joyce desejava ser um artista e fazer um nome, como forma de compensar o pai que nunca lhe serviu como função. Um modo de sustentar uma imagem, seu ego, como função muito particular, passa pela sua arte, sua escrita e também seu desejo em se tornar músico. Seu livro música de câmara tinha a pretensão de que seus poemas fossem musicados.

Nora, em desabafo, escreve para sua irmã e se queixa de viver com um homem débil, que os leva a uma ruína financeira, pois sua escrita é obscena e fora de sentido. Gostaria mesmo de ter se casado com um músico. Então, Joyce lhe escreve uma carta a Nora e descreve seu corpo como “musical, estranho e perfumado”. A musicalidade está na escrita de Joyce, e podemos pensar que a relação do casal passa pela sonoridade. Dalila destaca: “seu acento que, alguns qualificam de refinado, sutil e aristocrático, tem um encanto de uma cadência lírica, de uma entonação musical […] ao longo da convivência, seguem o ritmo da sua secreta harmonia tonal.”[3]

Lacan se interessa pela particular relação de Joyce e Nora e diz: “é uma estranha relação sexual”[4]. Se há sinthome, há relação, por mais estranha que seja. ‘Nora-Guante’ lhe cai como uma “luva”, que pode vestir tanto na mão direita como na esquerda, fazendo contorno. Ele escreve sempre com ela por perto, necessita do seu olhar sobre ele. Mesmo a depreciando por vezes, Joyce faz de Nora sua mulher eleita, única. A relação com sua mulher tem uma função estabilizadora?

Pela primeira vez depois de cinco anos de relação, Joyce volta a Dublin e se desestabiliza na ausência da esposa. Passa a lhe escrever passagens dos seus fantasmas eróticos e suspeita de infidelidade de Nora. De maneira delirante, passa a acreditar que Nora o traíra com seu amigo nos dias em que não estava com ele logo que se conheceram. Passa a responsabilizá-la em cartas agressivas e ela nunca lhe responde. Joyce vai ao encontro de um antigo amigo e fala do que o perturba nesse momento. Seu amigo Byrne lhe diz que essa história de um envolvimento de Nora com outro homem é uma enorme mentira, uma intriga para prejudicar o casal. Joyce se sente aliviado, escreve a Nora uma carta amorosa, lhe transcreve um dos seus poemas escritos antes de conhecê-la. E ela finalmente lhe responde dessa vez, apontando que havia lido o fragmento de “música de câmara”. Reconciliam-se e reforçam esse ponto de estofo que laça o casal, a saber: a paixão de ambos pela música.

Dalila conclui: “tanto sua mulher, como sua escrita, haviam permitido sujeitar o nó que falhou para remediá-lo.”[5] E o neto do casal, chamado Stephen, diz que “sem ela, ele não teria sido nada, não teria escrito nenhum dos seus livros”[6].

Lacan aponta que a escrita, para Joyce, funciona como o quarto nó, como sinthome, e que Joyce descrevia a si mesmo caminhando pela cidade com “olhos e orelhas prontos para receber impressões”[7]. Nora o captura pelo olhar, por sua voz cantante e anima sua arte. Seria ela uma forma de suplência?

 

Salvador, setembro de 2022.
MAGNELLI, M. De jovem a artista: epifanias e soluções de James Joyce. Salvador XXII jornada da EBP – Bahia, 2017.

[1] NAVEAU, Pierre. Encontro – do impossível ao contingente. In: NAVEAU, P. O que do encontro se escreve: estudos lacanianos. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017. p. xx.
[2] ARPIN, Dalila. Parejas célebres: lazos inconscientes. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2018. p. xx.
[3] Ibidem, p. xx.
[4] LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: O sinthoma. (1975-1976) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. p. xx.
[5] ARPIN, 2018, op. cit., p. xx.
[6] SCHEJTMAN, F. Philip Dick con Jacques Lacan: clínica psicoanalítica como ciencia-
ficción. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2018. p. xx.
[7] JOYCE, J. Retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. xx.

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