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ERÓTICA E FEMININO[1]

Ana Lúcia Lutterbach-Holck (AMP/EBP)

É possível dizer que o erotismo
 é o consentimento da vida até a morte[2].

A psicanálise, apesar de ter produzido uma importante mudança de perspectiva sobre o amor e a sexualidade, não foi mais longe na investigação de uma erótica e o sinal mais patente desta carência seria o problema da feminilidade. Com essa observação, Lacan[3] propõe uma disjunção entre erótica e sexualidade e situa a feminilidade como sinal dos limites de uma investigação sobre a erótica.

Nos dicionários[4] consultados não se encontra o substantivo “erótica”, apenas o adjetivo «erótico», relativo ao amor físico e à sexualidade.

A Erótica na antiguidade definia, segundo Foucault[5], o que deveria ser a relação de um homem com um rapaz, em referência a Eros, para atingir a mais bela e mais perfeita forma e determinar qual uso deveriam fazer de seus prazeres. A erótica platônica era masculina e prevaleciam as relações entre Eros e verdade. O sexo, apesar de secundário, devia ser praticado entre aqueles que se ocupavam da verdade, e o amor era a estratégia, a via para se alcançar este saber.

Os gregos dispunham de um vocabulário para designar práticas de prazer precisas mas não havia uma categoria geral que incluísse todas as práticas. Não existia um substantivo que agrupasse em uma noção comum o que poderia haver de específico da sexualidade masculina e feminina, mas distinguiam-se claramente dois papéis, o de sujeito e o de objeto, aquele que exerce a atividade e aquele sobre o qual ela se exerce.

As mulheres ficavam à parte, se ocupavam de outras práticas, não temos as palavras veiculadas por elas ou entre elas, porque as palavras femininas não produziam conhecimento, não tiveram registro.

Nos primórdios do cristianismo realizam-se modificações fundamentais que, em muitos aspectos, regem a moral atual, mas o termo ‘sexualidade’ só surgiu no início do século XIX, como observa Foucault[6].

Até Freud, as necessidades sexuais estavam ancoradas na suposição de um «instinto sexual» correlato ao instinto animal, cujo objeto para cada sexo seria o sexo oposto e o objetivo, a reprodução. Ao propor o termo «pulsão sexual», ele subverte essa ideia afirmando que não há nada pré-escrito ou instintivo nas relações entre a satisfação, o objeto e os fins da sexualidade. Em “Os três ensaios sobre a sexualidade”[7], ele faz uma distinção entre o sexual, o genital e a reprodução e inclui na vida sexual a função de obter prazer em todo o corpo, elaborando uma teoria da sexualidade inédita, inteiramente calcada em sua experiência clínica.

O interesse exclusivo de um sexo pelo sexo oposto não é um fato evidente em si mesmo, tanto quanto a escolha pelo objeto do mesmo sexo. A escolha de objeto não é natural, a pulsão não está determinada pelos atrativos do objeto, nem tem como objetivo unicamente, a reprodução e a união sexual. Algumas práticas preliminares[8] que se situam no caminho da cópula, como tocar e olhar, são reconhecidas como objetivos sexuais.

Ao contrário da vida erótica da antiguidade, como observa Freud[9], onde se glorificava a pulsão e o objeto ocupava um lugar secundário, há entre nós uma valorização do objeto e a atividade pulsional é desprezada. No entanto, a origem da pulsão não está determinada pelos atrativos do objeto, estes têm uma importância secundária, o primordial e constante na pulsão é o vaivém em que ela se estrutura, como observa Lacan no Seminário 11[10].

Na obra freudiana, apesar do amplo desenvolvimento de uma teoria da sexualidade e do termo «erótica» ser mencionado inúmeras vezes, este só aparece como qualidade ou caráter de um estado. Não há uma conceituação da erótica enquanto tal. Em Lacan não há nenhum artigo ou seminário dedicado ao assunto e só em algumas passagens ele faz referência à erótica, uma delas é a questão mencionada acima.

Em outra passagem, dois anos depois, no seminário sobre a identificação, ele afirma que só se concebe a psicanálise tendo como alvo os fins últimos de uma erótica, mas não cabe à psicanálise propagar uma nova erótica. Cabe aos analistas se aterem a soluções singulares em cada caso, uma vez que mesmo nas pessoas mais normais «isso não funciona»[11].

Tratando-se de psicanálise, sexualidade e erótica não são coincidentes; a erótica condiciona sua experiência, mas não cabe à psicanálise propagá-la e não seria possível estabelecer padrões a serem alcançados. E, finalmente, «isso não funciona», isto é, não existem práticas sexuais, que garantam um funcionamento regular de um sexo a outro, mas definem-se em cada ser falante através de condições singulares de gozo.

Em Freud, o prazer é o funcionamento temperante do corpo e da alma, o nível mais baixo de tensão, sem nenhuma perturbação, um meio termo entre o excesso e a falta. Além do princípio de prazer, ele detecta a pulsão de morte, uma satisfação que excede ao prazer e, ao contrário da pulsão sexual, produz desconexões.

Para essa outra satisfação, Lacan aborda um conceito que não faz parte da tradição freudiana, o gozo, operando uma transformação sobre o princípio de prazer freudiano de tal maneira que lhe permite afirmar que a realidade é abordada com os aparelhos de gozo[12].

Apesar de o gozo estar na via aberta pela teoria da sexualidade, Miller[13], cujo curso orienta nosso percurso aqui e ao longo deste livro, pontua duas importantes diferenças entre o gozo e a sexualidade freudiana: a libido está orientada pela concepção de desenvolvimento e de etapas, enquanto o gozo é uma libido sem desenvolvimento; a sexualidade seria uma relação de um corpo sexuado a outro corpo sexuado, enquanto o gozo, ao contrário da libido freudiana que circula, investe e desinveste, não é uma relação, aborda o objeto sem se dirigir ao outro, é autista.

Como não há em Freud e Lacan uma definição para “erótica”, para o que se segue, deduzi uma formulação provisória a partir do exposto acima, ou seja, uma vez que não há nada pré-escrito para as relações entre a satisfação, o objeto e os fins da sexualidade, chamarei eróticas as diferentes estratégias de gozo na abordagem do objeto. A partir dessa formulação, procuro estabelecer três eróticas a partir da doutrina dos gozos em Lacan, em dois momentos diferentes de seu ensino, e o enlace de cada uma delas com o feminino.

As «eróticas lacanianas» são também uma maneira de pensar os laços com o feminino na contemporaneidade diante dos impasses atuais decorrentes do declínio da função paterna e da mutação dos lugares do feminino na cultura, uma vez que perdem eficácia os ideais, que asseguravam um ponto de ancoragem para a identificação da mulher, tais como ‘filha’, ‘esposa’ ou ‘mãe’. O fracasso da função do ideal abre um outro espaço criando formas de enlace do feminino que inauguram uma nova topologia.

 Eróticas Lacanianas

Das modulações do conceito de gozo que acompanharam o progresso das elaborações lacanianas, Miller[14] estabelece seis paradigmas, como seis fotogramas simplificados, descritos como uma fita de filme em que o movimento se imprime através da velocidade, produzindo pelo efeito desta superposição acelerada, uma recomposição do movimento que anima a doutrina dos gozos.

As eróticas lacanianas foram elaboradas em torno de dois dos paradigmas de Miller.

O gozo impossível situa-se no Seminário 7.  O gozo está no campo da Coisa que se constitui como real no mesmo movimento que cria barreiras ao imaginário e ao simbólico, como desenvolveremos adiante. Deste paradigma deduzem-se duas eróticas, “do amor cortês” e “do espaço trágico” e suas respectivas estratégias, sublimação e transgressão.

O gozo da não-relação, deduz-se a erótica do nãotodo, referente às elaborações de Lacan no Seminário 20: Mais ainda. A fórmula, “não há relação sexual”, implica um regime de gozo do corpo.

 Os gozos e suas estratégias

O gozo impossível conectado ao horror tem um caráter absoluto, está do lado da Coisa (das Ding) colocada num lugar abissal, um gozo maciço, porque visa uma satisfação que se mantém fora da significação e por isso impossível pois o encontro com a Coisa seria a morte.

Lacan retira o termo das Ding do Projeto freudiano, destacando sua importância como um conceito necessário para o progresso de sua investigação, e ao fazê-lo assume plena responsabilidade pelo seu uso.

Das Ding está no ponto originário indistinto que antecede ao surgimento do ser falante, pulsões e estímulos exteriores fazem uma mistura caótica e gera um estado de urgência que exige satisfação ou fuga. Para Freud[15], o prazer é o índice que irá permitir a diferenciação entre dentro e fora, o que dá prazer está no interior e exige satisfação, o que produz desprazer é suposto exterior e poderia ser afastado.

Há fracasso da ação muscular para o alívio do desprazer produzido pelos estímulos internos, mas ao mesmo tempo a tentativa é eficaz na medida em que exerce atração sobre um outro, impelindo-o a responder. Esta ação específica, só pode ser efetuada por meio de uma assistência alheia, da mãe, ou de um outro que ocupe essa função.

Da sensação de desprazer à tentativa de encontro com o objeto que originariamente teria produzido o prazer desejado, até a ação específica realizada por um outro, Freud denominou experiência de satisfação. Esta experiência produz um trilhamento no aparelho de tal maneira que, a cada vez que se restabelece o estado de urgência ou de desejo, a lembrança da primeira satisfação é buscada na memória, ativando a percepção. Na ausência do objeto, este é primeiramente alucinado, mas na medida em que há desapontamento, instaura-se novamente o estado de urgência e a exigência de uma ação específica.

Das Ding, a Coisa, está situado neste ponto inicial, anterior a qualquer experiência, vazio onde supostamente esteve o primeiro objeto de satisfação, objeto perdido que preside a busca na experiência de satisfação, em torno do qual se organiza o aparato psíquico.

«[…] para vocês verem a dificuldade de sua representação topológica. Pois esse das Ding está justamente no centro, no sentido de estar excluído. Quer dizer que, na realidade, ele deve ser estabelecido como exterior, esse das Ding, esse Outro pré-histórico impossível de esquecer, do qual Freud afirma a necessidade da posição primeira sob a forma de alguma coisa que é entfremdet, alheia a mim, embora esteja no âmago desse eu, alguma coisa que no nível do inconsciente, só uma representação representa».[16]

Nos trilhamentos que se formam a partir da experiência de satisfação e em suas associações com os trilhamentos anteriores situa-se a cadeia significante, edificada a partir da fenda aberta pelo significante no real, uma topologia que se organiza em torno de das Ding: “esse aparato é essencialmente uma topologia da subjetividade – da subjetividade uma vez que ela é edificada e construída na superfície do organismo”[17].

De acordo o Projeto, a partir do momento em que a pulsão institui seu primeiro representante, instaura-se uma proximidade e uma distância em relação a das Ding. É em torno desse primeiro exterior, que o sujeito se orienta em relação ao mundo dos desejos. No entanto, é impossível atingi-lo, trata-se do objeto que nunca houve, Outro absoluto, que só pode ser reencontrado “no máximo, como saudade”. É em torno desse fracasso em reencontrar o objeto da primeira satisfação, na dependência dessa primeira alucinação, que o mundo da percepção se ordena. De acordo com a distância mantida desse objeto original realiza-se a primeira orientação subjetiva.

Pensar o objeto como inapreensível, leva Lacan a formular o desejo como a razão kantiana, isto é, um desejo independente da experiência sensível, vazio de interesses fenomênicos, em estado puro.

Lacan demonstra, assim, que o passo dado por Freud, com a Coisa, foi dizer que não há o Bem supremo, o único bem é um bem proibido, a Coisa. Transgredir a lei e encontrar este objeto seria abolir o que estrutura mais profundamente o inconsciente do homem, um gozo impossível.

Existem no Seminário 7, duas estratégias subjetivas em relação à das Ding: a sublimação e a transgressão. Na sublimação o objeto é cingido, de onde se deduz uma erótica do amor cortês; na transgressão há uma tentativa de encontro com a Coisa e encontra-se a erótica do espaço trágico.

Sob esta perspectiva, a sublimação seria uma forma paradoxal de satisfação, pois o gozo é obtido pelas vias aparentemente contrárias ao gozo, o alvo do gozo subsistiria e em certo sentido seria realizado sem recalque, sem apagamento, cingindo a Coisa e sua forma exemplar é a erótica do amor cortês, que se mantém no princípio de prazer.

Na transgressão o gozo estaria, ao contrário, no ultrapassamento das barreiras que fazem obstáculo ao objeto e há encontro com a Coisa. Um gozo além do princípio de prazer, especificando uma erótica do trágico em duas vertentes: de um lado, o gozo veiculado pelo personagem trágico ao realizar o desejo em sua pureza real; do outro, o gozo catártico, o atravessamento do temor e da piedade experimentado pelo espectador diante do espetáculo trágico.

 Erótica do amor cortês

Na sublimação trata-se de uma posição em relação à problemática do Outro absoluto, da mulher impenetrável ou, por trás desta, a figura da morte, como podemos ler no final do Seminário A Relação de objeto[18]. É na perspectiva da sublimação que cinge a Coisa, que Lacan toma o amor cortês do começo do século XII situando aí uma modificação histórica de Eros, forma de uma erótica masculina e princípio de uma moral na cultura ocidental.

O trovador cria ex-nihilo o poema ou canto, não há nada preexistente, e coloca neste nada uma mulher particularizada em seu corpo e sua beleza. Uma maneira de não fugir da Mulher, não fugir desse vazio cruel e enlouquecedor girando em torno desse objeto, cercando-o através da arte de dizer e de cantar. Essa arte do enlace não é uma ascese moral, mas uma criação estética a serviço de uma erótica.

Assim, o amor cortês é um exercício poético no qual o objeto feminino é esvaziado de toda substância real e introduz-se pela privação, pela inacessibilidade. A Mulher ou a Dama é isolada por uma barreira que a circunda, protegendo o sujeito do encontro com o inominável.

No entanto, apesar de a ideologia do amor cortês visar expressamente o lado de exaltação ideal, ele desempenha um outro papel, o de limite, pois sua função é precisamente contornar o objeto tornando-o inacessível, uma vez que o encontro com a Coisa acarretaria um gozo insuportável, além do princípio de prazer. O amor cortês seria, assim, «uma maneira refinada de suprir a ausência da relação sexual, fingindo que somos nós que lhe impomos obstáculo»[19] .

Entra em jogo aqui a função ética do erotismo aludida continuamente por Freud mas nunca formulada. As técnicas em questão no amor cortês articulam-se, por exemplo, com os prazeres preliminares dos Três Ensaios, certas maneiras intermediárias de se relacionar com o objeto que antecedem o coito e são prazerosas em si mesmas. O ato de cortejar engendra a beleza, esteio do desejo, a regra do obstáculo necessário, da interdição que não é recalcamento do desejo mas, ao contrário, o possibilita.

A regra do amor cortês impõe uma demora, é preciso o tempo do bem-dizer, o nascimento do desejo para que o ato sexual não seja violência[20].

Segundo Julien, alguns historiadores interpretam a cortesia trovadoresca como uma recusa do ato sexual, ao confundir a castidade cortês com a continência sexual. Os prazeres preliminares sem o ato sexual, permitiram uma interpretação de que o ato não deveria ocorrer ou que era da ordem do segredo. Semelhante ao lugar da amizade (philia) na Grécia antiga, situada nos arredores do ato sexual, sua função era preparar, separar, cercar e restringir o instante atroz do coito. Mas a philia ia até aonde começava o coito[21].

Porém, interpretado pela via da sublimação, a interdição torna-se a própria condição para a prática sexual, pois a interdição desperta o desejo ao “purificar” o ato da  brutalidade ou da rotina. A sublimação perde seu caráter freudiano de dessexualização e associado aos prazeres preliminares permite um jogo de sedução prévio, uma preparação de onde nasce com a fantasia o suporte do desejo. O gozo é domesticado pela beleza que o recobre com seu brilho.

Ao explicar o fenômeno do amor cortês como uma obra de sublimação, Lacan pretende explicar como um objeto, a Dama, toma valor de representação da Coisa. Ao situar a mulher neste ponto de para-além, o amor cortês colocou-a no lugar do ser, o que não lhe concerne enquanto mulher mas enquanto objeto de desejo. Portanto, essa poética não fala da mulher e para a mulher, mas do destino que pode ser dado ao feminino, como um ideal inabordável.

Erótica do espaço trágico

Referindo-se à razão pura kantiana, o desejo no Seminário 7 é desinteressado, incondicionado pela sensibilidade, pelos fenômenos, um desejo sem condição, absoluto, sem finalidade. Este movimento produz um deslizamento, do desejo produzido por um objeto da experiência ao desejo puro, cujo objeto vazio é real. No trágico não se trata de circundar a Coisa mas transgredir as barreiras em direção ao encontro com o real da Coisa.

As coordenadas do espaço trágico serão dispostas por Lacan a partir da peça de Sófocles, Antígona, como veremos adiante. Por hora, importa destacar como a  ação trágica se desenrola sem qualquer pretensão benéfica, paradigma do desejo purificado do bem e do belo.

Antígona situa-se no espaço entre-duas-mortes, como se expressa Lacan inspirado no texto sadeano: «o assassinato só retira a primeira vida ao indivíduo que abatemos ; seria preciso poder arrancar-lhe a segunda, para ser ainda mais útil à natureza ; pois ela quer o aniquilamento: está fora de nosso alcance dar a nossos assassinatos a extensão que ela deseja »[22]. A primeira morte é o desenlace da vida, acidental ou na velhice; a segunda morte é relativa à pulsão de morte e define-se sob a fórmula paradoxal de que o homem aspira a aniquilar-se para eternizar-se, inscrever-se em outros termos do ser, como ocorre no espaço da tragédia antiga. A segunda morte articula-se ao sujeito enquanto barrado pelo significante, numa relação com a linguagem que o obriga como falante a dar conta do que ele é e não é.

Na tragédia o desejo do Outro se apresenta em duas faces, fundador de toda a estrutura simbólica e a face de um desejo da ordem do real, criminoso, sem nenhuma mediação a não ser seu caráter radicalmente destruidor. Antígona reivindica, não os significantes do desejo do Outro simbólico, os significantes de seu destino, da ordem das leis, mas algo que diz respeito à face real do Outro, relativo à Lei da Coisa, desenvolvida fora da cadeia. O significante que a determina está para além da linguagem, puro significante isolado da cadeia.

A topologia do espaço trágico está limitada por duas barreiras, o bem e o belo, e a aproximação e o atravessamento de cada uma delas está indicado pelo temor, culpa ou ódio.

Quando se atravessa um limite, do bem ou do belo, o sujeito penetra no entre-dois do desejo e se ele retrocede, recua ou renuncia, a tradução subjetiva dessa renúncia é a culpa. Por isso, Lacan conclui que «a única coisa da qual se possa ser culpado, pelo menos na perspectiva analítica, é de ter cedido de seu desejo».

A barreira do bem é própria da conservação da vida, do princípio de prazer, relativa aos objetos que imaginariamente realizariam o desejo. Esses objetos surgem para o sujeito em diversas formas, na religião como promessa de um deus redentor, ou no mercado nos objetos de consumo, e em todas as coisas que possam alimentar a ideia de um objeto benéfico para garantir a conservação da vida.

A segunda barreira é a do belo. A função do belo é precisamente a de indicar o lugar da relação do homem com sua própria morte, e de fazê-lo somente numa fulguração, num brilho e esplendor. O belo nessa concepção não tem nenhuma relação com o ideal.

Na primeira parte do “Seminário 7”, o Aristóteles da “Ética a Nicômaco” é uma referência essencial para pensar uma ética do ideal, mas no comentário sobre Antígona, na busca do sentido da ação trágica a referência será o Aristóteles da “Poética”:

“A tragédia é a representação (mimhsiz) de uma ação nobre levada até seu termo, e tendo uma certa extensão, por meio de uma linguagem condimentada de espécies variadas, utilizadas separadamente segundo as partes da obra. A representação é colocada em ação pelos personagens do drama e não há recurso à narrativa; e representando o temor e a piedade, realiza uma purificação dessas emoções”[23].

Num desenvolvimento dessa passagem em “Aristote et la tragédie”, Yves Depelsenaire esclarece que o termo mimhsiz ‘mimesis’ no sentido trágico é o isolamento de um traço, um signo e não a reprodução de um paradigma ideal.

O texto de Depelsenaire é particularmente esclarecedor neste aspecto, ao comentar o termo grego caqarsz, purificação ou catarse. A originalidade de Aristóteles é destacar este termo da tradição do teatro, e tratá-lo não no sentido de exorcismo, pois não se trata de purgação, o que espectador deve realizar é uma substituição do temor e da piedade. A tragédia teria, assim, a função de suscitar, através da representação, um prazer legítimo que substitui o desprazer.

Para Aristóteles, ainda segundo Yves Depelsenaire, a tragédia não é para provocar medo, surpresa ou efeitos de horror crescentes, o ponto essencial é o prazer que o espectador apreende no espetáculo.

Temor e piedade não estão na tragédia para exprimir as emoções ou para colocá-las em cena, no sentido de imitar, mas emoções que devem ser atravessadas, mediadas pela representação, pelo agenciamento dos fatos representados, pela própria atividade representativa. A emoção trágica não é a emoção bruta ou sensação imediata, é precisamente a emoção purificada.

A imagem de Antígona oferece um prazer decorrente de um apaziguamento do desejo, cumprindo uma função de detenção do desejo e um efeito de entusiasmo. Ao mesmo tempo, o brilho de Antígona tem a função de indicar algo irredutível no desejo que a leva em direção à Coisa. Ao ultrapassar os limites da lei, ela presentifica uma exigência absoluta, um desejo incomparável, que objetiva Outra coisa, para além do apaziguamento do registro do princípio de prazer, o gozo da transgressão.

Sob essa perspectiva, Ram Mandil[24] afirma que a hipótese lacaniana sobre a beleza de Antígona deve ser tomada como um efeito da operação de representação articulada pela tragédia como função catártica exercida pelo poder de atração e fascínio advindos da prevalência da imagem da heroína sobre todas as imagens. A imagem de Antígona permite a purificação de tudo aquilo que é da ordem do imaginário, fazendo desaparecer a proliferação de imagens, o que é atingido são as emoções que poderiam estar associadas a essas imagens: “somos purgados [da série imaginária] por intermédio de uma imagem entre outras[25].

A erótica trágica estaria então, por um lado, na transgressão das barreiras realizada pela heroína trágica, e o encontro com esse objeto absoluto, das Ding. Por outro, por parte do espectador, no atravessamento do temor e da piedade, cujo efeito é a purificação de todo pathos produzido pela representação trágica, cujo resultado é o entusiasmo. Do lado da heroína é a passagem ao ato, a transgressão das barreiras do bem e do belo e o encontro com a Coisa como pura pulsão de morte. Do lado do espectador é a experiência do atravessamento do temor e da piedade, uma purificação do imaginário que permite um atravessamento sem o encontro com a Coisa, sem identificação e sem passagem ao ato.

Erótica do nãotodo

No paradigma do gozo impossível, bordas e limites definem espaços diferentes num mesmo plano e o que está em jogo são os desvios, transgressões e ultrapassagens para se alcançar ou evitar o objeto. Com o objeto vazio, no cerne e na mais radical exterioridade, e o infinito entre-duas-mortes, Lacan traça o esboço de uma topologia, no entanto, este desenho ainda está mais próximo de uma cartografia, ele está apenas delineando o que fará alguns anos mais tarde servindo-se da lógica, da matemática e da topologia.

O gozo impossível, através da sublimação ou transgressão, é o gozo sem o corpo. O desejo puro é puro porque é sem o corpo. No “Seminário 20: mais ainda” o «isso não funciona» do Seminário 9 é substituído pelo aforismo: «não há relação» é a maneira de Lacan abordar os impasses contemporâneos quando a sexualidade não está inteiramente regida pela lei do pai e as formas tradicionais de relação não são mais suficientes para dizer o que ocorre no campo do sexo. Ele retoma à ética e a questão freudiana – O que quer uma mulher? – para elaborar as fórmulas da sexuação e o gozo feminino. Perspectiva em que a lógica é adotada como operador, o desejo perde sua pureza e das Ding dá lugar ao objeto a, estabelecendo uma topologia onde o real não está mais além, mas ex-siste ao simbólico. Na não-relação a satisfação está sob a perspectiva do gozo. Neste seminário, fica demonstrado porque não há a relação sexual, como as mulheres não fazem Um e uma relação ao infinito específica para cada sexo, cuja topologia define os lugares em termos de limite, convergência e infinito: «Neste espaço de gozo, tomar algo limitado, fechado, é um lugar, e falar disso é uma topologia»[26].

No paradigma do gozo da não-relação, a expectativa de Lacan é fazer aparecer algo de novo do lado das damas e seu verdadeiro tema é a elaboração do nãotodo (pastout) [27], uma estrutura correlativa à face real do Outro, do Outro que não existe. Retorna aí a questão, que não é mais freudiana e se escreve algo novo sobre a feminilidade ao elaborar-se o nãotodo.

A lógica masculina é a lógica da totalização que se constitui pela exceção como termo que a nega integralmente. Ou seja, para se fazer o todo, sejam quais forem os elementos, é necessário sempre um a mais, que esteja fora. A categoria lacaniana de ex-sistência, designa esse elemento que fica fora, indicando que sempre faltará um significante para que haja universo de discurso. A fórmula, «para todo sujeito funciona a função fálica, ou, todo homem está submetido à castração», indica que é pela função fálica que o homem como todo se inscreve, exceto que essa função encontra seu limite na existência de um ponto fora pelo qual a função é negada.

Do lado feminino, o modo de se submeter à lei do falo, à castração, não é postulando a universalidade da lei, como nãotoda a mulher pode se colocar do lado do falo ou não. Na fórmula, «não há nenhuma mulher que não esteja submetida à castração», não há exceção, nenhuma está fora da castração, não existe a figura fundadora de um conjunto de mulheres, logo, não há «nem uma» que não esteja submetida à castração. Como não existe a condição necessária para que se estabeleça o universal, o todo não se constitui, logo, a mulher é nãotoda submetida à castração. As fórmulas do lado feminino indicam que a mulher não se inscreve da mesma maneira que o homem, mas ao mesmo tempo, não prescinde da lei do falo. Ela não está fora, mas também, não está inteiramente submetida à lei simbólica.

A incompletude do ser feminino em Freud, é tomada em Lacan como inconsistência que designa uma estrutura lógica positiva, o espaço nãotodo, um conjunto aberto definido pela impossibilidade de circunscrever uma totalidade.

O falo e a identificação fálica designam um regime da libido, simbolizada, limitada. Na lógica do nãotodo, o que está em questão não é a falta, o nãotodo não indica o que descompleta o Outro mas a série ilimitada que não é universalizável mas também não é incompleta nem fluída. O gozo feminino infinito, dito nãotodo, designa algo mais frouxo que fluído, um ata e desata, que nunca se deixa amarrar inteiramente. Adiante, trataremos do tema mais detidamente.

A época de Freud, segundo Miller[28], corresponderia ao reino do Nome-do-Pai, cuja estrutura está esboçada em Totem e tabu, a universalização que se funda com o pai como exceção. A época lacaniana da psicanálise é a época da inexistência do Outro, do nãotodo generalizado, onde o Nome-do-Pai é pulverizado e a subjetividade passa a ser caracterizada pela fuga do sentido, pelo paradoxo da fusão dos gozos, pela segregação e isolamento. A estrutura que responde ao Outro que não existe, não se inscreve na universalização, é o nãotodo (pastout) generalizado, não no sentido do para todos, mas por toda parte (partout).

O Outro que não existe pode ser situado em dois níveis: primeiro, não há universal, não se pode formar o espaço fechado do «para todo x»; em segundo lugar, não há a ex-sistência do Um, o Um inexiste. Essa estrutura do «nãotodo por toda parte», é o que Miller coloca como o fundamento do gozo no individualismo moderno.

Na erótica do nãotodo, o gozo está sustentado pela essência do significante, gozo Um sem o Outro, o gozo ganha corpo. A sublimação não é sem o corpo, a linguagem é gozo e perde a utilidade, não visa o sentido. A sublimação passa a ser o gozo na própria realização da escrita. A transgressão é a que a linguagem realiza no corpo, subvertendo seu uso e suas qualidades, criando ilhas de gozo.

Nos próximos capítulos apresentamos Antígona para dar corpo à erótica trágica e o Arrebatamento, exemplar da erótica do nãotodo.


[1] Este texto é o segundo capítulo do livro Patu. Uma mulher abismada. Lutterbach-Holck, AL. Ed. Scriptum, 2011 2ed. Agradecemos a autora pela gentil autorização da sua publicação no Boletim Erosditos.
[2] BATAILLE,G. L’Érotisme. Paris: Les Éditions de minuit, 1957, p. 17
[3] «Por que a análise, que forneceu uma mudança de perspectiva tão importante sobre o amor, colocando-o no centro da experiência ética, que forneceu uma denotação original, certamente distinta do modo pelo qual o amor até então fora situado pelos moralistas e pelos filósofos na economia da relação inter-humana, por que a análise não foi mais longe no sentido da investigação daquilo que devemos chamar, propriamente falando, de uma erótica? Isto é coisa que merece reflexão.
A esse respeito, o que sei ter sido colocado na ordem do dia do nosso próximo congresso, a sexualidade feminina, é um dos sinais dos mais patentes, na evolução da análise, da carência que designo no sentido de uma tal elaboração» (LACAN,J. O Seminário. Livro 7. A Ética da psicanálise. [1959-1960] Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1988. p.18.
[4] BUARQUE DE HOLANDA,A. Novo Dicionário eletrônico da língua portuguesa Aurélio Século XXI. Versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. ROBERT,P. Dictionnaire alphabétique et analogique de la langue française. Montréal: Ed. Robert, 1989; LALANDE,A. Vocabulaire technique et critique de la philosophie Quadrige/PUF,Paris,1992.
[5] FOUCAULT,M. O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal,1984, p. 179
[6] idem, p. 35
[7]FREUD,S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas. [1905] Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Vol. VII. Rio de Janeiro: IMAGO,1969.
[8] Idem, p.150
[9] Idem, p.150)
[10] LACAN,J. O Seminário. Livro 11. Os Quatro conceitos fundamentais da psicanálise.[1964] Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1985
[11] LACAN,J. L’identification. Lição de14/03/1962. Inédito.
[12] MILLER,J-A. O que fazer com o gozo? In O Desejo é o diabo org. Stella Jimenez e Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Contracapa, 1999, p.163.
[13] MILLER,J-A. Curso La Fuite du sens. Lição de 07/02/1996. (Inédito)
[14]MILLER,J-A. Curso La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. [1998-1999]: Buenos Aires: Paidós. 2003, p.221.
[15]FREUD,S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas. [1895] Projeto para uma psicologia científica. Vol. I Rio de Janeiro: IMAGO, 1969, p.421
[16] LACAN,J. O Seminário 7. A Ética da Psicanálise. [1959-1960] Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1988, p. 91
[17] idem, p.55
[18]Trata-se aí de uma certa tomada de posição do sujeito com relação à problemática do Outro absoluto, ou bem, por trás desta, a figura da morte, que é o último Outro absoluto. A maneira pela qual uma certa experiência compõe com este termo último da relação humana, a maneira como ela reintroduz no interior disso toda a vida das trocas imaginárias, a maneira como desloca a relação radical e última até uma alteridade essencial para fazê-la habitar por uma relação de miragem, é a isso que se chama sublimação” (Lacan, J. O Seminário. Livro 4. A Relação de Objeto (1956-1957) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1995, p.446.
[19] LACAN,J. O Seminário. Livro 20. Mais ainda. [1972-1973] Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982, p.94.
[20] JULIEN,P. O Estranho Gozo do próximo. Ética e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1996 p.117
[21] MILNER,J-C. Le triple du plaisir. França: Verdier,1997 p.38
[22] O Seminário 7. A Ética da Psicanálise. [1959-1960] Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1988, p. 258.
[23] ARISTÓTELES, séc. IV ac. Poética. Coleção: Os Pensadores. Vol. IV São Paulo: Abril Cultural,1973, p.447
[24] MANDIL,R. Entre ética e estética freudianas: a função do belo e do sublime na ‘Ética da psicanálise’ de Lacan. Dissertação apresentada no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. 1993. Inédita.
[25] O Seminário 7. A Ética da Psicanálise. [1959-1960] Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1988, p.301, apud Ram Mandil Op. cit.
[26] LACAN,J. O Seminário. Livro 20. Mais ainda. [1972-1973] Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982, p.17.
[27] idem, p.78).
[28] MILLER,J-A. Curso La Fuite du sens. Lição de 04/12/1996. Inédito.

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